M I T O. e Interpretação da Realidade. Marlon Leandro Schock
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- Marco Antônio Filipe
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1 M I T O e Interpretação da Realidade Marlon Leandro Schock
2 Uma leitura do mito a partir de rubricas Na tentativa de sintetizar logicamente uma conceituação para mito me apercebi em meio a um número enorme de informações desencontradas que tratavam do tema por vieses muito diversos e contraditórios. Quando me deparei com a obra Mitos do individualismo moderno de Ian Watt, percebi que não era o único com esta impressão. Só pode ser que nossas abordagens sejam incompletas e muitas vezes imprecisas em se tratando de um tema tão esquivo e multicor. Watt lembra a afirmação de Claude Lévi-Strauss no clássico Structural study of myth, onde este diz que, até hoje, pensar sobre o mito significa pensar sobre um retrato do caos. Entretanto, mesmo diante desta complexidade e desafio, o mito como tema demasiadamente interessante exigiu uma apreciação mais aprofundada; do que surgiu algo como um tipo de leitura do mito a partir de rubricas (como uma indicação geral do assunto e/ou da categoria de algo ). Selecionei três que me pareceram abarcar e representar maior interesse na discussão da dimensão do Ensino Religioso Escolar. Das três rubricas articuladas, apresento um ensaio sobre um delas: o mito de rubrica antropológica.
3 Ao analisarmos o mito de rubrica antropológica percebemos facilmente que toda e qualquer cultura parte da premissa de que seu mito é absolutamente verdadeiro. O mito de rubrica antropológica pode ser descrito nas palavras de Mircea Eliade: [...] o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos. Noutros termos, o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
4 A origem (o porquê) do mito de rubrica antropológica Umas das primeiras associações que fazemos ao pensar no mito de rubrica antropológica é ligá-lo aos relatos simbólicos sobre deuses e heróis divinos dos tempos imemoriais. Entretanto, o primeiro e o verdadeiro objeto deste tipo de mito não são as construções das narrativas mitológicas sobre estes deuses, heróis, ou ancestrais, mas, sim, a apresentação de um conjunto de ocorrências fabulosas com que se procurou dar sentido ao mundo. Podemos afirmar que todos os mitos, de todos os povos, antigos e modernos, são tentativas de respostas que o ser humano usa para conviver com as três perguntas mais angustiantes e desafiadoras que estão sempre postas diante de nós: De onde viemos? Para onde vamos? Qual é o sentido da vida?
5 Cada um de nós que já se perguntou de onde viemos, por que estamos aqui, e, para onde vamos, está no centro de uma questão existencial. Esta necessidade de compreensão, e a busca que dela decorre, é o que nos arremete para além das explicações científico/empíricas. Como a pergunta sobre a origem da vida e do universo é uma questão existencial, requer soluções de ordem religiosa. Da tentativa de responder à pergunta pelas origens últimas do universo, da vida, do ser humano e dos seus costumes, nasceu o mito. A criação do mito é uma espécie de primeira tentativa dos seres humanos chegarem à compreensão dos grandes mistérios que nos circundam.
6 O caráter atemporal/supratemporal/permanente do mito Como um acontecimento originário, o mito tem por característica situar o acontecimento narrado em um horizonte primordial. O acontecimento mítico não é cronológico, portanto, não costuma usar números para assinalar datas, mas expressões difusas como em outro tempo, no princípio, etc. O tempo e o espaço do mito não são coordenáveis com o tempo e o espaço de nossa existência. Supõe-se que o acontecimento relatado está no limite entre um tempo primordial e o tempo cronológico que conhecemos. O mito pode ser descrito como um evento de caráter atemporal/supratemporal e/ou permanente porque se apresenta como uma realidade incomensurável (não há como quantificar, não há como comparar, não há como ajuizar seu valor), portanto, inapropriável, que foge ao domínio e à noção cronológica do tempo. O mito refere-se a um tempo em que não havia o tempo, a um tempo superior ou fora do limite do tempo - um tempo primordial que escapa à nossa noção de tempo cronológico.
7 O caráter atemporal é o que distingue o mito de um relato qualquer (sempre situado historicamente). O caráter supratemporal e permanente do mito jamais deixa de ocorrer e, como paradigma, vale para todos os tempos. Como um elemento permanente o mito pode mudar no decorrer da história e transformar-se em um novo mito. Pode, inclusive, assumir traços da modernidade ou da pós-modernidade e manter, ao mesmo tempo, elementos centrais do mito antigo. Talvez pudéssemos pensar no mito de rubrica antropológica como mais vinculado a uma noção de tempo que sugere o termo grego kairós. Os gregos antigos tinham duas palavras para designar o tempo: chronos e kairós. Enquanto o primeiro refere-se ao tempo cronológico, ou seqüencial, o segundo se refere a um momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece. A teologia usa o termo chronos para descrever a natureza quantitativa do tempo, ou, o "tempo dos seres humanos, e kairós para descrever a forma qualitativa do tempo, ou, o "tempo de Deus". Assim, kairós em contraste a chronos daria ao mito de rubrica antropológica a liberdade de não precisar ser situado no tempo, mas, sim, simplesmente vivenciado.
8 Classificação (tipos) de mito de rubrica antropológica A tentativa de uma classificação para o mito de rubrica antropológica se dá pelo caminho de tentar delimitar as extremidades de sua abrangência; tendo como ponto de partida o início de todas as coisas (representado pelo mito cosmogônico e teogônico) e, como ponto de chegada, o fim derradeiro de todas as coisas (representado pelo mito escatológico). Depois de definidas as extremidades, todas as outras categorias do mito de rubrica antropológica vão sendo elencadas neste hiato. Assim, nos vemos inseridos entre o estado primordial da realidade e sua transformação última, dentro do ciclo permanente nascimento-morte, origem e fim do mundo.
9 Se levarmos em conta o fato de que cada cultura possui sua própria mitologia, então, teremos tanta diversidade de dados, eventos e relatos, quanto são diversas as culturas dos povos da Terra. Este acúmulo de dados diversos torna complexa nossa tarefa de tentar entender melhor o mito de rubrica antropológica. Mais complexa se torna ainda a tarefa quando temos que levar em conta a ascendente aproximação das culturas e a fusão de elementos mitológicos que disto resulta. Como decorrência desta aproximação podemos ver e prever sincretismos (a mistura ou conjugação de elementos na composição do todo da crença), migrações (a novidade da uma outra cultura muitas vezes convence mais do que a própria na qual se está inserido, motivo pelo que as pessoas se tornam insensíveis e indiferentes e acabam por migrar das suas para outras culturas mitológicas), e, também, ratificações ou arraigamentos mais profundos da crença já professada no arcabouço mitológico da própria cultura.
10 Este movimento complexo pode se dar, a meu ver, em nível individual e por extensão a pequenos grupos sociais, regionais ou não, que se reúnem sob uma mesma égide. Não acho que seja possível traçar limites (geográficos, culturais, religiosos) que impeçam tanto o extravasar destas culturas mitológicas, quanto a sua assimilação. A dinâmica do movimento entre mito cosmogônico e mito teogônico é um exemplo desta complexidade quando observados no âmbito da diversidade cultural. Numa mesma cultura, ou quando comparadas diversas culturas entre si, temos, num momento, o cosmo como elemento criador/fundador gerando os deuses que, por sua vez, também geram o cosmo (ou elementos do cosmo) e outros deuses; noutro momento é um deus, ou são os deuses o ponto de partida e os criadores/fundadores do cosmo.
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