MUDAR ESTE CENÁRIO DE MORTE EXIJA A DIGNIDADE NAS FAVELAS DO BRASIL VIVER SEM VIOLÊNCIA É UM DIREITO HUMANO Uma semana de tiroteios significa uma semana, ou talvez duas, sem trabalho. Por vezes, também há cortes de electricidade e de água. Nunca se sabe s quando vai começar o tiroteio [ ] Não sabes para onde correr. O único sítio aqui realmente seguro é a casa de banho [ ] Porque é que temos de aguentar isto? Maria Lúcia Almedia, Complexo do Alemão, Abril de 2008 A 27 de Junho de 2007, 1.350 polícias lançaram o que denominaram de mega operação contra os gangs da droga que se encontravam inseridos nas favelas que formam o Complexo do Alemão, a norte do Rio de Janeiro. As autoridades anunciaram mundialmente o êxito da operação, declarando que tinham morto 19 presumíveis narcotraficantes e que a polícia tinha apreendido 13 pistolas e vários quilos de drogas. A operação foi o culminar de uma série de incursões efectuadas nos meses anteriores à celebração dos Jogos Pan-americanos de 2007. Hoje os gangs da droga continuam a controlar as vidas de mais de 180.000 residentes do Complexo do Alemão. Inúmeras mulheres e crianças correm o risco de sofrer traumas psicológicos graves, consequência de períodos contínuos de disparos. Casas e negócios ficaram destruídos; escolas e creches estiveram fechadas durante muito tempo. Também durante muito tempo as comunidades estiveram privadas de acesso aos serviços de água, electricidade e recolha de lixo. Os habitantes do Complexo do Alemão, uma vez mais abandonados pelo Estado, sofrerão as consequências destas invasões durante anos. Milhares de bairros em todo o Brasil, comunidades inteiras, vivem presas à pobreza e privadas de toda uma série de serviços. Os anos de negligência do Estado criaram um vazio de poder que permitiu aos gangs o controlo do quotidiano de muitas comunidades,
impondo o recolher obrigatório, multas e castigos e decidindo quem tem acesso ao trabalho, à casa, aos cuidados médicos ou à educação. O aparecimento de milícias grupos paramilitares integrados por polícias fora de serviço, guardas prisionais, ex-soldados e bombeiros nalgumas das comunidades mais pobres do Rio de Janeiro intensificou os níveis de insegurança e violência que já eram insuportáveis. Nas comunidades abandonadas pelo Estado, as milícias confrontam-se com os gangs do narcotráfico para disputar o controlo do tráfico. Uma investigação parlamentar realizada em 2008 sobre o papel das milícias, revelou uma rede de negócios de protecção, irregularidades eleitorais e estreitos vínculos entre polícias corruptos e políticos estatais e municipais. As autoridades federais e estatais reconheceram a necessidade de modificar as práticas da segurança pública. Ainda assim, apesar das provas esmagadoras de que a actuação policial violenta não é eficaz para oferecer segurança, as suas promessas de alteração desaparecem rapidamente perante o mínimo pedido da opinião pública para fortalecer as medidas de segurança. Alguns governos estatais continuam a apoiar uma actuação policial cada vez mais repressiva e violenta que põe em perigo os residentes e consolida ainda mais a violência, a exclusão e as privações. As incursões policiais fortemente armadas nas comunidades, são onerosas e contraproducentes para as vidas humanas. Quando a polícia se retira, os gangs da droga estão livres para reafirmar o seu controlo. Chegamos a um ponto em que temos de pedir ajuda. Não aguentamos perder mais amigos, familiares e crianças devido à violência armada. É urgente mudar este cenário de morte. Hércules Mendes, presidente da associação de vizinhos de Caracol, Complexo de Penha, Rio de Janeiro, Março de 2007 Muitas famílias de vítimas de tiroteio, que sobreviviam com dificuldade, caem numa pobreza ainda maior devido à morte ou à incapacidade de um filho ou de um pai de quem dependiam. Em entrevistas à Amnistia Internacional, mulheres cujos familiares tinham morrido em operações policiais tentavam, por todos os meios, deixar claro que o familiar falecido era um trabalhador ou um estudante e não um delinquente. Estas mulheres condenam a indiferença e a descriminação, por grande parte da sociedade brasileira, que estigmatiza quem vive nos bairros de delinquentes apenas pelo facto de
viverem nesses locais. É este preconceito enraizado que permite à polícia cometer violações com impunidade e tornar tão difícil o fim do círculo de violência e privações. Aí em baixo, na parte rica da cidade, é diferente. Acreditam que a polícia realmente tenha de invadir, matar e exterminar tudo o que ocorre aqui. Não vêem que esta é uma comunidade com pessoas que trabalham e com crianças que estudam. Lúcia Cabral, Complexo do Alemão, Abril de 2008 Vários factores se conjugam para provocar a exclusão de quem vive nas favelas. As condições das casas nas favelas constituem, talvez, o indicador mais evidente e condenável que demonstra até que ponto o Estado se demitiu das suas responsabilidades no que toca a estas comunidades. As casas são precárias, inadequadas e inseguras. O facto de não se garantirem níveis aceitáveis de habitabilidade quando se constroem casas novas, mostra o pouco interesse pela vida daqueles que lá residirão. Os profissionais de saúde mostram-se reticentes a entrar nestas comunidades por medo ou por preconceito, o que limita o acesso a serviços essenciais de quem lá reside. Uma das consequências é o baixo nível de cuidados pré-natais e materno-infantis. As mulheres de comunidades socialmente excluídas, sobretudo as que têm ascendência afro-brasileira, correm um maior risco de morrer ao dar à luz. O acesso à educação é fundamental para ajudar as pessoas a sair da pobreza. Contudo, as exaustivas investigações da UNESCO mostraram que as escolas do Brasil são lugares muito violentos. E fora, nas ruas, os perigos que espreitam as crianças das favelas são assustadores. Segundo informações, os gangs da droga usam crianças de cinco anos como aviõezinhos (mensageiros) e assim começam a introduzi-las na cultura dos bandos. Nestas comunidades, as creches são praticamente inexistentes.
A resposta do Estado às necessidades das pessoas que residem nas favelas revela uma descriminação enraizada. Os serviços e medidas de segurança disponíveis têm sido impostos sem consultar os que por elas são afectados, o que talvez explique a sua ineficácia. Alguns dos poucos projectos de segurança das comunidades que se têm estabelecido, têm conseguido melhorar, em certa medida, a segurança e contribuir assim para pôr fim ao ciclo de privação e violência. Contudo, estas iniciativas continuam a ser uma excepção. A maior parte da política de segurança continua a ser violenta e de confronto. Não se têm em conta as necessidades dos milhões de pessoas que vivem em comunidades desfavorecidas. Quem está no poder, simplesmente, não dá atenção aos seus receios e ambições. Não faz sentido investir apenas na segurança pública e desmantelar as estruturas dos gangs se não se colocar em seu lugar uma escola ou um centro de saúde. Relator Nacional sobre Educação, Outubro de 2007 Algumas organizações dinâmicas que promovem os direitos dos sem-abrigo e dos que vivem em bairros marginais continuarão a fazer ouvir a sua voz, chamando a atenção para estas necessidades e solicitações que foram muitas vezes ignoradas. Perante o grave abandono e a omnipresente violência, elas exigem serviços de água, rede de esgotos, cuidados médicos, creches e educação, casas adequadas e seguras e uma actuação policial que contribua para acabar com a violência e a delinquência em vez de as consolidar ainda mais. As provas são assustadoras. Nenhuma estratégia baseada na criminalização de comunidades inteiras pode oferecer uma boa segurança. Manter uma relação activa com as comunidades para abordar as questões de privação social, de exclusão e de violência criminal e policial pode servir para proteger os direitos humanos, oferecer justiça e salvaguardar a dignidade humana. A Amnistia Internacional tem vindo a apelar constantemente às autoridades federais e estatais do Brasil que trabalhem com as comunidades locais e não contra elas, para fazer frente aos problemas da violência, da privação e da exclusão social.
Nós apanhamos os cacos (Índice AI: AMR 19/001/2008) p. 62, Ivaneti de Araujo, coordenadora do MTST, dirige-se a multidão de pessoas que ocupam o edifício Prestes Maia, 2007. A população de São Paulo aumentou nas décadas de 60 e 70, quando o desenvolvimento industrial proporcionou a chegada de imigrantes de outras partes do país. A ausência de planificação e de previsão para estas comunidades faz com que a cidade continue a enfrentar uma crise de habitação. Aproximadamente metade da população vive precariamente em favelas da periferia, em residências comunitárias ou são ocupantes ilegais. Segundo o relator especial da ONU para a Habitação Condigna, cerca de 10.000 pessoas dormem todas as noites nas ruas de São Paulo. Assim, a ocupação entre 2002 e 2007 do edifício Prestes Maia (que estava vazio há mais de uma década) passou a ser um ponto de convergência dos protestos das famílias sem-abrigo e das ONG que pressionavam as autoridades para que estas tomassem medidas. Apesar da ameaça constante de desalojamento, as famílias de Prestes Maia criaram uma óptima comunidade. Partilhando os seus recursos limitados, administravam uma creche, uma biblioteca, um cinema e actividades artísticas. Sob a protecção do Movimento dos Trabalhadores Sem Tecto (MTST), os novos residentes retiraram cerca de 300 camiões de lixo e limparam partes do edifício onde as águas residuais chegavam a um metro de altura. Apesar das ameaças e, por vezes, dos obstáculos aparentemente insuperáveis, a ocupação de Prestes Maia foi um êxito extraordinário. Depois de uma ampla campanha nacional e internacional, foram prometidas a todos os residentes novas casas na cidade.
ACÇÃO A Amnistia Internacional pede aos governos que: Garantam que as pessoas que vivem em bairros degradados tenham igualdade de acesso a uma casa digna e a serviços públicos. Os governos devem combater a discriminação directa e indirecta das pessoas que vivem em bairros degradados. Assim, devem rever, modificar ou anular a legislação e as disposições que têm um efeito discriminatório. Além disso, as autoridades devem garantir que todas as comunidades tenham igualdade de acesso à água, serviços sanitários, cuidados médicos e educação e que se estabeleçam objectivos claros para proporcionar estes serviços. Devem ainda fomentar procedimentos e políticas que garantam que as pessoas que vivem em bairros degradados tenham acesso à informação e aos processos pertinentes para que possam influenciar as decisões que afectam, directa ou indirectamente, as suas vidas. Garantam uma actuação policial baseada nos direitos humanos e uma participação activa das pessoas que vivem em bairros degradados nas questões de desenvolvimento e implementação de planos de segurança. Os governos devem introduzir mecanismos de investigação credíveis e efectivos para abordar as queixas de abusos policiais contra comunidades desfavorecidas e excluídas. Assim, devem introduzir normas legais e processuais para garantir que a actuação policial se baseie nas normas internacionais de direitos humanos e concretamente no Código de Conduta para Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei e nos Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e das Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. Os governos devem também garantir a eliminação das barreiras que impeçam as pessoas que vivem em bairros degradados de participar activamente na criação de planos integrais de segurança pública para a protecção dos direitos humanos. Índice: AMR 19/003/2009