Comorbilidade em doentes com enxerto renal funcionante há pelo menos dez anos



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Transcrição:

Original Article COMORBILIDADE EM DOENTES COM ENXERTO RENAL FUNCIONANTE HÁ PELO MENOS DEZ ANOS Rev Port Nefrol Hipert 2006; 20 (4): 303-309 Comorbilidade em doentes com enxerto renal funcionante há pelo menos dez anos Carmen do Carmo 1, Luís Freitas 1, Fernando Macário 1, Jorge Pratas 1, Alfredo Mota 2, Mário Campos 1 1 Serviço de Nefrologia 2 Unidade de Transplantes. Hospitais da Universidade de Coimbra. Coimbra. RESUMO Os autores avaliaram o tipo e a frequência da comorbilidade nos doentes com enxerto renal funcionante, há pelo menos dez anos, transplantados na Unidade de Transplantação Renal dos Hospitais da Universidade de Coimbra, entre Julho de 1980 e Dezembro de 1993. Foram incluídos 190 doentes, com uma mediana de idades, à data do transplante, de 37 anos e uma relação entre os sexos, masculino e feminino, de 1.97:1. A patologia mais frequente foi a HTA, em 53.2% dos doentes, seguida da infecção pelo VHC, em 41,6%, a diabetes mellitus, em 17.4% e as infecções do tracto urinário baixo, em 11.6%. As restantes patologias, tiveram todas frequências inferiores a 7%. Received for publication: 12/12/2005 Accepted in revised form: 20/09/2006 A comorbilidade foi idêntica à das séries publicadas em países com características demográficas e ambientais semelhantes às nossas, à excepção da patologia vascular, cuja frequência foi inferior à esperada. Tal facto poderá traduzir um bom controlo dos factores de risco vascular e ser responsável, em grande medida, pela boa evolução destes doentes. Palavras-chave: Insuficiência renal crónica; transplante renal; comorbilidade. SUMMARY COMORBIDITY IN PATIENTS WITH A TEN YEAR HISTORY OF FUNCTIONING RENAL TRANSPLANT. The authors evaluated the type and frequency of comorbidity in patients with a ten year history of functioning renal transplant. The trans- Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão 303

Carmen do Carmo, Luís Freitas, Fernando Macário, Jorge Pratas, Alfredo Mota, Mário Campos plants were carried out at the Renal Transplantation Unit of the Coimbra University Hospital between July 1980 and December 1993. Our study population is composed of 190 patients with a mean age of 37 years at the time of transplantation and a male to female ratio of 1.97:1. The most frequent pathology was hypertension: 53.2% of the patients, followed by HCV infection: 41.6%, diabetes mellitus: 17.4% and urinary tract infections, 11.6%. The comorbidity in our study was identical to that in series published in countries with demographic and environmental features similar to Portugal, with the exception of cardiovascular disease, which was less than expected. This is due to good control of vascular risk factors and is responsible for these patients positive progression. Keywords: Chronic renal failure; renal transplant; comorbidity. INTRODUÇÃO O transplante renal é a terapêutica de eleição para a insuficiência renal crónica (IRC) terminal, sempre que não existam contra-indicações 1,2. Esta terapêutica exige uma vigilância especializada, de forma a garantir a boa função do enxerto pelo período mais longo possível. Tal objectivo só é alcançável com a optimização da terapêutica imunossupressora e com a prevenção e tratamento da comorbilidade, que supostamente poderá ter uma elevada frequência nestes doentes. Atendendo a que a melhoria do controlo da imunossupressão é um facto que se tem vindo a verificar ao longo dos anos, procedemos, então, à avaliação do tipo e da frequência com que a comorbilidade surgiu nos doentes com enxerto funcionante, há pelo menos dez anos, uma vez que este factor assume um papel cada vez mais importante na determinação da sobrevivência do enxerto 1,3,4. DOENTES E MÉTODOS Analisaram-se, retrospectivamente, os casos clínicos dos doentes submetidos a transplante renal, na Unidade de Transplantação Renal dos Hospitais da Universidade de Coimbra, entre Julho de 1980 e Dezembro de 1993 e, que em 31 de Dezembro de 2003 mantinham o enxerto funcionante, há pelo menos dez anos. Os dados foram colhidos dos processos clínicos e tratados de forma descritiva com o intuito de identificar as características dos doentes e a comorbilidade antes e após transplante. No período pós-transplante, fez-se a descrição de subgrupos de doentes de acordo com os seguintes factores: rejeição aguda (RA), patologia vascular, hipertensão arterial (HTA), diabetes mellitus (DMT), patologia infecciosa, neoplasias e taxa de filtração glomerular (TFG). A RA foi classificada de acordo com os critérios de Banff 97 5. A HTA foi diagnosticada segundo os critérios do Seventh Report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation and Treatment of High Blood Pressure (JNC VII) 6, a DMT segundo os critérios da American Diabetes Association (ADA) 7 e a dislipidémia segundo os critérios do Third report of the National Cholesterol Education Program Expert Panel on the Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults (NCEP-ATP III) 8. As restantes patologias foram classificadas de acordo com o International Statistical Classification of Disease and Related Health Problems, 10th Revision (ICD-10) 9. As hepatites víricas crónicas, por VHB e VHC, foram consideradas em separado das complicações infecciosas, em virtude das suas 304 Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão

COMORBILIDADE EM DOENTES COM ENXERTO RENAL FUNCIONANTE HÁ PELO MENOS DEZ ANOS particularidades, no que diz respeito à epidemiologia, evolução clínica e prognóstico, as distinguirem da restante patologia infecciosa observada nos doentes estudados. A TFG foi calculada pelo método radioisotópico, utilizando 99mTcDTPA 10. Utilizou-se o teste do χ 2 para obter inferências acerca da distribuição da comorbilidade segundo o sexo, a idade à data do transplante e a terapêutica imunossupressora. RESULTADOS Foram analisados 190 casos clínicos, que correspondiam a 46.2% do total dos doentes transplantados, durante o período considerado. Os 190 doentes apresentavam uma mediana de idades, à data do transplante, de 37 anos, com uma amplitude de variação de 7 a 69 anos e uma relação entre os sexos, masculino e feminino, de 1.97:1. Fizeram terapêutica hemodialítica pré-transplante por um período mediano de 27 meses, com uma amplitude de variação de 1 a 189 meses. A IRC era de etiologia indeterminada, em 38.9% dos casos. A patologia associada à IRC, com maior frequência, antes do transplante, foi a HTA, em 44.2% dos doentes. Apenas 2.5% dos casos apresentaram doença cerebrovascular ou cardiovascular e 1.6% DMT. A patologia mais frequente, durante o período de seguimento, foi também, a HTA, em 53.2% dos doentes, seguida da infecção pelo VHC, em 41,6%. A DMT apresentou uma frequência de 17.4%, as infecções do tracto urinário baixo, 11.6% e a doença coronária isquémica, 8.9%. As restantes patologias, tiveram todas, frequências inferiores a 7%, destacando-se, no entanto, a doença cerebrovascular, a doença arterial periférica e a infecção por vírus herpes zoster, cada uma com 5.8% (Quadro I). Quadro I Comorbilidade após transplante n=190 % Patologia vascular Doença coronária isquémica 17 8.9 Doença cerebrovascular 11 5.8 Doença arterial periférica 11 5.8 Hipertensão arterial 101 53.2 Diabetes mellitus 33 17.4 Patologia infecciosa Pneumonia 14 7.4 Cistite 22 11.6 Pielonefrite do enxerto 12 6.3 Tuberculose 1 0.5 Infecção por vírus Herpes Zoster 11 5.8 Infecção por Citomegalovirus 9 4.7 Infecção por Papilomavirus Humano 8 4.2 Candidíase esofágica 1 0.5 Neoplasias Carcinoma espinhocelular da pele 7 3.7 Carcinoma da laringe 1 0.5 Carcinoma da mama 1 0.5 Carcinoma da mama e ovário 1 0.5 Carcinoma da próstata 1 0.5 Linfoma gástrico 2 1.1 Sarcoma de Kaposi 1 0.5 Patologia hepatobiliopancreática Infecção por VHB 8 4.2 Infecção por VHC 79 41.6 Infecção por VHB + VHC 6 3.6 Litíase biliar 19 10.0 Colecistite aguda 2 1.1 Pancreatite aguda 5 2.6 Patologia gastrointestinal Úlcera péptica 7 3.7 Doença diverticular do cólon 2 1.1 Angiodisplasia do cólon 2 1.1 Outras patologias Litíase do enxerto 2 1.1 Necrose asséptica da cabeça do fémur 3 1.6 Glomerulonefrite de novo/recorrente 3 1.6 Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão 305

Carmen do Carmo, Luís Freitas, Fernando Macário, Jorge Pratas, Alfredo Mota, Mário Campos A RA ocorreu em 22.6% dos doentes, com uma relação entre os sexos, masculino e feminino, de 0.79:1. Nos doentes que não tiveram RA essa relação foi de 2.27:1. O tempo de isquémia fria e o número de compatibilidades HLA não apresentaram diferenças apreciáveis entre os grupos de doentes com rejeição e sem rejeição (medianas 22 vs 21h e 2 vs 2). No grupo de doentes que tiveram RA, a terapêutica com prednisona(p)+azatioprina(aza)+ciclosporina (CsA)+globulina antitimócito(atg) foi a mais utilizada, em 60.5% dos casos, seguida da terapêutica com P+AZA+CsA, em 34.9% e P+AZA, em 4.6%. No grupo de doentes sem RA a terapêutica mais utilizada foi P+AZA+CsA, em 64.6%, seguida de P+AZA+CsA+ATG, em 27.9%, P+AZA, em 6.1% e P+AZA+ATG, em 1.4%. A patologia vascular afectou 16.8% dos doentes. Neste grupo, a relação entre os sexos masculino e feminino, foi de 4.3:1 e, nos doentes sem patologia vascular, foi de 1.7:1. Da comparação entre doentes com e sem patologia vascular, constatou-se que aqueles tinham uma mediana de idades superior (53 vs 34 anos) e uma frequência mais elevada dos factores de risco vascular avaliados (doença vascular prévia, 15.6 vs 0%; hábitos tabágicos, 40,6 vs 9.5%; HTA, 71.9 vs 49.4%; DMT, 31.2 vs 14.5%; dislipidémia, 37.5 vs 24% e; poliglobulia, 25 vs 8.8%) e uma frequência de RA inferior (12.5 vs 24.7%). A HTA foi diagnosticada em 53.2% dos doentes. A relação entre os sexos masculino e feminino, neste grupo, foi de 2.5:1 e, nos doentes sem HTA, foi de 1.5:1. Não se verificaram diferenças apreciáveis entre os grupos de doentes, com e sem HTA, no que diz respeito à mediana de idades (37 vs 37 anos), frequência de RA (21.8 vs 23.6%), tipo de terapêutica imunossupressora (P+AZA+CsA, 53.5 vs 62.9%; P+AZA+CsA+ATG, 38.6 vs 31.5%; P+AZA, 5.9 vs 5.6% e P+AZA+ATG, 2 vs 0%), mediana da TFG (59.9 vs 61.9 ml/min) e incidência de glomerulonefrite (2 vs 1.1%). Em 15.8% dos doentes foi diagnosticada DMT no período pós transplante e em 1.6% o diagnóstico foi efectuado antes do transplante. A relação entre os sexos masculino e feminino, nos doentes de novo, foi de 3.3:1, nos doentes previamente diabéticos, foi de 2:1 e, no grupo de doentes sem diabetes, foi de 1.8:1. A mediana de idades nos doentes diabéticos de novo foi superior (46 anos) às dos outros grupos de doentes (40 e 34 anos, respectivamente). A frequência de RA foi menor no grupo de doentes com diagnóstico no período pós-transplante (10% vs 66.7% nos doentes com diabetes pré-transplante e 24.2% nos doentes sem diabetes). Não se verificaram diferenças apreciáveis nas terapêuticas imunossupressoras entre os três grupos, diabetes de novo, diabetes pré-transplante e sem diabetes (P+AZA+CsA, 63.3/66.7/56.8%; P+AZA+CsA+ATG, 26.7/33.3/36.9%; P+AZA, 6.7/0/5.7% e P+AZA+ATG, 3.3/0/0.6%). As complicações infecciosas, com excepção das hepatites por VHB e VHC, afectaram 27.9% dos doentes. A relação entre os sexos masculino e feminino, neste grupo, foi de 0.56:1 e, nos restantes doentes, foi de 3.6:1. A frequência de RA foi superior nos doentes que contraíram infecções (37.7 vs 16.8%). No grupo de doentes que tiveram infecções, a terapêutica com P+AZA+CsA foi a mais utilizada, em 45.3% dos casos, seguida da terapêutica com P+AZA+CsA+ATG, em 43.4%, P+AZA, em 9.4% e P+AZA+ATG, em 1.9%. Nos restantes doentes a terapêutica mais utilizada foi P+AZA+CsA, em 62.8%, seguida de P+AZA+ +CsA+ATG, em 32.1%, P+AZA, em 4.4% e P+AZA+ATG, em 0.7%. A patologia oncológica surgiu em 7.4% dos doentes, com uma relação entre os sexos masculino e feminino de 1.8:1. Nos doentes que não tiveram patologia oncológica a relação é de 1.98:1. Não há diferença apreciável entre as 306 Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão

COMORBILIDADE EM DOENTES COM ENXERTO RENAL FUNCIONANTE HÁ PELO MENOS DEZ ANOS medianas de idades (44 vs 35 anos) e as terapêuticas utilizadas (P+AZA+CsA, 50 vs 54.3%; P+AZA+CsA+ATG, 42.8 vs 32.2%; P+AZA, 7.2 vs 5.4% e P+AZA+ATG, 0 vs 1.1%). A mediana dos tempos de evolução após o transplante até ao diagnóstico de neoplasia foi de 9.5 anos. À data do estudo, 51% dos doentes apresentavam uma clearance da creatinina superior a 60 ml/min. Nestes doentes, a patologia mais frequente foi a HTA, em 51.5% dos casos, seguida das infecções, em 23.7%, a DMT, em 17.5%, a patologia vascular, em 14.4% e as neoplasias, em 5.1%. Nos doentes com clearance de creatinina inferior a 60 ml/min a HTA, também foi a patologia mais frequente, em 54.8% dos doentes, seguida das infecções, em 32.3%, a patologia vascular, em 19.4%, a DMT, em 17.2% e as neoplasias, em 9.7%. Os doentes com clearance inferior a 30 ml/min, eram 8,9% do total e tiveram uma maior frequência de RA (52,9%). A distribuição por sexos dos vários grupos de patologias avaliados, permite verificar que o único grupo que apresenta diferença estatisticamente significativa entre os sexos, é o da patologia infecciosa, que é mais frequente no sexo feminino (53.1%). (Quadro II). A distribuição pelos vários escalões etários dos grupos de patologias estudados, mostra Quadro II Comorbilidade/Sexo Sexo Sexo Masculino Feminino χ 2 n=126 % n=64 % Rejeição aguda 19 15.0 24 37.5 ns Patologia vascular 26 20.6 6 9.3 ns Hipertensão arterial 72 57.1 29 45.3 ns Diabetes mellitus 25 19.8 8 12.5 ns Patologia infecciosa 19 15.1 34 53.1 p<0.01 Neoplasias 9 7.1 5 7.8 ns diferenças estatisticamente significativas no grupo da patologia vascular e no da DMT, que são mais frequentes na sexta década de vida, com frequências de 40.6% e 31.2%, respectivamente (Quadro III). A distribuição pelos vários tipos de terapêutica imunossupressora das patologias estudadas, identifica diferença estatisticamente significativa no grupo da rejeição aguda, que foi mais frequente nos doentes submetidos a terapêutica com P+AZA+CsA+ATG, tendo afectado 38.8% dos doentes a quem essa terapêutica foi administrada (Quadro IV). Idade (anos) Quadro III Comorbilidade/Escalões etários (à data do transplante) < 20 21-30 31-40 41-50 51-60 >61 19 (10%) 46 (24.2%) 47 (24.8%) 36 (18.9%) 32 (16.8%) 10 (5.3%) Rejeição aguda 4 (21%).0 12 (26.1%) 12 (25.5%) 5 (13.9%) 7 (21.9%) 3 (30%) ns Patologia vascular 4 (8.7%)0 5 (10.6%) 6 (16.7%) 13 (40.6%) 4 (40%) p<0.01 HTA 8 (42%).0 25 (54.3%) 25 (53.2%) 19 (52.7%) 20 (62.5%) 4 (40%) ns Diabetes mellitus 5 (10.8%) 7 (14.9%) 9 (25%).0 10 (31.2%) 2 (20%) p<0.01 Patologia infecciosa 7 (36.8%) 11 (23.9%) 9 (19.1%) 10 (27.8%) 13 (40.6%) 3 (30%) ns Neoplasias 1 (2.2%) 5 (10.6%) 2 (5.5%)0 6 (18.7%) ns χ 2 Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão 307

Carmen do Carmo, Luís Freitas, Fernando Macário, Jorge Pratas, Alfredo Mota, Mário Campos Quadro IV Comorbilidade/Terapêutica P+AZA+CsA P+AZA+CsA+ATG P+AZA P+AZA+ATG n=110 (57.9%) n=67 (35.3%) n=11 (5.8%) n=2 (1%) Rejeição aguda 15 (13.6%) 26 (38.8%) 2 (18.2%) - p<0.01 Patologia vascular 16 (14.5%) 12 (17.9%) 2 (18.2%) 2 (100%) ns Hipertensão arterial 54 (49%).0 39 (58.2%) 6 (54.5%) 2 (100%) ns Diabetes mellitus 21 (19.1%) 09 (13.4%) 2 (18.2%) 1 (50%)0 ns Patologia infecciosa 24 (21.8%) 23 (34.3%) 5 (45.5%) 1 (50%)0 ns Neoplasias 07 (6.4%)0 06 (8.9%)0 1 (9.1%)0 - ns χ 2 DISCUSSÃO Em termos gerais, as características dos doentes, à data do transplante, indiciavam um bom prognóstico. A maioria dos doentes tinha menos de quarenta anos de idade e fez hemodiálise por um período inferior a três anos. O factor de risco vascular mais frequente era a HTA, que afectava menos de metade dos doentes e os restantes factores eram desprezíveis 11. Durante o período do estudo o tipo de patologia identificado foi o esperado para este tipo de doentes. A frequência dessas patologias foi idêntica à das séries publicadas em países com características demográficas e ambientais semelhantes às nossas, à excepção da patologia vascular, cuja frequência foi muito inferior à esperada. Tal facto traduz uma particularidade do grupo estudado, que é a baixa frequência de patologia vascular pré transplante e, também, um bom controlo dos factores de risco vascular após o transplante, condição fundamental para prevenir o desenvolvimento deste tipo de patologia 1,12,13. Verificou-se uma maior frequência de RA nos doentes submetidos a terapêutica com P+AZA+ +CsA+ATG. Os doentes com indicação para este tipo de terapêutica apresentam aspectos clínicos e laboratoriais tradutores de elevado risco imunológico, que deve ser adequadamente controlado para diminuir a probabilidade de desenvolver RA. No entanto, a maior agressividade da terapêutica faz-se acompanhar de maior frequência de efeitos secundários, que muitas vezes obrigam a redução das doses dos imunossupressores e, também, a maior probabilidade de interacções medicamentosas que poderão levar a alterações da farmacocinética e diminuição dos níveis séricos dos fármacos utilizados com consequente diminuição da sua eficácia 14. Tais mecanismos explicativos embora não excluam outras hipóteses, parecem-nos relevantes para entender a frequência elevada de RA neste grupo terapêutico. A patologia vascular e a DMT apresentaram uma frequência, significativamente, mais elevada na sexta década de vida. No grupo estudado, só 22.1% dos doentes tinham mais de cinquenta anos à data do transplante, o que contribuiu, em termos gerais, para os bons resultados obtidos. A patologia infecciosa, com particular destaque para as infecções do tracto urinário, foi mais frequente em doentes do sexo feminino. Nos indivíduos submetidos a terapêutica com P+AZA+CsA+ATG e com maior frequência de RA, também se verificou uma maior frequência de infecções, em virtude do maior grau de imu- 308 Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão

COMORBILIDADE EM DOENTES COM ENXERTO RENAL FUNCIONANTE HÁ PELO MENOS DEZ ANOS nossupressão condicionado pela maior agressividade da terapêutica 15. As neoplasias mais frequentes foram os carcinomas espinhocelulares da pele. O diagnóstico precoce desta patologia, fruto da vigilância apertada e do elevado grau de suspeição, foi fundamental para permitir uma terapêutica atempada e agressiva e contribuir dessa forma para aumentar a sobrevivência destes doentes 16,17. A elevada frequência de infecção por VHC, diagnosticada após o transplante, embora seja sobreponível ao publicado em outras séries, poderá não corresponder, na sua totalidade a casos de novo. Algumas das infecções poderiam ser anteriores ao transplante, mas não foram diagnosticadas porque eram assintomáticas. Os doentes não apresentavam elevação das aminotransferaseas e, não existia forma de efectuar o diagnóstico serológico até 1989 13,18. Apesar da comorbilidade registada e do tempo de evolução pós-transplante, apenas 8.9% dos doentes apresentavam, à data do estudo, uma TFG inferior a 30 ml/min. Tal facto traduz uma vigilância rigorosa que permitiu terapêuticas adequadas e bem controladas de forma a garantir os bons resultados verificados. Correspondence to: Dr. Carmen do Carmo Serviço de Nefrologia Hospitais da Universidade de Coimbra Avenida Dr. Bissaya Barreto, 52 3000-075 Coimbra Correio electrónico: pmgf@mail.telepac.pt Referências 1. Djamali A, Premasathian N, Pirsch J. Outcomes in kidney transplantation. Seminars Nephrol 2003; 3: 306-16. 2. Rosenberger J, van Dijk JP, Nagyova I, et al. Predictors of perceived health status in patients after kidney transplantation. Transplantation 2006; 81:1306-10. 3. Adams PL. Long-term patient survival: strategies to improve overall health. Am J Kidney Dis 2006; 47 (suppl 2): S65-S85. 4. Magee CC, Pascual M. Update in renal transplantation. Arch Intern Med 2004;164: 1373-88. 5. Racusen LC, Solez K, Colvin RB, et al. The Banff 97 working classification of renal allograft pathology. Kiney Int 1999; 55:713. 6. Chobanian AV, Bakris GL, Black HR, et al. Seventh Report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation and Treatment of High Blood Pressure. Hypertension 2003; 42:1206-52. 7. American Diabetes Association. Diagnosis and classification of diabetes mellitus. Diabetes Care 2005; 28 (suppl 1): S37-S42 8. Third report of the National Cholesterol Education Program (NCEP) Expert Panel on the Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults (Adult Treatment Panel III). Final Report. Circulation 2002;106:3143-421. 9. Quan H, Sundararajan V, Halfon P, et al. Coding algorithms for defining comorbidities in ICD-9-CM and ICD- 10 administrative data. Med Care 2005; 43: 1130-9. 10. Taylor A, Nally JV. Clinical applications of of renal scintigraphy. Am J Radiol 1995; 64:31-41. 11. Scandling JD. Kidney transplant candidate evaluation. Semin Dial 2005;18: 487-94. 12. Braun EB. Long-term complications of renal transplantation. Kidney Int 1990;37: 1363-78. 13. Hariaran S. Recommendations for the outpatient monitoring of kidney transplant recipients. Am J Kidney Dis 2006;47 (4 Suppl 2): S22-S36. 14. Alberu J, Urrea EM. Immunosuppression for kidney transplant recipients: current strategies. Rev Invest Clin 2005;57 (2): 213-24. 15. Parasuraman R, Yee J, Karthikeyan V, del Busto R. Infectious complications in renal transplant recipients. Adv Chronic Kidney Dis 2006;13:280-94. 16. Gomez-Roel X, Leon-Rodriguez E. Malignant neoplasias in renal transplantation recipients. Rev Invest Clin 2005;57:225-9. 17. Kauffman HM, Cherikh WS, McBride MA, Cheng Y, Hanto DW. Post-transplant de novo malignancies in renal transplant recipients: the past and present. Transpl Int 2006;19:607-20. 18. Kamar N, Rostaing L, Selves J, et al. Natural history of hepatitis C virus-related liver fibrosis after renal transplantation. Am J Transplant 2005;5:1704-12. Revista Portuguesa de Nefrologia e Hipertensão 309