Jongos e Calangos: construindo um mapa cultural dos descendentes da última geração de africanos no Rio de Janeiro.

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Transcrição:

Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro APERJ Praia de Botafogo, 480 2º andar - Rio de Janeiro RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 Jongos e Calangos: construindo um mapa cultural dos descendentes da última geração de africanos no Rio de Janeiro. Eric Brasil Nepomuceno - UFF Orientador:Hebe Mattos - UFF INTRODUÇÃO No dia 13 de maio, cativeiro acabou, e os escravos gritavam liberdade senhor. i As histórias de velhos jongueiros e calangueiros impregnam as falas dos moradores das comunidades rurais negras do Rio de Janeiro, que descendem da última geração de africanos aqui desembarcados durante o período de expansão da economia cafeeira, na primeira metade do século XIX. A construção dessa memória - ligada à experiência histórica destes últimos africanos em busca da liberdade - apresenta nuances relacionadas à questões políticas que perpassaram o século XX. Este texto pretende abordar a importância das manifestações culturais, principalmente as expressões musicais, neste processo de reorganização da memória e da história, e sua luta por legitimidade e por direitos, que é vivida atualmente por diversas comunidades rurais negras no estado do Rio de Janeiro, e estabelecer um mapa cultural dos descendentes da última geração de africanos. A historiografia clássica que aborda a inserção social dos libertos após a abolição, muito influenciada pelas obras de Gilberto Freyre e Frank Tannebaum dos anos 1930, esteve sempre diretamente ligada aos estudos da escravidão, e considera a situação do negro no pós-abolição e as relações raciais como simples herança da escravidão. A historiografia dos anos 1960 direcionou-se para a crítica contundente à democracia racial (que caracteriza a leitura mais comum da obra de Gilberto

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 Freyre), remarcando a violência da escravidão brasileira, que teria como características centrais a inexistência de espaços de convivência entre cativos e libertos. Esta vertente despersonalizou o escravo, elevando a noção de mercadoria humana ao extremo. Logo, esta mercadoria viva apresentaria uma personalidade anômica e total ausência de vida familiar, vida em comunidade e mesmo de vida cultural. ii A partir dos anos 1970, a abordagem sobre a inserção social dos libertos no pós-abolição tomaria novo rumo. Há um crescente interesse pela vida familiar e comunitária dos escravos, e também por espaços autônomos de produção destes escravos (como uma roça e a própria família). Teoricamente, a incorporação do conceito do escravo como agente foi talvez o que tenha permitido a rica revisão historiográfica que a literatura sobre o tema tem apresentado. iii A ênfase agora recai sobre o papel social do próprio escravo. O primeiro espaço investigado sob tal perspectiva foi o Caribe e hoje, no Brasil, já há uma grande quantidade de pesquisadores e trabalhos com sua abordagem orientada pela História Social da Escravidão. Por conseguinte, os recentes estudos sobre as sociedades pós-emancipação têm como ponto central de análise a experiência dos próprios libertos, suas demandas e atitudes perante o processo de emancipação e dos novos contextos sociais por eles produzidos. As estratégias assumidas pelos últimos africanos chegados ao Rio de Janeiro em seus anos de escravidão e nos primeiros anos de liberdade, marcam ainda hoje muitas comunidades rurais do Estado. Tais comunidades possuem uma memória coletiva, transmitida de forma regular, sobre o tempo do cativeiro e da abolição, além da construção de uma identidade negra específica. A construção dessa memória coletiva regional se faz como função de questões políticas e identitárias vividas no tempo presente. iv Em outras palavras, a memória se constrói no presente, levando em conta a conjuntura atual, política, social, econômica e cultural.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 ARTIGO 68 As lutas políticas e a busca de identidades negras ganharam grande força a partir dos anos 1990. Seu marco é o artigo 68 da Constituição federal de 1988. Este artigo afirma que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. v Portanto, é importante esclarecer que o termo quilombo aqui não é empregado no seu sentido histórico (um local onde escravos fugidos se estabeleciam), mas sim no sentido antropológico, reconstruído recentemente pela ABA (Associação Brasileira de Antropologia), que afirma serem remanescentes de quilombo as comunidades que descendem de escravos e que possuem um tipo organizacional específico; sua territorialidade está caracterizada por um uso comum, a ocupação do espaço tem base em laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade (ABA, 1994). Não havendo necessidade de uma origem ligada a um quilombo clássico, histórico, formado por escravos fugidos. vi No Estado do Rio de Janeiro, estas comunidades rurais negras estão concentradas em três regiões: o vale do Paraíba, o Litoral Sul fluminense e o Litoral Norte fluminense vii. Estas três regiões tiveram um grande afluxo de africanos de línguas banto na fase ilegal do tráfico de escravos (1831-1850), período da expansão cafeeira no estado. Entretanto, com a abolição tais regiões sofreram um grande esvaziamento econômico, o que proporcionou certa estabilidade às comunidades negras que ali se mantiveram. Esta estabilidade permaneceu até o último cartel do século XX, quando com o crescimento, principalmente, do turismo na região, uma série de conflitos envolvendo as comunidades negras e pessoas que reivindicavam a posse das terras ocupadas se desenvolveram, ocasionando em muitos casos a desestruturação dos modos de vida e mesmo a expulsão das comunidades negras de seus territórios. Ora, com o artigo 68 da constituição, essas comunidades se reorganizaram em torno da designação de remanescente de quilombo para poder lutar pelo seu direito à posse da terra. Neste

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4 ponto as manifestações culturais de origem africana, que eram praticadas ainda no tempo do cativeiro, representam um papel fundamental, pois representam uma forte delimitação de fronteiras, reforçando a posição da comunidade em relação à sociedade ao seu redor. Portanto as manifestações culturais negras afirmam identidades e atuam de forma essencial na luta política contra as desigualdades raciais e culturais, agindo como ligação com o passado e como legitimador desse passado, que tem como função atual alcançar direitos e fortalecer uma identidade social negra positiva construída com base na experiência da escravidão. Este vínculo com o tempo do cativeiro é estabelecido também pela memória e pela história (além das manifestações culturais) que são contadas e recontadas, construídas e reconstruídas dia-a-dia, acompanhando as necessidades, aspirações e opções destas comunidades perante a sociedade viii. PROJETO DE PESQUISA Esta comunicação é um resumo do projeto de pesquisa intitulado Jongos, calangos, fados e folias: memória e música negra em comunidades rurais do Rio de Janeiro, sob coordenação conjunta das Professoras Hebe Mattos e Martha Abreu ix que, em vista da grande relevância e atualidade da questão, pretende registrar e inventariar tanto as expressões musicais quanto a história e a memória das comunidades que as protagonizam, enfatizando o tratamento histórico das manifestações culturais. Tal esforço é fundamental para o resgate do patrimônio imaterial da cultura negra no Rio de Janeiro. Também é objetivo do projeto inventariar a produção de pesquisadores e folcloristas, além de registros áudio-visuais, da memória atual e das manifestações culturais ligadas à herança dos grupos africanos chegados ao Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Apoiar o movimento pelo reconhecimento e a valorização dessas manifestações e a formação de novos pesquisadores sobre o tema são outros objetivos do projeto. O objetivo final é a construção de um acervo público com catálogo acessível na web, que represente um centro de referência no assunto, contendo tudo o que foi inventariado e registrado ao

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 longo do projeto. Além da produção de um DVD de caráter didático e historiográfico que será distribuído gratuitamente em escolas e bibliotecas públicas. Este projeto se encontra em sua fase inicial, voltada para o levantamento bibliográfico, áudiovisual, além do levantamento das comunidades e de seus personagens principais detentores de sua memória para a formação do acervo público. Podemos perceber que apesar do número razoável de manifestações e comunidades registradas tanto por folcloristas dos séculos XIX e XX, quanto por folcloristas e antropólogos que nos são contemporâneos (tal como o IPHAN, o Museu do Folclore e inúmeros antropólogos em seus projetos de pesquisa), não foi dada ênfase à memória destas comunidades; sua história foi relegada ao segundo plano. Por isso, a maior relevância deste projeto é o tratamento histórico imposto a tais expressões musicais e a suas respectivas comunidades, valorizando sua ligação com o tempo do cativeiro e com a última geração de africanos introduzidas forçadamente no Rio de Janeiro Oitocentista. COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO Existem três áreas distintas onde se encontram as comunidades remanescentes de quilombo no Rio de Janeiro. A área I é a do Vale do Paraíba; área II é o Litoral Sul fluminense; e a área III é o Litoral Norte fluminense. A região do Vale do Paraíba foi, durante a primeira metade do século XIX, a grande receptora de escravos africanos, principalmente de origem banto, ligada a expansão da economia cafeeira. Ali se encontram algumas comunidades oficialmente classificadas como remanescentes de quilombo, como: São José da Serra, bairro rural de Santa Izabel, distrito de Valença. No Litoral Sul Fluminense há três comunidades oficialmente reconhecidas, Marambaia, no município de Mangaratiba, Bracuhy, no município de Angra dos Reis, e Campinho da Independência, no município de Paraty. Esta região foi palco do desembarque clandestino de escravos até 1850. O Litoral Norte fluminense apresentou uma grande concentração de escravos desde o século XVIII, e também foi

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6 local de desembarque clandestino. Nesta localidade a Rasa, no município de Búzios, a Caveira, no município de São Pedro da Aldeia e Quissamã são comunidades remanescentes de quilombo. MAPA CULTURAL Com base na localização dessas comunidades e no levantamento dos registros dos folcloristas do século XIX e XX, podemos estabelecer um interessante mapa cultural da presença das expressões musicas negras nas regiões rurais do estado do Rio de Janeiro. Este mapa cultural segue um movimento migratório específico. As atuais comunidades que auto-intitulam-se remanescentes de quilombo coincidem territorialmente com os locais onde houve a maior incidência de africanos que desembarcaram no Rio de Janeiro clandestinamente até a década de 1850. Os portos clandestinos do início do século XIX se localizavam principalmente no litoral sul fluminense região de Mangaratiba, Paraty, Angra dos Reis e no litoral norte fluminense região de Búzios, São Pedro da Aldeia, Cabo Frio exatamente onde hoje se encontram muitas das comunidades remanescentes de quilombo, que apresentam manifestações culturais muito ligadas ao tempo do cativeiro, especialmente com a última geração de africanos aqui desembarcados, como o jongo e o calango. Os africanos desembarcados tinham como principal destino a região do Vale do Paraíba, para as plantações de café. Local onde encontramos hoje em dia expressiva presença de manifestações culturais com características em comum às encontradas nos litorais norte e sul do Estado; assim como as comunidades que comportam essas manifestações culturais nas referidas regiões apresentam estruturas sociais muito próximas. Portanto, o mapa das comunidades rurais negras remanescentes de quilombo e suas ricas expressões culturais segue o movimento de desembarque e de migração forçada dos últimos africanos escravizados que aportaram no Rio de Janeiro: dos portos clandestinos do litoral rumaram para o Vale

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 7 do Paraíba, e suas grandes fazendas de café, e, em menor escala, para o Norte fluminense, para as fazendas de açúcar. CONCLUSÃO Portanto, é possível construir um mapa cultural para os descendentes desta última geração de africanos chegados no Rio de Janeiro, seguindo o movimento migratório estabelecido por estes escravos. Sua herança cultural é sensível nas regiões onde passaram, e atualmente com a valorização de tal cultura, principalmente da música, e em particular do jongo fruto da busca por reconhecimento de seus direitos, as comunidades remanescentes de quilombo tem, além de sua forma de organização social, estas expressões culturais como carro-chefe na construção de uma identidade negra, capaz de delimitar fronteiras e valorizar seu modo de vida. Com isso, as manifestações musicais dessas comunidades, desempenham papel fundamental de elo com o passado, com o tempo do cativeiro. Repassada de geração em geração por uma memória coletiva, que é reconstruída a partir das questões atuais que atingem as comunidades, as tradições culturais são ponto estruturante das novas identidades negras que surgem (com caráter mais positivo do que nunca) para reafirmar o direito sobre uma determinada terra e, mais do que isso, transcendendo a luta territorial, para valorizar as heranças africanas dos povos brasileiros. NOTAS i Jongo de autoria de Djanira do Jongo, intitulado Treze de Maio, e cantado pelo grupo Jongo da Serrinha. ii RIOS, Ana Lugão e MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pósabolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. iii idem. p.25. Grifo meu. iv idem. p.43. v Artigo 68 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. vi ARRUTI, José Maurício e FIGUEREDO, André. Processos cruzados: configuração da questão quilombola e campo jurídico no Rio de Janeiro IN: Territórios Quilombolas: reconhecimento e titulação de terras. Boletim informativo do NUER, vol.2, n.2, 2005. p.73-93. vii Estas regiões e suas respectivas comunidades serão detalhadas mais adiante no texto.

Usos do Passado XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 8 viii RIOS, Ana Lugão e MATTOS, Hebe. op.cit. ix Com apoio de seus núcleos de pesquisa, o Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) e o Núcleo de Pesquisa em História Cultural (NUPEHC) respectivamente. Além do apoio da Petrobrás Cultural.