Rastreamento de Neoplasias no Idoso

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Transcrição:

Rastreamento de Neoplasias no Idoso 19 Capítulo Rodrigo Diaz Olmos Introdução O rastreamento de doenças, particularmente o rastreamento de neoplasias, é uma atividade que tem ganhado grande importância nas últimas décadas, a despeito da falta de boas evidências (ou até da presença de evidências de que cause mais prejuízos que benefícios) sobre sua real eficácia. É uma atividade classificada como prevenção secundária de acordo com o modelo da história natural da doença de Leavell & Clark 1. De acordo com estes autores, o aparecimento de uma doença dependeria da interação de um agente, do hospedeiro e do meio. As doenças teriam uma história natural que começaria com a exposição a situações de risco para seu desenvolvimento (período de pré-patogênese). Neste período estariam em ação os inúmeros determinantes sociais, econômicos, culturais e biológicos das doenças. Desta interação haveria a instalação da doença propriamente dita. A primeira fase deste período de patogênese seria a fase pré-sintomática (ou pré- -clínica), momento em que a doença já estaria instalada, mas ainda não teria produzido manifestações clínicas (doença latente), após esta fase haveria a manifestação clínica (horizonte clínico), inaugurando a fase de doença clínica, após a qual o indivíduo poderia evoluir para cura, cronicidade, invalidez ou morte. Este modelo, embora passível de críticas, foi e tem sido importante para instituição de medidas preventivas. Assim, medidas preventivas instituídas no período de pré-patogênese são chamadas de prevenção primária, e incluem inúmeras medidas de promoção à saúde, destinadas a evitar a exposição a situações de risco para o desenvolvimento das doenças. São medidas de caráter intersetorial e multidisciplinar, pois não são específicas do setor saúde, embora haja uma tendência de reduzir seu significado e amplitude e entendê-las apenas como medidas para modificar fatores de risco individuais como sedentarismo, tabagismo e dieta pouco saudável. As medidas de promoção à saúde têm a ver com distribuição de renda, emprego, lazer, cultura, educação, meio ambiente saudável, violência, discriminação e também com fatores de risco mais proximais como os anteriormente citados, entretanto não podem ser reduzidas apenas a estes últimos. A prevenção primária também inclui a proteção específica, as imunizações. A prevenção secundária, de acordo com a definição original de Leavell & Clark, tem por finalidade a detecção e tratamento precoces das doenças, a redução do tempo de doença, a limitação da incapacidade e a prevenção de novos eventos, sendo, desta forma, constituída por intervenções, tanto no período pré- -clínico (rastreamento), como no período de doença sintomática precoce (diagnóstico clí- 171

nico precoce, redução do tempo de doença, limitação da incapacidade e redução de novos eventos). O rastreamento (detecção precoce, screening ou check-up) visa, portanto, a detecção da doença em sua fase pré-clínica, através de marcadores bioquímicos, exames de imagem, questionários e, mesmo, medidas antropométricas com o objetivo de alterar a história natural da doença, evitando complicações, a cronicidade, a invalidez e a morte. Por fim, a prevenção terciária é aquela instituída na fase clínica ou sintomática avançada e tem por finalidade, basicamente a reabilitação do paciente. É importante notar que detecção precoce não é sinônimo de rastreamento, embora muitas vezes seja utilizada como referência ao rastreamento, uma vez que mesmo em pacientes que já apresentam sintomas é possível fazer diagnóstico precoce, a depender do acesso à saúde e da sensibilização da população quanto aos sinais e sintomas precoces da doença. O rastreamento é o diagnóstico precoce feito na fase pré-clínica. A crença de que o diagnóstico precoce está sempre associado a melhor prognóstico e de que as intervenções para se chegar ao diagnóstico precoce não apresentam eventos adversos, é amplamente disseminada e aceita pela população e estimulada por médicos, pelos responsáveis pelas políticas públicas e pela mídia, muitas vezes em virtude de conflitos de interesse. Neste capítulo, tentaremos demonstrar que o diagnóstico pré-clínico precoce pode ser útil em algumas poucas situações, mas está longe de ser a panacéia da medicina moderna. Tentaremos mostrar que na maioria das situações, o diagnóstico precoce pré- -clínico pode causar mais prejuízos do que benefícios, tanto individual como social e coletivamente. E também tentaremos mostrar porque os idosos são a população mais suscetível de apresentar prejuízos com a instituição disseminada de rastreamentos de doenças. Vale ressaltar que o rastreamento comumente também se refere à detecção de fatores de risco para outras doenças, como por exemplo, a detecção da hipertensão, da redução da densidade óssea (osteoporose) e do colesterol elevado, e também à detecção de uma série de outras condições patológicas (depressão, demência, insuficiência renal, diabetes, aterosclerose subclínica, doenças genéticas), embora o rastreamento de neoplasias seja possivelmente o principal escopo deste tipo de intervenção. Como deve ser um programa de rastreamento ideal uir Gray, ex-diretor do National Screening Committee (Comitê Nacional de Rastreamento) do Reino Unido costuma dizer: Todos os rastreamentos causam danos, alguns também produzem benefícios, e alguns poucos produzem mais benefícios que malefícios a um custo razoável 2. Este mesmo autor também menciona que o teste de rastreamento não deveria ser a unidade de análise, uma vez que o teste é apenas a primeira parte de um processo que deve ser avaliado como um todo. Por isso, a ideia é avaliar programas de rastreamento, que incluem o tipo de doença e a população a ser rastreada, a aplicação do teste, a confirmação do diagnóstico, e o acesso ao tratamento em tempo hábil. Idealmente apenas programas de rastreamento que produzam benefícios líquidos (benefícios > malefícios) deveriam ser implantados, e mesmo estes, devem ter uma gestão ótima de qualidade sob o risco de sua eficácia demonstrada em estudos não ser traduzida para uma efetividade na prática. A Figura 19.1 mostra os passos de um programa de rastreamento com os possíveis resultados de cada passo e os possíveis efeitos deletérios na forma de um diagrama. O objetivo de um rastreamento não é apenas fazer diagnósticos precoces, é, através de diagnósticos precoces, reduzir a morbimortalidade da população alvo. Assim, diagnóstico precoce é condição necessária para que um rastreamento seja efetivo, mas não é condição suficiente. Dizer que um teste consegue diagnosticar precocemente uma doença não significa que ele seja efetivo e produza bons resultados, é apenas o primeiro passo para que ele seja potencialmente eficaz. A Tabela 19.1 mostra alguns itens relacionados à doença, ao teste e ao sistema de saúde a serem considerados para que um programa de rastreamento produza benefícios líquidos na população para o qual é oferecido. Doenças passíveis de rastreamento são doenças que produzem impacto significante sobre a saúde de determinada população e que apresentam um período pré-clínico (ou 172

População total População elegível Peneira Fase de rastreamento Teste negativo Tranquilização parcial Resultado do teste + Separação Fase de diagnóstico Falsos positivos Teste negativo Tranquilização parcial Resultado do teste + Intervenção Sobrediagnóstico Figura 19.1 Fluxo de um programa de rastreamento. Adaptado de Raffle AE, Gray JA. Screening: Evidence and Practice. Oxford University Press, 2009. Tabela 19.1 Características de um programa de rastreamento ideal Características da doença Impacto significante sobre a saúde da população Longo período assintomático (pré-clínico) durante o qual a detecção precoce é possível elhor prognóstico com o tratamento precoce Características do teste de rastreamento Suficientemente sensível para detectar a doença durante a fase assintomática Suficientemente específico para minimizar os resultados falsos positivos Aceitável para os pacientes (simples e inócuo) Custo aceitável Características do tratamento elhor eficácia quando instituído precocemente Disponibilidade e fácil acesso Complicações, efeitos colaterais e custo aceitáveis Características da população a ser rastreada Prevalência da doença suficientemente elevada para justificar o rastreamento Acesso adequado aos serviços diagnósticos e de tratamento para a doença rastreada Conscientização sobre os limites do rastreamento, seu real benefício e possíveis riscos Características do sistema de saúde Recursos e serviços disponíveis para levar o programa adiante Gestão adequada do programa assintomático) longo o suficiente para que seja possível sua detecção nesta fase. O teste de rastreamento deve ser um teste suficientemente sensível para identificar indivíduos de alto risco para a doença ao mesmo tempo em que deve ser suficientemente específico para evitar um grande número de resultados falsos- -positivos. Na implantação de um programa de rastreamento, além da comprovação de que o tratamento é mais eficaz quando aplicado a indivíduos com a doença encontrada pelo rastreamento em fases mais precoces, devem-se levar em consideração os efeitos colaterais do teste de rastreamento, dos testes confirmatórios (geralmente invasivos) e do tratamento da doença, os custos implicados em todos estes passos, as implicações éticas relacionadas à detecção de uma doença em uma pessoa saudável, o acesso adequado aos exames diagnósticos e ao tratamento, a taxa de falsos negativos e a consequente falsa segurança, a taxa de falsos-positivos e a potencial saturação dos serviços diagnósticos disponíveis e os danos causados pelo tratamento de pessoas com doenças clinicamente insignificantes (sobrediagnóstico) 3,4. De todos os itens considerados acima, evidências de boa qualidade que comprovem a efetividade do rastreamento em reduzir morbimortalidade, com poucos eventos adversos e a um custo razoável são os principais pré-requisitos para que um programa de rastreamento produza benefícios líquidos. A discussão sobre a efetividade dos programas de rastreamento tem sido um terreno de grandes embates entre grupos com interesses no diagnóstico de doenças e grupos que avaliam as evidências disponíveis de maneira isenta e independente, muitas vezes contra- 173

riando tais grupos de interesse. A avaliação da efetividade de rastreamentos é difícil, pois à enraizada e disseminada crença no diagnóstico precoce se aliam inúmeros vieses que fazem com que os rastreamentos pareçam muito mais efetivos e benéficos do que realmente são. Os estudos ideais que fornecem evidências diretas da efetividade dos rastreamentos são ensaios clínicos randomizados, estudos caros e que envolvem uma logística complexa, pois são grandes e de longa duração. Por outro lado, estudos de desenho mais simplificado, como estudos observacionais (coorte e caso-controle) e estudos ecológicos, fornecem evidências indiretas e são muito sujeitos a vieses de difícil eliminação ou controle 5. Para compreender melhor os conceitos envolvidos na avaliação de efetividade de um rastreamento vale a pena nos determos um pouco na descrição dos três principais vieses presentes em estudos de rastreamento que não os ensaios clínicos e sobre um conceito central em todos os programas de rastreamento (inclusive os efetivos) denominado sobrediagnóstico (overdiagnosis). Viés do participante saudável (healthy screenee bias) Em estudos observacionais sobre rastreamento a comparação ocorre entre indivíduos que optaram por serem rastreados e indivíduos que não fizeram rastreamento (a escolha do rastreamento é pessoal). Este fato, por si só, já faz com que o grupo de pessoas que optou pelo rastreamento seja diferente quanto ao prognóstico da doença em questão, independentemente do efeito do rastreamento. Geralmente pessoas que tem mais preocupações com a saúde costumam ter uma vida mais saudável em muitos aspectos (não fumam, tem uma dieta melhor, praticam mais atividade física) o que faz com que seu prognóstico seja melhor antes mesmo do rastreamento. Além disso, quando comparamos pessoas rastreadas sabemos que elas eram assintomáticas, uma vez que este é o critério para ser rastreado. Em relação ao grupo controle (não rastreado) não há certeza que eram totalmente assintomáticos. Estes dois fatos fazem com que a mortalidade pela doença no grupo não rastreado seja relativamente maior que no grupo de rastreamento, dando a impressão que o rastreamento foi o responsável por esta diferença 6. Viés de tempo ganho ou de antecipação (lead time bias) Quando comparamos pacientes com câncer cujo diagnóstico foi realizado por rastreamento com pacientes com câncer cujo diagnóstico foi baseado na apresentação clínica, a sobrevida do grupo de pacientes com diagnóstico mediante rastreamento será sempre maior que a sobrevida dos pacientes com diagnóstico pela apresentação clínica, mesmo que o rastreamento não tenha tido nenhum impacto em prolongar a vida do doente. Isto ocorre porque o rastreamento, por definição, antecipa o diagnóstico em relação à apresentação clínica, mesmo que a data da morte não se altere (não haja prolongamento da vida) e porque a sobrevida é o tempo de vida contado a partir do diagnóstico, logo se o momento do diagnóstico for antecipado a sobrevida será maior 3,4. O resultado prático deste viés é que há um melhor prognóstico aparente (maior sobrevida) de pacientes cujo câncer foi diagnosticado pelo rastreamento, o que leva ao fortalecimento da crença de que o rastreamento é efetivo. Suponha que um homem tenha o início biológico de uma neoplasia de cólon em 2001 e morra em 2015 em decorrência desta neoplasia. Se ele tivesse sido diagnosticado clinicamente em 2011 (anemia e perda de peso, por exemplo) sua sobrevida teria sido quatro anos. Entretanto se ele tivesse sido diagnosticado por rastreamento (portanto antes das manifestações clínicas) em 2009, sua sobrevida teria sido seis anos. Ele ganhou dois anos de diagnóstico, mas não houve prolongamento de sua vida. A Figura 19.2 ilustra este conceito. Viés de duração da doença (lenght time bias) Sabe-se que as neoplasias tem comportamento distinto que varia em função do grau histológico, do sistema imune do portador, de exposições ambientais, dentre outras variáveis. Temos neoplasias agressivas, cujo período pré-clínico (período em que o rastreamento é possível) é curto e neoplasias indolentes, cujo período pré-clínico é longo. Em função desta observação sabemos que o rastreamento tem mais probabilidade de detectar neoplasias cujo período pré-clínico é mais longo e, portanto, menos 174

História natural da doença Início biológico 4 anos Período assintomático Diagnóstico clínico 3 anos Doença clínica orte População não rastreada Diagnóstico baseado na apresentação clínica 3 anos orte Tempo médio do diagnóstico até a morte = três anos População rastreada 2 anos Sintomas clínicos 3 anos orte Diagnóstico por rastreamento 5 anos orte Figura 19.2 Viés de tempo ganho ou de antecipação. Tempo médio do diagnóstico até a morte = cinco anos agressivas (melhor prognóstico) 3,4. Este fato, aliado ao viés de antecipação, faz com que o prognóstico de neoplasias detectadas por rastreamento pareça ainda melhor. Este fenômeno acontece mesmo que partamos do pressuposto de que todas as neoplasias detectadas pelo rastreamento são progressivas e, mais cedo ou mais tarde, se manifestariam clinicamente e poderiam levar à morte. Entretanto, este aparente ganho em prognóstico é maximizado pelo fato de que uma parcela significativa das neoplasias detectadas por rastreamento não são progressivas, são doenças clinicamente não significativas, que não teriam se manifestado clinicamente e muito menos levado à morte se não tivessem sido detectadas pelo rastreamento (viés do sobrediagnóstico). Alguns autores consideram que o viés de duração de doença puro não inclui os casos de doenças indolentes não progressivas (sobrediagnóstico), mas apenas os casos de doença progressiva de evolução mais favorável. Entretanto, do ponto de vista prático é difícil separar estas duas entidades e o efeito final é o mesmo, fazer com que o grupo de neoplasias encontradas pelo rastreamento seja um grupo de neoplasias de excelente prognóstico, contribuindo para alimentar a crença no rastreamento. A Figura 19.3 mostra graficamente este conceito. Rastreamento Rastreamento Rastreamento Figura 19.3 Viés de duração da doença. 175

Sobrediagnóstico (overdiagnosis) O sobrediagnóstico é definido como uma doença clinicamente insignificante (pseudodoença), que não teria causado problemas ao paciente caso não tivesse sido detectada por alguma atividade diagnóstica (rastreamento ou achados em exames realizados por outra indicação incidentalomas) 7-9. É diferente de um resultado falso positivo, uma vez que o falso positivo se refere ao resultado do exame de rastreamento que depois não é confirmado pelo exame diagnóstico confirmatório. O sobrediagnóstico é um verdadeiro positivo, o teste confirmatório é positivo, confirma o diagnóstico, porém é um diagnóstico sem significado clínico. No caso das neoplasias, o sobrediagnóstico é uma neoplasia do ponto de vista anatomopatológico, mas seu comportamento clínico não é significativo. Ela pode regredir espontaneamente, pode se manter estável ou até progredir tão lentamente que o paciente morrerá de outra doença antes que a neoplasia se manifeste clinicamente. Isto faz com que este tipo de diagnóstico (sobrediagnóstico) só traga malefícios ao paciente, principalmente os relacionados ao tratamento da neoplasia em questão. Estima-se que 1,3 milhões de mulheres foram sobrediagnosticadas com câncer de mama em virtude do rastreamento nos últimos 30 anos nos EUA, e tratadas sem necessidade 10. O rastreamento em idosos não deveria fugir do mesmo crivo da avaliação de efetividade dos rastreamentos em geral. A maioria dos rastreamentos efetivos em adultos só é válida até certa idade, a partir da qual os malefícios possivelmente sobrepujam os benefícios. Particularmente nos rastreamentos de neoplasias, a maior incidência de neoplasias indolentes (não progressivas) e de neoplasias progressivas de evolução lenta, mas cujo diagnóstico pré-sintomático não traz benefício em virtude da mortalidade por outras causas, aumenta a chance de que o rastreamento produza mais danos que benefícios nesta faixa etária, mesmo se considerarmos rastreamentos benéficos em populações mais jovens. Além disso, a maioria dos ensaios clínicos de rastreamento não inclui grande proporção de idosos. Há críticas ao fato de que muitos rastreamentos não são recomendados aos idosos apenas com base na idade. Sabemos que a variabilidade individual do estado de saúde e do grau de incapacidade aumenta com a idade, o que torna a individualização de dados de estudos mais difícil neste grupo. Uma possibilidade na avaliação do potencial benefício de um rastreamento de neoplasia em idosos deve começar pela consideração do risco de morrer pelo câncer detectado por rastreamento, uma vez que o benefício potencial máximo de um rastreamento é definido por este risco e não pelo seu risco de ser diagnosticado com câncer. Encontrar um câncer assintomático em uma pessoa que morrerá de outra causa antes que o câncer se torne sintomático não beneficia o paciente, ao contrário, só lhe causará mais sofrimento. A avaliação deste risco deverá incluir a avaliação de todas as comorbidades e limitações do paciente e seu risco de morrer em virtude deste conjunto de problemas. Assim, é possível que um rastreamento efetivo para pessoas mais jovens e que não é geralmente recomendado a partir de determinada idade possa ser oferecido para alguns idosos fora desta recomendação 11. Recomendações de rastreamento são realizadas por inúmeras sociedades de especialistas e entidades de saúde e variam muito em virtude de uma série de questões, principalmente relacionadas a interpretações enviesadas das evidências de efetividade e benefício do rastreamento. Há uma tendência de que as sociedades de especialistas incluam mais rastreamentos em sua lista de recomendações do que entidades independentes que avaliam as evidências de forma sistemática e incluem em suas avaliações os potenciais danos do rastreamento, os custos e o impacto sobre o sistema de saúde. Desta forma, consideramos adequado seguir as recomendações de duas entidades isentas e independentes, o US Preventive Services Task Force (USPSTF) e o Canadian Task Force on Preventive Health Care (CTFPHC), que fazem avaliações amplas das evidências sobre rastreamentos e lançam recomendações de qualidade a respeito. As Tabelas 19.2 e 19.3 mostram os graus de recomendação e as recomendações de rastreamento para algumas neoplasias. A seguir comentaremos algumas das recomendações mais relevantes de rastreamento de neoplasias e sua implicação para a população idosa. 176

Tabela 19.2 Classificação das recomendações pelo USPSTF A O USPSTF recomenda fortemente que o médico forneça a intervenção aos pacientes elegíveis (Há boas evidências de que a intervenção melhora importantes desfechos de saúde e que os benefícios são substancialmente maiores que os malefícios) B O USPSTF recomenda que o médico forneça a intervenção aos pacientes elegíveis (Há evidências razoáveis de que a intervenção melhora importantes desfechos de saúde e que os benefícios são maiores que os malefícios) C O USPSTF não recomenda nem contra nem a favor a realização (ou oferecimento) da intervenção rotineiramente (Há evidências razoáveis de que a intervenção pode melhorar importantes desfechos de saúde, mas conclui que o balanço dos benefícios e malefícios é muito próximo para justificar uma recomendação geral) D O USPSTF recomenda contra a realização rotineira da intervenção para pacientes assintomáticos (Há evidências razoáveis de que a intervenção não é efetiva ou causa mais malefícios que benefícios) I O USPSTF conclui que as evidências são insuficientes para recomendar contra ou a favor a provisão rotineira da intervenção (Evidências de que a intervenção é efetiva não existem, são de baixa qualidade ou conflitantes, e o balanço entre benefícios e malefícios não pode ser determinado) Tabela 19.3 Recomendações da USPSTF para rastreamento de algumas neoplasias Neoplasias Câncer de bexiga (2011) Câncer de mama (2009) Câncer de Colo de útero (2012) Câncer Colorretal (2008) Câncer de testículo (2011) Câncer de pulmão (2013) Câncer de ovário (2012) Câncer de pâncreas (2004) Câncer de próstata (2012) Câncer de cavidade oral (2013) Câncer pele (2009) Recomendação Não há evidências suficientes para avaliar o balanço entre benefícios e malefícios do rastreamento de câncer de bexiga (I) Recomenda-se o rastreamento de mulheres de 50 a 74 anos a cada dois anos com mamografia (B) Em mulheres abaixo dos 50 anos a recomendação deve ser individualizada, levando-se em consideração os valores das pacientes em relação aos benefícios e malefícios (C) Não há evidências para avaliar o balanço entre riscos e benefícios do rastreamento de mulheres acima de 75 anos (I) Recomenda-se rastrear mulheres (Papanicolau) que tenham colo de útero, dos 21 aos 65 anos, a cada três anos (A) Recomenda-se contra o rastreamento de mulheres acima dos 65 anos que tenham tido um rastreamento prévio adequado e não tenham alto risco para desenvolver câncer de colo de útero (D) Recomenda-se rastrear homens e mulheres dos 50 aos 75 anos, com pesquisa de sangue oculto nas fezes, sigmoidoscopia ou colonoscopia (A) Recomenda-se contra o rastreamento de rotina na faixa etária dos 76 e 85 anos, embora existam situações que suportem o rastreamento em pacientes individuais (C) Recomenda-se contra o rastreamento em pacientes acima de 85 anos (D) Recomenda-se contra o rastreamento (D) Recomenda-se rastreamento anual com tomografia computadorizada de baixa dose em adultos de 55 a 80 anos com história de tabagismo de 30 maços ano que ainda fumam ou pararam há menos de 15 anos. O rastreamento deve ser descontinuado quando o indivíduo tenha parado de fumar por mais de 15 anos ou tenha desenvolvido algum problema de saúde que reduza substancialmente sua expectativa de vida ou a possibilidade ou o desejo de se submeter a uma cirurgia pulmonar curativa (B) Recomenda-se contra o rastreamento (D) Recomenda-se contra o rastreamento (D) Recomenda-se contra o rastreamento (D) Não há evidências suficientes para avaliar o balanço entre benefícios e malefícios do rastreamento de câncer oral (I) Não há evidências suficientes para avaliar o balanço entre benefícios e malefícios do rastreamento de câncer oral (I) Câncer de colo de útero É um dos rastreamentos de neoplasias mais consagrados e, juntamente com o rastreamento de câncer colo-retal, o único que tem grau de recomendação A pelo USPS- TF e pelo CTFPHC 12. A recomendação é de rastreamento com citologia cervical (Papanicolau) a cada três anos iniciando-se aos 21 anos (USPSTF) ou aos 25 anos (CTFPHC) e terminando aos 65 anos (USPSTF) ou aos 177

69 anos (CTFPHC). É bom lembrar que o rastreamento se refere a mulheres que são ou foram sexualmente ativas, não tem sintomas de câncer de colo de útero, tem o colo do útero e não estão imunossuprimidas. Para a população idosa acima desta faixa etária a recomendação é que o rastreamento não seja oferecido rotineiramente se a mulher apresentou 3 papanicolaus negativos sucessivos nos últimos dez anos. Caso isto não tenha ocorrido, recomenda-se prosseguir no rastreamento até que se obtenha 3 rastreamentos sucessivos negativos. No Brasil é comum que o Papanicolau seja feito com uma frequência muito maior que a preconizada e muitas vezes é utilizado para avaliar algum sintoma, o que é um grande equivoco do ponto de vista científico e de saúde pública. Aumentar a frequência de um rastreamento efetivo pode modificar o balanço favorável entre danos e benefícios e facilmente transforma-lo em um rastreamento que causa mais danos que benefícios. Quando se aumenta a frequência de um rastreamento aumenta-se a chance de diagnosticar doenças de significado incerto, doenças não progressivas, levando a todos os danos decorrentes do sobrediagnóstico e aumentando significativamente os custos sem trazer nenhum benefício adicional. Câncer colo-retal O câncer de cólon e reto é a terceira causa de morte por neoplasias em mulheres e a quarta em homens e o terceiro tipo de câncer mais comum em homens e mulheres no Brasil (excluindo os cânceres de pele não melanoma). Há vários ensaios clínicos randomizados mostrando redução de mortalidade específica com o rastreamento de câncer colo-retal. Recomenda-se a utilização de uma das três modalidades de testes de rastreamento: pesquisa de sangue oculto nas fezes (realizada anualmente), retossigmoidoscopia flexível (realizada a cada cinco anos associada a pesquisa de sangue oculto a cada três anos) ou colonoscopia (realizada a cada dez anos). O benefício de redução de mortalidade ocorre com rastreamento entre 50 e 75 anos de idade (grau de recomendação A) 13. Há boas evidências de que o rastreamento em pessoas acima desta faixa etária não produz o mesmo benefício, podendo causar mais dano a depender das comorbidades e expectativa de vida. O tempo entre o diagnóstico e o tratamento precoces e o potencial benefício de redução de mortalidade é grande e as causas competitivas de mortalidade fazem com que exista uma probabilidade progressivamente menor de o rastreamento acima de 75 anos produzir os mesmos benefícios observados em pessoas mais jovens. Sem contar os riscos da colonoscopia que podem ser maiores na população idosa. Os riscos potenciais do rastreamento de câncer colo-retal estão relacionados ao uso de procedimentos invasivos (colonoscopias) tanto no rastreamento como na fase diagnóstica. Estes riscos podem ocorrer em virtude do preparo, da sedação e do procedimento em si. A estimativa de eventos adversos graves (morte, perfuração intestinal, sangramento maior, diverticulite, eventos cardiovasculares) chega a 25 por 10.000 procedimentos nos EUA. Câncer de mama Existem vários estudos randomizados demonstrando redução da mortalidade por câncer de mama utilizando mamografia, fazendo da mamografia um dos testes de rastreamento mais bem estudados, além de mais de três décadas de experiência em vários países que tem programas organizados de rastreamento de câncer de mama. Entretanto, cada vez mais têm surgido evidências de que o benefício, embora real, não é tão grande como a percepção da maioria das pessoas, e os danos potenciais (principalmente diagnósticos de doenças indolentes submetidos a tratamento invasivo desnecessário sobrediagnósticos) têm se mostrado maiores que os anteriormente imaginados 10. Além destas informações, tem se discutido muito a forma como os riscos e benefícios têm sido apresentados às mulheres convidadas ao rastreamento. uitas mulheres quando são confrontadas com os verdadeiros riscos e benefícios do rastreamento do câncer de mama têm optado por não fazê-lo. Estima-se que para cada 1000 mulheres acima de 50 anos rastreadas anualmente por dez anos evita-se uma morte por câncer de mama. Ao mesmo tempo entre 2 e 10 mulheres serão sobrediagnosticadas e tratadas desnecessariamente; entre 5 e 15 mulheres serão diagnosticadas com cânceres mais precocemente do que seriam sem o rastreamento, mas este fato não afetará seu 178

prognóstico; entre 200 e 500 mulheres terão pelo menos um alarme falso (falso-positivo) e entre 50 e 200 mulheres serão biópsiadas. Tudo isto sem contar os custos envolvidos em todo o processo. A Suíça recentemente extinguiu seu programa nacional de rastreamento de câncer de mama, em virtude de tais considerações. No Brasil, onde existe insuficiência de investimento público na saúde, há uma grande iniquidade de acesso à saúde e uma carência de oferta de serviços curativos, o investimento em programas de prevenção desta natureza pode agravar ainda mais a iniquidade, uma vez que drena recursos de populações doentes para populações predominantemente saudáveis, e com um agravante que piora ainda mais a estimativa de risco x benefício descrita acima: aqui o rastreamento começa muito antes dos 50 anos (a depender do profissional a primeira mamografia é solicitada antes dos 35 anos de idade) e não tem limite de idade para terminar. A recomendação mais custo efetiva e com melhor relação risco x benefício, utilizada em países desenvolvidos com programas públicos de rastreamento bem organizados é a de se iniciar o rastreamento aos 50 anos, a cada dois anos, e termina-lo aos 74 anos (grau de recomendação B) 14. Além disso, tem havido um grande esforço para tentar modificar a forma de transmitir as informações adequadas às mulheres convidadas ao rastreamento, mostrando de forma objetiva e em números absolutos os benefícios e os riscos da mamografia. Este esforço é muitas vezes combatido por sociedades médicas de especialistas e muitas organizações da sociedade civil que por vários vieses (conflitos de interesse, crenças) endossam uma prática que não só causa mais dano que benefício como consome recursos importantes da saúde e os desvia de quem mais precisa. Câncer de próstata O câncer de próstata é a neoplasia maligna mais frequente em homens no Brasil (excluindo câncer de pele não melanoma), com uma taxa de 70 casos novos por 100.000 homens/ ano, e a segunda causa de morte por neoplasias em homens, com uma taxa de mortalidade de cerca de 10 mortes por 100.000 homens/ano. O rastreamento do câncer de próstata tem sido motivo de muita controvérsia nas últimas décadas. Com o advento da dosagem sérica do Antígeno Prostático Específico (PSA), um grande aumento na incidência deste câncer tem sido observado, sem um aumento correspondente na mortalidade, o que sugere fortemente a presença do sobrediagnóstico como fator explicativo. No Brasil houve também um aumento de mortalidade por câncer de próstata, mas possivelmente a melhora nos registros das causas de óbitos explique este aumento. Além disso, como os cânceres de próstata têm sido diagnosticados mais precocemente (lead time bias), a impressão é a de que o prognóstico esta melhor: há uma pletora de estudos observacionais mostrando uma sobrevida excepcional em locais onde o rastreamento é disseminado. Apenas a título de comparação, a sobrevida em cinco anos de pacientes com câncer de próstata é de 98% nos EUA e de apenas 74% na Inglaterra, entretanto a mortalidade por câncer de próstata é idêntica nos dois países, cerca de 25 mortes por 100.000 homens/ano. O que isto significa? Apenas que, em virtude do rastreamento disseminado nos EUA, os cânceres de próstata são encontrados mais precocemente sem, no entanto, afetar a mortalidade específica por este câncer ou prolongar a vida das pessoas. Com a publicação dos dois grandes ensaios clínicos randomizados sobre rastreamento de câncer de próstata, o americano PLCO (The Prostate, Lung, Colorectal and Ovarian Screening Trial) e o europeu ERSPC (Randomized Study of Screening for Prostate Câncer), foi possível acumular evidências de melhor qualidade a respeito da relação risco x benefício deste rastreamento. Desde 2012, o US Preventive Services Task Force e seu congênere canadense (CTFPHC) recomendam não realizar o rastreamento de câncer de próstata em qualquer idade, uma vez que os danos sobrepujam de forma significativa qualquer benefício potencial de redução de morbimortalidade por câncer de próstata (grau de recomendação D) 15. A despeito destas evidências mostrando mais risco que qualquer benefício, muitas sociedades de especialistas ao redor do mundo continuam a recomendar este rastreamento, inclusive patrocinando e estimulando campanhas de conscientização do câncer de próstata e prevenção através do rastreamento, como é o caso do Novembro Azul. O rastreamento do 179

câncer de próstata em homens idosos já não era recomendado mesmo antes destes ensaios clínicos, pelos motivos já amplamente discutidos, entretanto continua sendo realizado no Brasil em homens muito idosos e com múltiplas comorbidades, uma ação que poderia ser descrita como iatrogênica. Câncer de pulmão O benefício do rastreamento do câncer de pulmão foi demonstrado recentemente em um estudo randomizado utilizando tomografia computadorizada em tabagistas 16. A recomendação é o rastreamento anual com tomografia computadorizada de baixa dose (TCBD) para adultos entre 55 e 80 anos com história de tabagismo de pelo menos 30 maços/ano, tabagistas atuais ou que tenham parado há menos de 15 anos. O rastreamento deve ser descontinuado após mais de 15 anos de cessação do tabagismo ou se surgir algum problema de saúde que reduza substancialmente a expectativa de vida ou se o paciente não tiver condições clínicas ou desejo de se submeter a uma cirurgia pulmonar curativa. É bom lembrar que o rastreamento não substitui a cessação do tabagismo como método principal de redução de morbimortalidade. O rastreamento de câncer de pulmão, como a maioria dos rastreamentos, não é isento de riscos, os quais incluem falsos negativos gerando falsa segurança, falsos positivos com todas as suas consequências, sobrediagnósticos e outros achados incidentais e a exposição a radiação. A taxa de sobrediagnósticos é estimada em aproximadamente 12%, o que significa que 12% dos cânceres diagnosticados com rastreamento nunca teriam se manifestado ou causado problemas durante a vida do paciente sem o rastreamento. Assim, a conclusão da Força Tarefa Americana é que há razoável segurança de que o rastreamento anual para câncer de pulmão com TCBD produza um benefício líquido moderado em pessoas assintomáticas de alto risco para câncer de pulmão baseado na idade, na exposição cumulativa ao tabaco e nos anos desde a cessação do tabagismo. Este benefício líquido do rastreamento depende da limitação do rastreamento a pessoas de alto risco, da acurácia da interpretação das imagens de TCBD (semelhante à do referido estudo), da resolução da maioria dos resultados falsos positivos sem procedimentos invasivos e das comorbidades e expectativa de vida dos participantes. Câncer de tireóide O rastreamento do câncer de tireoide é um exemplo de como a utilização disseminada de uma intervenção preventiva sem embasamento científico adequado e sem a organização necessária para um programa de rastreamento desta monta pode causar muitos malefícios às pessoas e, paradoxalmente, fazer com que aumente a crença de usuários e profissionais de saúde de que ele salve vidas e deva ser realizado rotineiramente e disponibilizado para o maior número possível de pessoas. Tem havido um aumento na incidência de câncer de tireoide ao longo das últimas décadas na maioria dos países, mas este aumento tem sido muito mais intenso em países em que o rastreamento de câncer de tireoide é disseminado. Estes países incluem EUA, Brasil e principalmente a Coréia. Nos EUA a incidência em mulheres (2011) foi de 20/100.000. No Brasil aumentou de 5,2/100.000 mulheres em 2006 para 7,9/100.000 em 2013, subindo de 11,8/100.000 mulheres em 1998 para 25/100.000 mulheres na cidade de São Paulo (terceiro câncer mais comum em mulheres) em 2013. Na Coréia houve o aumento mais expressivo (15 vezes de 1993 a 2012), chegando a 58,3/100.000 pessoas e 96,8/100.000 mulheres 17. A taxa de incidência na Coréia é 15 vezes maior que a do Reino Unido, país em que o rastreamento de câncer de tireoide não faz parte dos programas de rastreamento do National Health Services e é desestimulado. A mortalidade, entretanto, permanece inalterada e tem inclusive caído em várias regiões. (no Brasil é de cerca de 0,4/100.000 mulheres). Estes achados, aliados ao fato de que a maior parte do aumento de incidência se deve aos carcinomas papilíferos pequenos e está associada a ausência de exposição a novos carcinógenos, tem como principal explicação o sobrediagnóstico de tumores de tireoide, indolentes, não progressivos, causados pelo uso disseminado e não baseado em evidências de métodos diagnósticos cada vez mais sensíveis. A hipótese da epidemia de sobrediagnósticos, relacionada ao acesso aos serviços de saúde, tem respaldo em várias análises e observações. Um estudo 18 mostrou que o maior incremento na incidência de câncer de tireoide nos EUA (8,8% ao ano) tem ocorrido entre pessoas com 180

mais de 65 anos que tem amplo acesso a serviços de saúde através do edicare; entre aqueles com menos de 65 anos, cujo acesso à saúde não é universal, o aumento tem sido menor (6,4% ao ano). Além disso, a incidência de carcinoma papilífero de tireoide se correlacionou significativamente com todos os outros marcadores de acesso à saúde (positivamente com educação formal, trabalho não manual, renda familiar, e negativamente com falta de seguro saúde, pobreza, desemprego, etnia não caucasiana, educação incompleta e outras minorias). Estes dados mostram que o aumento da incidência do carcinoma papilífero de tireoide não é um aumento real da carga de doença, mas apenas a detecção (rastreamento e incidentalomas encontrados por imagens realizadas por outra indicação) de um reservatório de cânceres subclínicos não progressivos que nunca teriam causado sintomas ou morte se não tivessem sido detectados. Considerações Finais Fica claro que o tema dos rastreamentos em geral e o de neoplasias em particular, principalmente nos idosos está longe de ser uma questão simples, cujo benefício é tido como certo sem necessidade de nenhuma evidência para embasar sua adoção. Rastreamentos não estudados de forma sistematizada tem grande potencial para causar malefício a custos altos. esmo rastreamentos que produziram bons resultados em ensaios clínicos têm grandes chances de produzir mais malefício na prática caso se ampliem as faixas etárias para inclusão no programa, a frequência dos rastreamentos e a sensibilidade do teste de rastreamento; caso não se ofereça, em tempo hábil, os exames confirmatórios e o tratamento adequado e não se tenha uma cobertura adequada principalmente de populações de mais alto risco para a doença a ser rastreada. A população idosa, já alvo de inúmeras intervenções iatrogênicas, polifarmácia, múltiplas comorbidades e menor resiliência, é particularmente vulnerável aos malefícios dos rastreamentos, devendo-se avaliar com muita cautela a indicação de tais procedimentos. O complexo médico-industrial tenta priorizar a prevenção secundária em detrimento das intervenções de prevenção primária, embora existam muitas evidências de que a primeira é extremamente limitada na redução de morbimortalidade, pode causar mais malefício e tem um custo extremamente elevado para a sociedade, desviando recursos de populações mais vulneráveis para pessoas saudáveis. Referências bibliográficas 1. Leavell HR; Clark EG. Preventive edicine for the doctor in his community. An Epidemiologic Approach. cgraw-hill Book Company. 3 rd Edition, 1965. 2. Raffle AE; Gray JA. Screening: evidence and practice. Oxford University Press. 1 st Edition, 2009. 3. Dans LF; Silvestre AA; Dans AL. Trade-off between benefit and harm is crucial in health screening recommendations. Part I: General principles. J Clin Epidemiol. 2011; 64:231-239. 4. orrison AS. Screening in Chronic Disease. Oxford University Press. 2 ND Edition, 1992. 5. Silvestre AA; Dans LF; Dans AL. Trade-off between benefit and harm is crucial in health screening recommendations. Part II: Evidence summaries. J Clin Epidemiol. 2011; 64:240-249. 6. Weiss NS, Rossing A. Healthy Screenee Bias in Epidemiologic Studies of Cancer Incidence. Epidemiology. 1996; 7(3):319-322. 7. Brodersen J; Schwartz L; Woloshin S. Overdiagnosis: how cancer screening can turn indolent pathology into illness. APIS. 2014;122(8):683-9 8. Heath I. Overdiagnosis: when good intention meet vested interests. BJ. 2013; 347:f6361. 9. Welch HG, Schwartz L, Woloshin S. Overdiagnosed. aking people sick in the pursuit of health. Beacon Press, 2011. 10. Bleyer A, Welch HG. Effect of Three Decades of Screening ammography on Breast-Cancer Incidence. N Engl J ed. 2012; 367:1998-2005. 11. Walter LC; Covinsky KE. Cancer Screening in Elderly Patients. A Framework for Individualized Decision aking. JAA. 2001; 285(21):2750-2756. 12. Screening for Cervical Cancer: U.S. Preventive Services Task Force Recommendation Statement. Ann Intern ed. 2012; 156:880-891. 13. Screening for Colorectal Cancer: U.S. Preventive Services Task Force Recommendation Statement. Ann Intern ed. 2008; 149:627-637. 14. Screening for Breast Cancer: U.S. Preventive Services Task Force Recommendation Statement. Ann Intern ed. 2009; 151:716-726. 15. Screening for Prostate Cancer: U.S. Preventive Services Task Force Recommendation Statement. Ann Intern ed. 2012; 157:120-134. 16. Screening for Lung Cancer: U.S. Preventive Services Task Force Recommendation Statement. Ann Intern ed. 2014; 160:330-338. 181

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