O movimento inverso ao desenvolvimento musical no processo musicoterápico 1 José Davison da Silva Júnior Universidade Federal de Pernambuco UFPE davisonjr@click21.com.br Resumo: Este relato surgiu a partir de reflexões acerca da prática clínica do estágio de musicoterapia realizado no Centro de Reabilitação Infantil CRI, na cidade de Natal RN, no período de março a junho de 2004. Foram realizados atendimentos musicoterápicos a uma criança de 11(onze) anos de idade, nos quais se percebeu que o paciente partiu de um aparente estágio de desenvolvimento musical, mas que, ao final das etapas, foi revelado que o seu nível de desenvolvimento musical não era aquele apresentado no início do processo musicoterápico. M., como chamaremos a criança, nasceu em 18 de janeiro de 1993. Primeiro filho de um casal, que teve mais uma filha sem problemas de saúde. Após seu nascimento, sua mãe, que engravidou aos 37 anos de idade e teve uma gravidez normal, foi informada pelo geneticista que M. era portador de Síndrome de Down, o qual foi encaminhado para estimulação essencial. Quando o paciente tinha 10 (dez) anos de idade sua mãe foi informada que ele tinha traços de autismo. M. foi atendido por uma psicóloga, um fonoaudiólogo e fez natação. Foi encaminhado para a musicoterapia aos 11 anos de idade com o objetivo de possibilitar a alta em psicologia e para melhorar o desenvolvimento do paciente, segundo o fonoaudiólogo. O processo musicoterápico se desenvolveu como é descrito por Barcellos (1999). Primeiramente com a entrevista inicial, seguida da testificação musical, estabeleceu-se o contrato terapêutico, foram estabelecidos objetivos terapêuticos, as sessões foram realizadas com suas observações e, por fim, houve a alta. Inicialmente foi feita a entrevista inicial, na qual a mãe de M. informou que passou o período de gravidez triste com a notícia da possibilidade de seu filho vir a ter Síndrome de Down e não se lembra de ter cantado durante a gravidez, mas que passou a cantar algumas canções como Atirei o pau do gato e O sapo não lava o pé. Fomos informados que M. se irritava com algumas músicas, no entanto não houve o detalhamento de quais seriam essas músicas. A mãe de M. ainda comentou que quando o carro passa, ele (M.) se levanta e vai para a porta e faz o som de carro (imita o som do 1 Trabalho completo em forma de artigo apresentado ao Conservatório Brasileiro de Música como requisito à obtenção de título de Especialista em Musicoterapia. Rio de Janeiro, 2005.
2 carro bi-bi ) e que o pai de M. gostava de forró e músicas de Zezé di Camargo & Luciano. Na testificação musical, M. entrou na sala de musicoterapia e se sentou imediatamente na cadeira mais próxima. Mostramos a maraca, mas ele não demonstrou nenhum interesse. Quando foi apresentado o violão, M. passou a mão nas cordas do instrumento e colocou a boca no violão. Colocamos o instrumento no colo de M. que dedilhou o instrumento. O quadro geral de M. era dificuldade de locomoção, lentidão nos movimentos, pouca concentração, utilização da voz com sons pré-verbais e estereotipias com o movimento circular das mãos. Após a testificação musical foi possível estabelecer o contrato terapêutico. O atendimento musicoterápico seria semanalmente, realizado às sextas-feiras pela manhã, com a duração de trinta minutos e as sessões musicoterápicas realizar-se-iam durante quatro meses, pois este o tempo acordado com a instituição da duração do estágio. A partir do estudo da história sonora do paciente, da entrevista e testificação musical foram definidos os objetivos terapêuticos, os quais foram: - Estabelecer uma relação com o paciente através da linguagem musical; - Desenvolver a percepção auditiva e tátil; - Desenvolver a coordenação motora; - Desenvolver a atividade exploratória; - Desenvolver as potencialidades do paciente; - Desenvolver a competência social e - Estimular o paciente à permanência nos outros atendimentos, possibilitando a alta em psicologia. Dividimos em quatro momentos as sessões realizadas, por entender que houve momentos que marcaram as seis sessões. 2 Quando o atendimento foi realizado imaginávamos que o movimento natural do paciente seria partir da utilização de instrumentos mais simples, mais próximo do homem primitivo, como os de percussão, os quais se aproximavam mais do quadro apresentado por M., Síndrome de Down com traços autísticos. No primeiro momento (primeira sessão), M. utilizou o teclado e o violão. Ao entrar na sala de musicoterapia foram dados estímulos com instrumentos de percussão, 2 Houve apenas seis sessões devido ao fato do paciente ter ficado doente durante os atendimentos e a instituição ter entrado em greve.
3 mas M. não demonstrou interesse e se interessou apenas quando o violão foi oferecido, dedilhando as cordas do violão. Em seguida o paciente dirigiu-se ao teclado e tocou algumas teclas aleatoriamente. Houve um momento de maior interação entre paciente e musicoterapeuta, quando aquele acionou um botão no teclado que reproduzia uma música gravada. O paciente sorriu bastante e tocou no rosto do musicoterapeuta, o qual espelhou esta atitude. Com a utilização do teclado como objeto intermediário no processo musicoterápico imaginávamos, pela complexidade desse instrumento, que M. estivesse num estágio mais desenvolvido daquele apresentado no final do processo, aliado a isso estava o fato de que M. já era atendido na psicologia e fonoaudiologia. No segundo momento (segunda sessão), M. demonstrou interesse pelos sons da expiração e inspiração. Esses são os sons que marcam o nascimento e os primeiros meses de vida. Começamos a perceber que a utilização do violão e teclado não significavam um marco de desenvolvimento na vida de M. Na segunda sessão, M. se dirigiu ao teclado, tocou algumas teclas e descobriu outros sons quando apertava algum botão. Colocamos uma música de Zezé di Camargo & Luciano, mas M. não demonstrou interesse. Quando a música terminou, aproximamos um microfone ligado a uma caixa amplificadora e começamos a conversar com M. Quando aproximamos o microfone da boca do paciente, ele passou a emitir alguns sons pré-vocais. Percebemos o interesse pelos sons da expiração e inspiração. Repetimos os sons que M. emitia. O terceiro momento (terceira, quarta e quinta sessões) é marcado pelo interesse de M. pelo tambor, instrumento cheio de significados, que já direciona para o resultado final da quarta fase. Na terceira sessão o paciente entrou na sala de musicoterapia e se sentou numa cadeira próxima ao tambor. Foram disponibilizadas baquetas de madeira para o paciente e também foi ligado o microfone. Em alguns momentos o paciente batia as baquetas no tambor e em outros momentos ele soprava no microfone. Na quarta sessão foi colocado um CD de músicas infantis que descrevia a ação de alguns animais. As canções constituem a atividade musical sintética mais importante da criança; nelas se encontram todos os elementos musicais: o ritmo, a melodia e ainda a harmonia que está, por assim dizer, subentendida nas canções tonais (Benenzon,1985, p.129-130). Pegamos algumas baquetas, passamos a marcar a pulsação das músicas e entregamos uma baqueta a M., o qual a jogou no chão.
4 A quinta sessão se iniciou da mesma forma que a quarta sessão, entretanto, no momento em que foi disponibilizada a baqueta, M. passou a bater a pulsação dobrada das músicas. O quarto momento (sexta sessão) mostrou realmente onde o paciente estava em relação ao desenvolvimento musical. Na sexta sessão o paciente entrou na sala e se dirigiu a cadeira próxima ao tambor. Entregamos uma baqueta a M. e aproximamos o microfone do paciente, aguardando a sua reação. M. passou a bater no tambor um ritmo semelhante às batidas do coração e emitir sons da respiração (expiração e inspiração) no microfone, que ampliava o som. Quando o paciente parava de tocar ou emitir os sons, espelhávamos sua ação. Este quarto momento caracterizou a identidade sonora universal, definida como a identidade sonora que caracteriza ou identifica a todos os seres humanos, independente de seus contextos sociais, culturais, históricos e psicofisiológicos particulares (Benenzon, 1985, p.44). Na Identidade Sonora Universal ISO Universal figurariam as características particulares do batimento cardíaco, sons da inspiração e expiração. A sexta sessão foi à última sessão no processo musicoterápico. Após essa sessão foi dada à alta ao paciente por motivo do encerramento do estágio. Bruscia (1999) descreve os elementos caracterizadores de cada estágio do desenvolvimento musical. O feto vivencia o batimento cardíaco como a conexão com a vida, o mais importante sinal de sobrevivência e existência no período amniótico. Durante o nascimento, o que marca o nascituro são os sons da respiração, as formas e duração das contrações e os gritos. Do 0 aos 6 meses os sons vocais do bebê são resultantes de reflexos, consistindo de vários gritos e sons orais. Uma relação rítmica é estabelecida com a mãe através da sucção. Os instrumentos são extensões sonoras de seu corpo. Dos 6 aos 24 meses o bebê inicia uma expressão vocal curta e repetitiva. Fica fascinado pela sua própria voz. O elemento musical mais importante neste período é o timbre. Dos 2 aos 7 anos a criança começa a utilizar a fala cantada. Os sons dos instrumentos estão associados às várias partes do corpo. A partir dos 7 anos de idade, a criança começa a pensar sobre as coisas de forma muito concreta. Está pronta a estudar música numa escola formal. Barcellos (1977) comenta que o homem reconstitui a evolução da música na sua evolução musical. Na fase intra-uterina percebe sons e ritmos rudimentares. No
5 nascimento, sua primeira manifestação sonora é o choro. Esses sons vão se organizando inicialmente no balbucio, num intervalo de 3ª menor, tornando-se melodias simples e depois cantadas de forma vertical, com o aparecimento da harmonia. Comenta ainda a autora que o nível mínimo da música e suas subestruturas estão relacionados com o ritmo; o médio com a melodia e a superior com a harmonia, no sentido de ir do mais simples ao mais complexo, do mais primitivo ao mais elaborado. Com a utilização de instrumentos mais complexos como o violão e o teclado, passamos a nos questionar sobre a utilização desses instrumentos como objeto intermediário na relação terapêutica, se realmente a utilização desses instrumentos beneficiaria o paciente. A resposta ao nosso questionamento foi dada pelo próprio paciente que direcionou o processo musicoterápico e nos mostrou, através do movimento inverso ao desenvolvimento musical violão, teclado, sons da expiração e inspiração, tambor, músicas infantis, pulsação e batidas do coração o nível de desenvolvimento em que estava, caracterizado pelos sons da expiração e inspiração e batidas do coração, um nível muito primitivo. No quarto e último momento (sexta sessão), foi possível olhar o paciente dentro de seu verdadeiro quadro evolutivo. Esse era o momento de utilizar a identidade sonora universal e recomeçar um novo caminho em direção ao desenvolvimento musical e conseqüente evolução do paciente, agora sim, partindo do mais regressivo ao mais elaborado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARCELLOS, Lia Rejane Mendes. A Musicoterapia como primeira abordagem terapêutica com uma criança com comportamento autista. Trabalho apresentado ao Conservatório Brasileiro de Música. Rio de Janeiro, 1983. A Importância da Música na Vida Cultural e Biológica do Homem. Texto não publicado. Rio de Janeiro, 1977. Atividades Realizadas em Musicoterapia. Texto não publicado. Rio de Janeiro, 1980. Cadernos de Musicoterapia.4. Etapas do processo musicoterápico ou para uma metodologia de musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 1999. BENENZON, Rolando O. Manual de Musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 1985. BRUSCIA, Kenneth. O Desenvolvimento Musical como Fundamentação para a Terapia. In: Info CD Rom II Concedido e Editado por David Aldridge, Universitat Witten Herdecke, 1999. Publicado em Proceedings of the 18 Annual Conference of the Canadian Association for Music Therapy, 2-10, 1991. Tradução: Lia Rejane Mendes Barcellos. Rio de Janeiro, 1999. URICOCHE, Ana Sheila Moreira. Construindo sons e suas ressonâncias. Dissertação de Mestrado em Música Área de Educação Musical apresentada ao Conservatório Brasileiro de Música. Rio de Janeiro, 1997. 6