O CAMPO E A CIDADE NA PRÁTICA DE ENSINO EM GEOGRAFIA VALÉRIA RODRIGUES PEREIRA CPTL/UFMS valeriasilvestre@hotmail.com INTRODUÇÃO A cidade e o urbano permitem compreender o espaço geográfico como um produto da sociedade e essa abordagem possui papel importante no processo de ensino e aprendizagem dos conceitos geográficos. A cidade materializa o resultado das relações sociais, revela o modo como cada lugar é produzido, constituindo uma representação concreta que espelha a sociedade que têm. Assim, como afirma Spósito (1998) a cidade é forma e ao lado dela, é importante considerar a urbanização como processo, pois, para compreender a cidade atual é necessário voltar ao passado: [...] entendemos que o espaço é história e nesta perspectiva, a cidade de hoje, é o resultado cumulativo de todas as outras cidades de antes, transformadas, destruídas, reconstruídas, enfim produzidas pelas transformações sociais ocorridas através dos tempos, engendradas pelas relações que promovem estas transformações. (SPÓSITO, 1998,p.11) Desse modo, a cidade é um núcleo de diversas conexões interligadas pela dinâmica social que a constitui. Carregada de significado para os indivíduos favorece a aprendizagem ao possibilitar o estabelecimento da relação entre o conteúdo geográfico e o cotidiano, como afirma Callai (1999, p.90): O conteúdo de Geografia, por ser essencialmente social, pois diz respeito ao espaço que o homem constrói e ao mesmo tempo que o recebe para fazer a sua morada e que tem a ver com as coisas concretas da vida que estão acontecendo e que tem a sua efetivação num espaço concreto aparente e visível, permite e encaminha o aluno a um aprendizado que faz parte da própria vida e como tal pode ser
considerado em seu significado restrito e extrapolado para a condição social da humanidade. O cotidiano faz parte da geografia e a geografia está no cotidiano. Com o intenso processo de urbanização das últimas décadas se reconhece sem dúvida a grande concentração populacional nas cidades e somando-se a esse fato, quando examinamos a distribuição das instituições educativas se constata que a maioria delas integram o arranjo urbano. Desse modo, pensar a cidade e o urbano na abordagem geográfica tornase essencial, mas, apesar disso é possível fazer alguns questionamentos em torno desse cenário: como o campo e cidade são compreendidos por estudantes da educação básica e graduandos de licenciatura em Geografia? O que envolve a abordagem dessas categorias espaciais? Como é vista a relação campo-cidade? Em síntese, se o cotidiano faz parte da geografia e a geografia está no cotidiano, por quê prevalecem equívocos sobre essas categorias espaciais? 1. CAMPO E CIDADE Influenciados por um imaginário criado pela sociedade no passado e difundido até hoje, particularmente pela mídia, é muito comum ouvirmos que o campo é o oposto da cidade, sendo o primeiro considerado um lugar tranquilo onde predominam atividades agropecuárias, há poucas pessoas, menor quantidade de moradias e carente de infraestrutura e recursos tecnológicos. Ao lado, disso a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reforça essa ideia, como explica Marques (2002, p.97) No Brasil, adota-se o critério político-administrativo e considera-se urbana toda sede de município (cidade) e de distrito (vila). Segundo o IBGE, é considerada área urbanizada toda área de vila ou de cidade, legalmente definida como urbana e caracterizada por construções, arruamentos e intensa ocupação humana; as áreas afetadas por transformações decorrentes do desenvolvimento urbano, e aquelas reservadas à expansão urbana (MARQUES, 2002, p.97).
Este critério legitimado pelo poder público determina o que é campo e o que é cidade estabelecendo um perímetro e portanto define áreas urbana e rural. Por outro lado, a autora lembra que nessa classificação não há preocupação em se reconhecer as funções dos espaços, constituindo-se como rural aquilo que não é urbano, ou seja, a relação entre as duas formas espaciais nem de longe são consideradas. Corroborando, Suzuki (2007, p. 135) aponta as intensas mudanças no cenário social, político, econômico e técnico que aconteceram no Brasil proporcionaram alterações no campo e a cidade, bem como a relação entre ambos [...] não só porque houve uma mudança nos seus conteúdos e nas suas formas, mas, também devido às possibilidades novas que foram se constituindo de estabelecimento de vínculos e de influencia de um sobre a outra, ou vice-versa. Segundo o autor, não há consenso na discussão em torno de campo e cidade e a dificuldade defini-los não é recente, conforme os trabalhos de Azevedo (1945), George (1982), Graziano Silva (2002), Santos & Silveira (2001); Veiga (2002) entre outros. De qualquer modo, pensar essas categorias por meio de forma, conteúdo e função parecenos o melhor caminho de compreensão do espaço (SANTOS, 1992). Assim, parafraseando Suzuki (2007) não é urbana toda população que vive na cidade e nem rural toda população que vive no campo. Em face ao breve exposto é compreensível uma visão restrita do campo e cidade por parte das pessoas que não tiveram acesso a uma formação segundo os pressupostos da geografia crítica e, também, a fórmula adotada pelo IBGE para classificar, mas o aluno que vivencia o período do meio-técnico-cientíticoinformacional, e principalmente o atual e o futuro professor de geografia ter um entendimento restrito sobre as formas socioespaciais é desconhecer ou ignorar toda evolução do pensamento geográfico como o campo de conhecimento que se assenta em analisar o espaço a partir das transformações sociais, particularmente a reprodução capitalista, como enfatiza Suzuki (2007, p. 146) Para nós, há necessidade de se redefinir campo e cidade e rural e urbano à luz das transformações da sociedade brasileira, dos novos
elementos da reprodução das relações sociais, inserindo como categorias essenciais a propriedade, o trabalho e o capital; o que nos permitirá superar leituras marcadamente quantitativas de definição de campo e de cidade e de rural e de urbano. 2. A PRÁTICA DE ENSINO EM GEOGRAFIA Diante das questões citadas elaboramos o plano de ensino 2014 da disciplina Prática de Ensino em Geografia II, do Curso de Licenciatura em Geografia, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Três Lagoas- MS, tendo por tema Geografia Humana: campo e cidade como formações socioespaciais. Saídas a campo, oferecida aos acadêmicos do 3º. semestre do Curso de Geografia. Assim, os objetivos foram desenvolver habilidades para o ensino na educação básica, articular teoria e prática para proporcionar reflexões acerca do processo de ensino e aprendizagem, e ao mesmo tempo abordar o campo e cidade como formações socioespaciais. No início das aulas de 2014 foi realizada uma atividade diagnóstica e a mesma revelou um entendimento equivocado sobre o que é campo e cidade. De modo geral, grande parte dos estudantes atribuiu atraso tecnológico para o campo, desenvolvimento econômico para cidade e demonstraram dificuldade em reconhecer e explicar a relação campo-cidade. Tal fato, no remete aos questionamentos já citados e a relação entre aos processos de ensino e aprendizagem realizados pela geografia escolar e a geografia acadêmica. Quanto a formação acadêmica é importante destacar a atual estrutura curricular da licenciatura em questão, as disciplinas relacionadas ao tema da referida Prática de ensino, como Geografia Agrária e Geografia Urbana são oferecidas posteriormente aos alunos, somente no 4º. e 5º. Semestre do curso e isso se configura como um problema para o processo de formação. Por outro lado, a grade curricular está em processo de revisão pelo Colegiado do Curso que pretende, entre outras providências, ajustar as disciplinas específicas às práticas de ensino.
Ante o exposto, a carga horária das aulas foi composta por estudo conceitual e atividades didáticas. Para estudo selecionamos e discutimos referenciais teóricos de interpretação do espaço geográfico segundo Santos (1992) e as categorias campo e cidade conforme Marques (2002) e Suzuki (2007). Para a prática docente do professor de geografia, utilizamos Cavalcanti (2010), bem como os documentos escolares: Parâmetros Curriculares Nacionais- PCN s (1998) e o Referencial Curricular de Mato Grosso do Sul (2012). Quanto às atividades, o trabalho envolveu a análise e uso de recursos materiais, como o livro didático, elaboração de propostas de aula, pesquisa e trabalho de campo, entre outras atividades. A realização de um trabalho de pesquisa para identificar os significados de campo e cidade firmou-se como principal atividade feita pelos graduandos, por articular diretamente a teoria e prática e, contribuir com a compreensão conceitual. Em grupos, cada equipe buscou identificar em alunos da educação básica, acadêmicos e comunidade o que representam o campo e cidade e se os mesmos possuem uma relação. Dessa maneira, por meio da investigação os graduandos puderam praticar habilidades e competências para o raciocínio geográfico, como explica Cavalcanti (2010a, p. 35-36): Na relação cognitiva de crianças, jovens e adultos com o mundo, o raciocínio espacial é necessário, pois as práticas sociais cotidianas têm uma dimensão espacial; os alunos que estudam geografia já possuem conhecimentos oriundos de sua relação direta e cotidiana com o espaço vivido. O trabalho de educação geográfica ajuda os alunos a desenvolver modos de pensamento geográfico, a internalizar métodos e procedimentos de captar a realidade tendo consciência de sua espacialidade. Devido à extensão do trabalho, os acadêmicos tiveram diversos momentos de orientação e esclarecimentos. Na primeira etapa, foram orientados a definir o local e sujeitos da pesquisa, elaborar roteiro de investigação, composto por questionários, entrevistas, formas de registros, discussão dos resultados e finalizar com a elaboração de um artigo. Na segunda etapa, cada grupo teve a tarefa de organizar uma proposta de ensino para alunos da educação básica, visando a compreensão de campo e cidade como formas socioespaciais e incluir uma saída a campo, para discutir a relação campo-
cidade. Com esses procedimentos tiveram a oportunidade de exercer o trabalho coletivo, organizar e refletir sobre os objetivos e resultados encontrados e dessa maneira atender aos propósitos da Prática de ensino em Geografia. Nesse sentido, destacamos as referências feitas Castellar (2007, p. 48). Em relação ao ensino de Geografia, penso que se deve superar as aprendizagens repetitivas e arbitrárias e passar a adotar práticas de ensino, investindo nas habilidades: análises, interpretações e aplicações em situações práticas; por isso, os currículos tradicionais ainda tem muito que mudar. Em um processo de aprendizagem fundamentado no construtivismo epistemológico, saber e compreender são duas coisas diferentes, o ato simples de saber não considera o aluno sujeito da aprendizagem, além disso, compreender é diferente de relacionar ou elaborar. Destarte, para elucidar os resultados deste caminho geográfico, o texto a seguir traz parte dessa trajetória. 3. O TRABALHO DE PESQUISA E SEUS RESULTADOS- BREVES CONSIDERAÇÕES Foram realizadas cinco pesquisas diferentes, envolvendo alunos de ensino fundamental de escolas públicas locais e de cidades próximas a Três Lagoas/MS; pessoas da comunidade; estudantes do ensino médio e, acadêmicos do 1º. Semestre dos cursos de Geografia e História. De modo geral, tal como ocorreu na atividade diagnóstica feita com os graduandos, os sujeitos da pesquisa demonstraram entendimento limitado diante das atividades de interpretação de imagens, charges, textos e questões referentes ao campo e cidade. Identificaram o campo como lugar de produção de gêneros agrícolas e a cidade como responsável pela presença da indústria e do comércio. Sob outra ótica, consideraram a cidade como lugar dotado de melhores recursos para se viver (saúde, educação, moradia, trabalho), apresentando diversidade de serviços e oportunidades, mas, por outro lado, reconheceram diversos problemas que são comuns nos dois lugares reafirmando uma visão de atraso versus modernidade.
Quanto à relação campo-cidade, a maioria dos entrevistados reconheceu a interdependência entre os espaços, mas nenhum deles soube explicar como esta se desenvolve. Identificar e compreender suas funções em diferentes momentos da história é essencial, pois tanto o campo e cidade pertencem a uma totalidade constituída e reconstituída pela dinâmica capitalista. Assim sendo, ficou evidente a necessidade de romper com a tradicional visão de atraso, fruto de um imaginário construído pelo passado, pois o campo não pode ser concebido apenas como complementar a cidade e paisagem a ser consumida (MARQUES, 2002). Nesse contexto, os grupos também elaboraram planos de aula para ensino fundamental e ensino médio, com a finalidade de discutir os conceitos e a relação campo-cidade. As propostas foram organizadas em três momentos: o primeiro de preparação em sala de aula, com estudo de textos e atividades; o segundo priorizou uma saída a campo para articular teoria e prática e, o terceiro momento para avaliar a aprendizagem. Além disso, o plano teve o papel de retomar o trabalho de pesquisa utilizando os resultados como ferramenta para ensino e aprendizagem. Ao término da construção de todo trabalho realizamos seminários para socializar e discutir os resultados. O caminho percorrido até a finalização revelou dificuldades e avanços significativos. Desconstruir conceitos e apropriar-se de um novo embasado pela teoria e experimentado na prática foi crucial, como afirma Cavalcanti (2010b) não basta ensinar conceitos, o professor deve propiciar condições para que ele se forme no aluno. Com relação à geografia escolar, a partir dos depoimentos de professores e alunos foi possível identificar um cotidiano marcado pela carência na formação inicial e continuada do professor; currículo escolar distante da realidade local, pois o mesmo é estabelecido pelas Secretarias de Estado e via de regra, integralmente reproduzido pela escola; alunos desmotivados e indisciplinados e aulas predominantemente expositivas sem envolvimento dos alunos. Nesse sentido, lembramos que é preciso ter clareza dos processos que envolvem o conhecimento e apesar de condições muitas vezes precárias e
diversos problemas para o exercício da profissão, é função do professor dar significado social ao conteúdos estudados: Se a tarefa do ensino é tornar os conteúdos veiculados objetos de conhecimento para o aluno e se a construção do conhecimento pressupõe curiosidade pelo saber, esse é um obstáculo que precisa efetivamente ser superado. Para despertar o interesse cognitivo dos alunos, o professor deve atuar na mediação didática, o que implica investir no processo de reflexão sobre a contribuição da Geografia na vida cotidiana, sem perder de vista sua importância para uma análise crítica da realidade social e natural mais ampla. Nesse sentido, o papel diretivo do professor na condução do ensino está relacionado às suas decisões sobre o que ensinar, o que é prioritário ensinar em Geografia, sobre as bases fundamentais do conhecimento geográfico a ser aprendido pelas crianças e jovens, reconhecendo esses alunos como sujeitos, que têm uma história e uma cognição a serem consideradas. (CAVALCANTI, 2010c, p. 03) Por outro lado, também temos que reconhecer que há uma parcela de professores que tem convicção de sua tarefa buscando enriquecer sua formação e atuar como mediadores da aprendizagem. Desse modo, desenvolvem aulas que articulam o conteúdo geográfico ao cotidiano, arriscam-se em ajustar os programas de ensino à realidade da turma, realizam propostas de ensino que colocam o aluno como protagonista, enfim, dão vida à geografia escolar. Considerando todo exposto, evidencia-se a importância de articular o espaço vivido ao produzido, afinal, a geografia está no cotidiano e o cotidiano está na geografia Conhecer parte do cotidiano escolar e da comunidade possibilitou a todos refletir sobre o ensino na escola e na universidade e, como professores em formação vivenciar esses processos são condições essenciais para aprender e ensinar. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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