Como a história pode ser filosófica? A perspectiva de Hegel em suas Lições sobre a história da filosofia

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Transcrição:

Como a história pode ser filosófica? A perspectiva de Hegel em suas Lições sobre a história da filosofia Sergio da Costa Oggioni Durante sua carreira universitária, Hegel lecionou nove cursos sobre história da filosofia. (HEGEL, 1997, p. XIII) Seu costume de escrever as aulas deixou registrado em seus cadernos suas lições sobre a tradição filosófica, o que, posteriormente, foi organizado em um livro, a saber, Lições sobre a história da filosofia, este o resultado da organização das anotações de Hegel. Esta obra, em um primeiro momento, expõe o conceito de história da filosofia. De acordo com Hegel, comparada a outras ciências, em nenhuma é tão necessária uma introdução que se defina bem o objeto cuja história se pretenda escrever (HEGEL, 1980, p.326), ou seja, ao ter como objeto a filosofia, é necessário o trabalho prévio de determinar o que entendemos por história da filosofia. Em um segundo momento, as Lições apresentam a aplicação deste conceito; Hegel se volta à tradição filosófica e coloca em prática o que foi definido em sua introdução. A análise de Hegel de um determinado filósofo tem como pano de fundo sua concepção particular de história da filosofia. Esta expõe o que significa a tradição filosófica no horizonte da filosofia hegeliana, ou seja, nos diz o que significa para Hegel o estudo dos filósofos que o antecederam. Assim, antes de colocar em prática o seu estudo histórico, Hegel define a concepção de história que o guiará. Ao investigar o que Hegel diz sobre a dialética presente no diálogo Parmênides de Platão, surge a questão: qual o significado da filosofia platônica para a filosofia hegeliana? Esta questão que buscamos responder por meio do estudo do conceito de história da filosofia presente na introdução das Lições. O objeto a ser retratado interfere no modo em que a história deve ser escrita. Assim, é a própria filosofia que define o modo de escrever sua história, não há um método pré-estabelecido a ser simplesmente aplicado. Hegel então dedica toda uma introdução para definir o que há de singular no método histórico que tem a filosofia como objeto. O simples olhar para o passado não nos diz nada sobre a história da filosofia. Antes é preciso treinar este olhar, para que ele não apenas identifique situações em que a filosofia se desenvolveu, mas que as compreenda. Em muitas obras a respeito da história da filosofia não

1 há o cuidado de desenvolver um estudo histórico que respeite as características de seu objeto, simplesmente tentam recontar os fatos passados que levaram à sua construção. A história escrita desta forma não corresponde ao seu objeto, isto é, ela não é filosófica. Muito pelo contrário, o estudo histórico se torna um conjunto de opiniões que nada compreende a filosofia. No início da introdução das Lições, lemos: Há conceitos diversos da ciência da filosofia; todavia, só o conceito genuíno nos habilita a compreender as obras dos filósofos que trabalharem sob a égide desse conceito. Com efeito, no pensamento, e especialmente no pensamento especulativo, o compreender significa algo diverso de captar o mero sentido gramatical das palavras e de acolher em si apenas a representação do mesmo. Podemos conhecer as asserções, as proposições ou, se se quiser, as opiniões dos filósofos; podemos atarefar-nos excessivamente em volta dos fundamentos e deduções dessas opiniões sem, no entanto, lobrigar o essencial, a saber, a compreensão das proposições. Não faltam volumosas e eruditas histórias da filosofia que pecam por falta de conhecimento da matéria pela qual tanto se afadigam. Os autores dessas histórias se assemelham a animais que tivessem ouvido todos os sons de uma música, mas que não tivessem percebido o mais importante, a harmonia desses sons (HEGEL, 1980, p.326) Hegel, ao criticar obras de história da filosofia até então escritas, identificou que estas pecavam por não possuirem conhecimento filosófico. Isto se configura, por exemplo, na falta de compreensão do todo. A história era retratada como uma sequência de acontecimentos sem apontar a conexão que existiria entre eles, por analogia, é como percebem os sons de uma música, porém, não há uma reflexão filosófica que mostre que estes sons formam um todo harmônico. O conhecimento do objeto mostraria a unidade sistemática formada pelas diversas filosofias, algo que sua história não deixaria de mostrar. Em suas Lições, Hegel quer conhecer esse todo harmônico. Podemos pensar a história como uma corrente em que cada elo representa um momento, estes estão interligados de tal forma que o último é inseparável do primeiro. Esta ligação não é evidente se dermos um trato não filosófico à história, assim como feito pelos obras mencionadas na passagem supracitada. Para Hegel, é preciso pensar a história da filosofia por meio da própria filosofia, pois o método puramente histórico não dá conta de retratá-la. A particularidade das Lições é justamente esta: colocar a filosofia como pilar de sua própria história.

2 Ao formar um todo harmônico, a história da filosofia tem o presente inseparável da tradição filosófica. Os sistemas filosóficos desenvolvidos ao longo do tempo são partes de um todo, cada um em seu grau e momento, mas todos estão interligados de tal forma que, por exemplo, aquilo que foi escrito na Grécia Antiga é absorvido pela filosofia hegeliana. Um dos objetivos de Hegel nas Lições sobre a história da filosofia é tornar evidente a ligação dos tempos passados com a filosofia de seu tempo, como podemos ver na seguinte passagem: Sob vários aspectos pode a história da filosofia suscitar interesse. Quem quiser descortinar o ponto central, deve buscá-lo no nexo essencial que liga os tempos aparentemente passados com o grau atualmente alcançado pela filosofia. Tal nexo não é um fato exterior suscetível de ser descurado na história desta ciência; exprime, pelo contrário, o caráter íntimo da filosofia; e as vicissitudes desta história, perpetuando-se nos seus efeitos, como qualquer outro acontecimento, são produtivas de maneira que lhes é peculiar: outra coisa não pretendemos senão ilustrar isto mesmo o mais claramente que nos seja possível. (HEGEL, 1980, p.327) Para Hegel, existe uma ligação entre a filosofia de tempos passados com a de sua época. Como este nexo não é algo exterior, ou seja, de fora da filosofia, não podemos retratá-la sem considerá-lo. Pelo contrário, a história, ao ter a filosofia como objeto, deve ter como ponto central a conexão do passado com o presente, pois esta expressa a essência filosófica. O grau que a filosofia atinge depende do legado que a antecede, ou seja, a filosofia é produto de sua tradição, quanto mais filosofias nos antecedem, maior nosso grau de desenvolvimento. As filosofias não estão isoladas uma das outras, o que foi iniciado por um filósofo pode ser desenvolvido por outro, ou mesmo negado. O desenvolvimento completo de uma ideia principal em um sistema filosófico não é trabalho de apenas um filósofo, mas de toda uma geração (BEISER, 2005, p.277). Assim como gerações posteriores absorvem e retomam o que já foi escrito ampliando sua tradição. Ao confrontar Hegel com um filósofo antigo como, por exemplo, Platão, precisamos ter a consciência de que ambos estão conectados. Hegel, por ter escrito sua obra anos a frente de Platão carrega diversos elementos desta tradição, sendo que muito do que foi escrito nos diálogos platônicos influenciam a filosofia hegeliana. Da mesma forma, a filosofia de Hegel pode propor soluções para problemas deixados pela filosofia platônica. Assim, a conexão entre

3 o presente e passado é inerente à filosofia, nas palavras do próprio Hegel: tudo o que somos, somo-lo por obra da história. (HEGEL, 1980, p.327) A tradição não é uma estátua de pedra que permanece imóvel e estacionada ao longo do tempo, mas é um rio que ao se afastar da nascente engrossa o seu caudal, isto é, conforme o tempo passa se engrandece (Cf. HEGEL, 1980, p.326). Esta é a imagem utilizada por Hegel para representar a ideia de que história da filosofia não é algo imóvel e estacionada, pelo contrário, ela é viva e ao mesmo tempo que influencia a filosofia presente, também se enriquece com as novas contribuições. Hegel desenvolve seu próprio conceito de história da filosofia antes de colocá-lo em prática, precederemos à leitura que Hegel faz de Platão em suas Lições uma compreensão sobre o sentido de Hegel ir ler Platão, isto é, investigaremos seu conceito de história da filosofia para desvendar a importância de estudar um grego antigo para Hegel. Portanto, seguindo o movimento da Lições, primeiro nos debruçaremos sobre o conceito de história da filosofia; compreenderemos o que significa, para Hegel, olhar para a história da filosofia, de forma mais específica, antes nos atentaremos ao sentido de Hegel analisar Platão para entrarmos em sua leitura sobre este filósofo. Cabe destacar que a obra, ao ser fruto de notas, merece um estudo diferenciado. Lebrun recorre às Lições para tratar da abordagem hegeliana de Descartes, em seu texto Hegel e a ingenuidade cartesiana ele nos aconselha: Não esqueceremos que essa compilação de notas de curso não tem a autoridade de um texto de punho de Hegel (LEBRUN, 2013, p.158). Esta observação tem como base a comparação entre os cadernos que deram origem ao livro, pois esta nos revela problemas filológicos que mostram a diferença entre um texto de punho de Hegel e as notas que formam as Lições. O texto foi publicado sem o próprio Hegel tê-lo revisado e algumas notas são de alunos. O fato de ser formado por notas, entretanto, não nos impede de ver As o que Hegel constitui ao ler determinado filósofo. Nas Lições, ao destacar alguns pontos e deixar de lado outros, Hegel, de maneira sutil, compõe o que seria a essência da filosofia analisada. Na leitura feita de Platão, por exemplo, grande parte da análise é dedicada à dialética, o que nos indica que esta compõe a essência da filosofia platônica.

4 O conceito de história da filosofia em Hegel Explicar o que é a história da filosofia é também responder como que esta, sendo história, pode ser filosófica. A questão surge por lidarmos com dois métodos opostos: o filosófico, que é a priori e por meio de si mesmo investiga o que é eterno e imutável, tendo como fim a verdade; e o histórico, que é a posteriori e retrata algo que existiu em um tempo passado. (Cf. BEISER, 2005, pp. 283-284). Assim, ao colocar a filosofia como objeto da história nos deparamos com uma contradição, pois ao retratarmos a filosofia por um método a posteriori, como uma história qualquer, a consideraremos como uma sucessão de fatos passados, isto é, uma filosofia deixaria de existir e seria substituída por outra sucessivamente. E é justamente este tipo de história que é alvo das críticas de Hegel. Para tornar claro a contradição, Hegel argumenta da seguinte forma: o fim da filosofia é a verdade, que é eterna; a história é uma série sucessiva de formas passadas de conhecimento; a verdade não pode encontrar-se nesta sucessão histórica, porque ela não é coisa que passa; logo, a verdade não possui história (Cf. HEGEL, 1980, p. 333). A filosofia tenta compreender o que é eterno, porém aquilo que é eterno não possui história, pois esta retrata o passado. Então, para fazer história da filosofia esta contradição tem que ser superada, ou seja, temos que rever o conceito de história e tentar torná-lo filosófico em seu traço fundamental. Esta é a tarefa de Hegel na introdução das Lições: desenvolver um conceito de história que acompanhe a organicidade da filosofia ao invés de retratá-la como um mero fato passado. Para isto, a história deve ser determinado a partir de seu objeto, pois apenas desta maneira ganharia propriedades filosóficas que permitiriam a sua compreensão. O primeiro passo para desenvolver a história da filosofia, então, é conhecer o que é a filosofia; traçar o objeto, para a partir deste desenvolver o método de expor sua história. Para definir o que é a filosofia, antes é necessário conhecer dois conceitos: o de desenvolvimento e o de concreto. Hegel faz uma distinção entre o ser em si e o ser para si, o primeiro é uma potência, uma capacidade, já o segundo é a atualidade. Temos como exemplo uma semente que tem a potência de ser árvore, ou seja, é uma árvore em si, quando ela cresce e torna sua potência em ato dizemos que ela é uma árvore para si. Desta forma temos dois momentos distintos, o primeiro é o do ser em si e o segundo é o ser para si. Entre estes momentos

5 existe uma atividade que torna aquilo que estava em potência em ato e esta é chamada de desenvolvimento. O exemplo da árvore nos ajuda a compreender o que é o desenvolvimento, porém, ao se referir ao sensível, não exemplifica o desenvolvimento do espírito. Este possui uma particularidade, pois seu desenvolvimento consiste em um vir a si mesmo. O ser por si do espírito está em si mesmo, apenas voltando a si próprio que o espírito se desenvolve e quanto mais elevado e absoluto é o espírito mais ele se aprofundou em si mesmo. O desenvolvimento se refere apenas à atividade formal da passagem do em si para o para si. Porém, o processo de tornar ato aquilo que estava em potência determina o caráter geral do conteúdo, isto é, estes dois momentos distintos formam uma unidade que explica o conteúdo desta atividade. A compreensão da unidade das qualidades distintas é o concreto. Hegel cita o exemplo de uma flor que ao mesmo tempo que possui uma variedade de qualidades, como odor, sabor, forma, também é una e cada parte singular apresenta as mesmas propriedades que a flor inteira. O concreto se caracteriza pela compreensão de que múltiplas qualidades formam uma unidade. Com base nos conceitos de desenvolvimento e de concreto, chegamos à noção de ideia. Esta compreende uma multiplicidade de qualidades e passa de um momento a outro, ou seja, é concreta e se desenvolve. Ela é como um ser vivo, que apesar de possuir diversas características é um ser uno e se transforma, sendo determinado pelo que já foi, pelo que é e pelo o que virá a ser. A filosofia é o conhecimento da ideia, é apreender seu desenvolvimento. Logo, a filosofia também é um sistema em desenvolvimento. A história da filosofia, ao ter conhecimento sobre seu objeto, compreende que seu papel também é conhecer a ideia. Seu fim coincide com o da filosofia, porém, ao ser história, permite o conhecimento de elementos além da filosofia, isto é, o contexto em que esta se desenvolveu. Assim, a história se torna uma explicação sistemática em movimento, o que era considerado um mero retrato de algo que existiu é transformado em algo orgânico, em um sistema em desenvolvimento. Neste aspecto, não há distinção entre filosofia e história da filosofia, como pode ser visto nas palavras do próprio Hegel: Como a filosofia é sistema em desenvolvimento, também o é a história da filosofia; este é o ponto capital, o conceito fundamental, que procuramos focar (HEGEL, 1980, p.346).

6 História da filosofia e filosofia expõem o desenvolvimento do pensar, a primeira acompanhada do contexto histórico, já a segunda visa puramente o pensamento. Para Hegel, a ciência que trata o pensamento livre e verdadeiro é essencialmente sistema. Desta forma, tanto a filosofia quanto sua história são sistemas. Esta definição, que é central para compreendermos as Lições, também está expressa na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, como podemos ver, no parágrafo quatorze, diz Hegel: 14 O mesmo desenvolvimento do pensar, que é exposto na história da filosofia, expõe-se na própria filosofia, mas liberto da exterioridade histórica puramente no elemento do pensar. O pensamento livre e verdadeiro é em si concreto, e assim é ideia, e em sua universalidade total é a ideia ou o absoluto. A ciência [que trata] dele é essencialmente sistema, porque o verdadeiro, enquanto concreto, só é enquanto desdobrando-se em si mesmo, e recolhendo-se e mantendo-se junto na unidade isto é, como totalidade; e só pela diferenciação e determinação de suas diferenças pode existir a necessidade delas e a liberdade do todo. (HEGEL, 2012, p.55) A filosofia é sistema em desenvolvimento; é sistema pois forma um todo organizado por meio da razão e está em desenvolvimento, pois possui diversos graus e momentos, não é algo estático, é algo que se move, sendo que, como espírito, seu movimento consiste em um voltar a si mesmo. Da mesma forma é a história da filosofia, porém com o acréscimo de elementos empíricos, ou seja, compreende os graus e momentos do desenvolvimento do processo de pensamento no tempo, examinando o local, o povo, as condições políticas e determinadas complicações em que se desenvolveram (Cf. HEGEL, 1980, p.346). Ao colocar a ideia como pilar da história da filosofia, esta se aproxima da filosofia lógica. Ambas tem a tarefa de representar os graus do processo de pensamento, a primeira no âmbito da ideia pura e a segunda no âmbito empírico. Desta forma, a história da filosofia representa os graus de pensamento acompanhados de fatores empíricos em que estes se desenvolveram. O estudo da história da filosofia se transforma no estudo da própria filosofia, ambas são o conhecimento da ideia (Cf. HEGEL, 1980, p.347). É desta maneira que a contradição entre o método histórico e filosófico é superada. Para fazer história da filosofia é preciso conhecer a ideia, para reconhecer na forma e na aparência empírica, na qual a filosofia se manifesta

7 historicamente, o seu processo como desenvolvimento da ideia (HEGEL, 1980, p.347), ou seja, primeiro se conhece a ideia, depois reconhece os fatores empíricos presentes em seu processo de desenvolvimento. Isto torna a história da filosofia um fazer filosófico, pois não deixa de ser um estudo sobre o desenvolvimento da ideia, porém tem a característica peculiar de também compreender os fatores empíricos para este desenvolvimento, isto ée, o contxto em que a ideia se desenvolveu. Uma história da filosofia sem o conhecimento da ideia resulta num cúmulo desordenado de opiniões. Se torna um conjunto de representações subjetivas, que cada um pode ter ao seu modo, pois não há um critério que guie a investigação. Hegel considera a opinião como o contrário de verdade, assim, não é possível que a filosofia possua alguma opinião. Este tipo de história da filosofia não é de maneira alguma filosófica, o que o torna árida e incapaz de suscitar interesse 1. Nas palavras do próprio Hegel: Só uma história da filosofia considerada como sistema de desenvolvimento da ideia merece o nome de ciência: uma coletânea de fatos não constitui ciência. Só assim entendida, como sucessão de fenômenos que se organizaram por meio da razão, e que têm como conteúdo precisamente aquilo que é a razão e que revela esta história mostra ser racional: mostra que os acontecimentos, de que faz menção, estão na razão 2 Apenas a história da filosofia que expõe a unidade sistemática da filosofia é que pode ser chamada de ciência, ou seja, somente ao ser sistema em desenvolvimento a história compreende a filosofia. O método histórico a posteriori, que apresenta a sequência de fatos passados, é árido e de forma nenhuma filosófico. Portanto, Hegel, na introdução da Lições, nos responde como é possível tornar a história filosófica: a história, que tem como objeto a filosofia, tem como fim o conhecimento ideia, o que a torna um sistema em desenvolvimento, assim como a filosofia. É necessário conhecer a ideia antes de se iniciar o trabalho histórico, pois primeiro é preciso compreender o conceito de algo para depois compreender com este se manifestou ao longo do tempo. 1 Cf. LHF (Pensadores), p. 336 2 LHF (Pensadores), p. 347

8 Bibliografia BEISER, Frederick C. Hegel s historicism. In: BEISER, Frederick C. The Cambridge companion to Hegel. New York, USA: Cambridge University Press, 2005. viii, 518 p. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A fenomenologia do espírito ; Estética: a ideia e o ideal ; Estética: o belo artístico e o ideal ; Introdução à história da filosofia. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Antônio Pinto de Carvalho, Orlando Vitorino. 1. ed. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1980.. Enciclopédia das ciências filosóficas: em compêndio (1830): volume I: a ciência da lógica. Tradução de Paulo Meneses; Colaboração de José Machado. 3. ed. São Paulo, SP: Loyola, 2012. v. 1. 444 p.. Lecciones sobre La Historia de la Filosofia, vol.i. Trad. de Wenceslao Roces. México: Ed. Fondo de Cultura Económica, 1997. HEIDEGGER, M. Hegel and the Greeks. Traduça o de David Farrell Krell. In: Pathmarks. Editado por William McNeill, Cambridge, UK e New York, USA: Cambridge University Press, 2007. LEBRUN, Gérard. Hegel e a "ingenuidade" cartesiana. Analytica. Revista de Filosofia, [S.l.], v. 3, n. 1, p. 157-194, ago. 2013. ISSN 1414-3003. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/analytica/article/view/426>. Acesso em: 15 Fev. 2017. PINKARD, Terry. Hegel s dialectic: the explanation of possibility. Philadelphia, USA: Temple University Press, 1988.