Estéticas em jogo: política e memória Sara Rojo UFMG/CNPq/Mayombe



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Transcrição:

Rojo de la Rosa, Sara. Estéticas em jogo: política e memória. Belo Horizonte: UFMG. Professora Associada da UFMG; pesquisadora de produtividade CNPq, diretora do Mayombe Grupo de Teatro. RESUMO Anacronismo, memória, paródia dos discursos, mistura de presentação performática e representação, inserção do real, releituras da teoria de Brecht e exageros da teatralidade são constantes da nova cena latino-americana preocupada com a questão política. O diretor e dramaturgo chileno Guillermo Calderón, uma referência no universo artístico latino-americano com relação ao trabalho com o anacronismo e à inserção do real, transformou-se num clássico antes do tempo (sua obra Neva (2006) já conta com inúmeros estudos). Por sua vez, grupos jovens brasileiros, tais como a Primeira Campainha, buscam uma resposta por meio do deboche dos discursos, deboche que requer no caso de sua obra Sobre dinossauros, galinhas e dragões (2011) de uma plateia com o conhecimento prévio de determinados ícones geracionais. Outros grupos, como a Cia do Latão, discutem, dialeticamente, fatos históricos. Este estudo pesquisa estas tendências e suas fronteiras com o objetivo de refletir as políticas do contemporâneo na cena atual latino-americana. PALAVRAS CHAVE: memória, cena, real, política, Latino-América. RESUMEN Anacronismo, memoria, parodia de discursos, mezcla de presentación performática y representación, inserción de lo real, relecturas de la teoría de Brecht y exageraciones de la teatralidad son constantes de la nueva escena latinoamericana preocupada con la cuestión política. El director y dramaturgo chileno Guillermo Calderón, una referencia en el universo teatral latinoamericano con relación al trabajo con el anacronismo y a la inserción de lo real, se transformó en un clásico antes de tiempo (su obra Neva (2006) ya cuenta con innumerables estudios). A su vez, grupos jóvenes brasileños, tales como Primeira Campainha, buscan una respuesta por medio del escarnio de los discursos, escarnio que requiere en el caso de su obra Sobre dinossauros, galinhas e dragões (2011) de una platea con conocimientos previos de determinados íconos generacionales. Otros grupos, como la Cia do Latão, discuten, dialécticamente, hechos históricos. Este estudio investiga estas tendencias y sus fronteras con el objetivo de reflexionar las políticas de lo contemporáneo en la escena actual latinoamericana. PALABRAS LLAVE: memoria, escena, real, política, Latinoamérica. Estéticas em jogo: política e memória Sara Rojo UFMG/CNPq/Mayombe Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus poemas, prosternávamo-nos diante dele, como se de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade não há homens dessa espécie, nem sequer é lícito que existam, e mandá-lo-íamos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra sobre a cabeça e os termos coroado de grinaldas. (PLATÃO. In: Borie e outros, 2004, p.18) Interessa-me começar esta reflexão com as palavras de Platão quando expulsa o ator de sua cidade ideal. Ele o considera um ser capaz de imitar o bom e o ruim e

isso, para o filósofo, não serve para o desenvolvimento social nem do cidadão. Se a questão chega a ser discutida por Platão é porque o teatro no período clássico tinha um poder, inclusive a Poética de Aristóteles definia o papel da tragédia dentro da polis. Mas a Arte se separou das Religiões e dos Estados e hoje não se considera que ela tenha um papel relevante na construção comunitária. Os Estados e as religiões criaram suas próprias espetacularidades e seus próprios rituais nos quais participam simulacros de atores em função de objetivos institucionais. O teatro, segundo o estado, não é mais responsável pela cidadania; mas eticamente os artistas continuam sintindo essa responsabilidade. Mas o fato de té-la não significa que seja fácil exercê-la, pois dentro do atual modelo social o teatro e o homem, o que é pior, perderam sua importância. Meu filho será engenheiro, que bom! Meu filho será ator. Que medo! O engenheiro é necessário para o desenvolvimento econômico do país, o ator não. Assistir teatro pode curar a sensibilidade, pode produzir prazer estético, mas não cura o corpo, não produz alimento. E isso é central quando vivemos numa sociedade na qual o que importa é o que serve em termos produtivos e não a vida política nem a condição do homem. Por isso, esta situação mercantilista atenta contra a condição humana. Segundo Hannah Arendt é A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria. Ela acrescenta que a ação corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e no o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. (ARENDT, 2010, p.8) Antes de entrar no tema central, é importante definir o conceito de estética que usaremos. Rancière considera que é uma configuração específica desse domínio [o da arte] (2009, p. 13) e, para este análise, esse conceito de configuração é extremamente adequado. Anacronismo, memória, paródia dos discursos, mistura de presentação performática e representação, inserção do real, releituras da teoria de Brecht e exageros da teatralidade são constantes da nova cena latino-americana preocupada com a questão política. O diretor e dramaturgo chileno Guillermo Calderón, uma referência no universo artístico latino-americano com relação ao trabalho com o anacronismo e à inserção do real, transformou-se num clássico antes do tempo (nasceu em 1971 e sua obra Neva (2006) já conta com inúmeros estudos). Por sua vez, grupos jovens brasileiros, tais como a Primeira Campainha de Belo Horizonte, buscam uma resposta por meio do deboche dos discursos, deboche que requer, no caso da obra do grupo mencionado, Sobre dinossauros, galinhas e dragões (2011), uma plateia com o conhecimento prévio de determinados ícones geracionais e históricos, pois se trata de uma inserção de uma época em outra. Por sua vez, a reconhecida Cia do Latão de São Paulo, na Opera dos vivos (2011), discute, dialeticamente (seguindo a trilha de Brecht), fatos históricos relacionados com a evolução da arte em mercadoria. Portanto, se partimos desse pequeno universo de teatro que assume um diálogo com a realidade, chegaremos à conclusão de que se bem é impossível definir uma forma para o teatro político na Latino-América atual, é possível reconhecer preocupações e latências que configuram partes dentro de um sensível comum. (RANCIÉRE, 2009, p. 15) Guillermo Calderón traz o real num discurso quase sem dispositivos teatrais (luz, trilha, etc) para discutir a representação. Em Villa + Discurso, por exemplo, o tema é

o que fazer com um campo de tortura Villa Grimaldi em Chile e, portanto, o que está em jogo é a representação, pela via da interpretação atoral, da memória política no presente. A Primeira Campainha, por sua vez, recorrerá a uma configuração imagética como a do vídeo clip para repensar os discursos de massas e os ícones de uma geração e Latão realizará uma representação paródica dos momentos-eixo das formas de produção do teatro brasileiro com o objetivo de pensar a relação arte, cultura e trabalho. Se não existe uma forma para o teatro político, também não existe apenas um discurso nem um tipo homogêneo de imagens a serem produzidas. Em nossos três exemplos, observamos uma contestação a um sistema dentro de uma configuração estética resistente, mas com práticas diferentes: Em Villa + discurso de Calderón uma textualidade que coloca no palco os choques que provocam as diferentes miradas sobre um fato histórico abrindo, dessa forma, um leque no qual ficam expostas as contradições de cada posição. Em Latão tudo caminha em direção de deixar evidente a relação entre as condições de produção da arte e seus produtos em cada uma das quatro cenas que constroem a Opera dos vivos. A peça expõe os momentos centrais da produção brasileira e os produtos resultantes. Por sua vez, a Primeira Campainha, num caldeirão com forma de vídeo clip, mistura literatura, música e ícones comerciais para expor, com uma dose de pessimismo e nostalgia, sua perspectiva do mundo. Mas mesmo assinalando as particularidades de cada uma, observamos que, nestas formas teatrais, algumas constantes se repetem: a presença do histórico, a resistência ao modelo hegemônico, a memória de uma comunidade e a metareflexão sobre o papel e a função da arte. Segundo Sérgio Carvalho, o modo de produção impõe o modelo formal (http://www.sergiodecarvalho.com.br/?p=1080) e acrescentaríamos que esse modelo além de ter a ver com os modos de produção tem a ver com um tipo de sensibilidade compartilhada pelo coletivo, partilha do sensível segundo Rancière (2009, p.15). Por exemplo, Sobre dinossauros, galinhas e dragões traz referências que respondem a diferentes universos sociais, históricos, do cinema e do teatro misturados e construídos, como o mesmo grupo afirma, com ctrl c + ctrl v: Marina: Quando Acordou, o dinossauro ainda estava lá. Tiranossauro Rex, Roberto Marinho, Baby da Silva Sauro. Mariana: Stanislawsky, a mimese corpórea, o equilíbrio precário e a dilatação. Marina: Tarcísio, Glória, o maio de sessenta e oito, o muro de Berlim, o amor livre, o flower power. (2011, s/p) O texto anterior reflete as preocupações desse coletivo e sua forma de expô-las, ou de construí-las, o desejo de romper com as intermediações e hierarquias, inclusive as relativas às ordens temporais ou espaciais (a peça mistura épocas e espaços). É a urgência de um enunciador que cria, usando a estética da colagem e o anacronismo, como se fosse um ato de expulsão das angústias que o afogam. No texto da Cia do Latão, pelo contrário, o objetivo de falar sobre as determinações históricas que sofreram e sofrem as formas de produção da arte no Brasil. Cada temporalidade específica tratada foi pesquisada com uma metodologia sócio

histórica e essa pesquisa foi a que lhes permitiu construir cada parte da Opera dos vivos. O fazer representado relaciona-se, portanto, com um momento histórico e com uma forma de produção: os anos sessenta e criação militante, o cinema novo, a antropofagia e o momento atual da produção enlatada da TV. Busca-se expor como funciona o capitalismo na forma que se constrói o discurso criativo e inclusive a interferência destrutiva que exerce. A maneira de criar esse universo, segundo o exposto pelo autor numa palestra no Fit 2012, é a pesquisa teórico-prática. Por sua vez, em Villa + Discurso o eixo temático gira em que fazer com os restos de um campo de concentração da ditadura militar chilena, o centro de tortura Villa Grimaldi, no presente. Trata-se do questionamento da representação do passado, mas a partir de um local concreto, real. Podemos fazer da dor um monumento comemorativo, um museu, uma obra de arte contemporânea? A estética de enunciação nua e crua do discurso, quase sem recursos cênicos, apela ao caráter básico (no sentido de fundamento) do exposto. Todos concordam em que não se pode deixar o passado morrer, mas como no esvaziá-lo? Como reagir contra a demolição da casa feita pela ditadura sem agredir o memorial feito pelas vítimas no local? As três obras falam da arte, da ética e da representação, mas as formas de produção e as imagens são muito diferentes. Portanto, o interessante é que ver nas três peças o discurso se relaciona com o tipo de metodologia escolhido para a construção das peças e com o recorte da realidade utilizado como objeto de tensão. Portanto, como assinala Didi-Huberman a temporalidade histórica não pode ser reconhecida sem o elemento anacrónico que a atravessa (2011, p. 49) e ainda mais, sem a sensibilidade específica de cada parte que constitui o todo (grupo) e de cada coletivo que constitui o todo (teatro latino-americano). A Primeira Campainha apela a uma construção neobarroca em rede a partir da associação livre de imagens, podemos falar que é uma net no sentido de Hakim Bey: dentro da net começou a emergir um tipo de contranet, que chamaremos de web (como se a internet fosse uma rede de pesca e a web as teias de aranha tecidas entre os interstícios e rupturas da net) (2011, p.31). O Latão para um diálogo entre temporalidades e produção artística, descompondo a Indústria Cultural que existe por trás da arte. A forma dialética (apresentação baseada na exposição da contradição) escolhida pelo grupo e que, por sua vez, combina cinema, teatro e música, aborda precisamente o trabalho artístico e sua mercantilização. Calderón para uma espécie de Aleph da memória, mas a partir de uma representação concreta (um lugar construído pelos sobreviventes da tortura chamado Parque por la paz Villa Grimaldi ), questiona o monumento construído institucionalmente. Essa representação serve como estope para colocar em contradição os diversos discursos. Desse modo, entendemos que as práticas teatrais apresentadas estabelecem conexão com configurações de formas do domínio da arte (estética) e que por sua vez isso se conecta com o que Rancière chama estética primeira: um sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir (2009, p.16).

As obras, que apresentamos, entendidas como práticas artísticas, são reações contra as formas existentes no espaço social que habitamos (estética primeira) e a configuração que estabelecem configura uma estética da resistência baseada no trabalho de imagens produzidas, mas particularizada nas especificidades do recorte histórico ou/e nos deslocamentos anacrônicos que faz cada coletivo, na inscrição escolhida, nos operadores e suportes utilizados por cada grupo. Portanto, as práticas artísticas de cada coletivo criam imagens de tempos entrecruzados, sobrepostos, complexos e compartilhados entre criadores e espectadores. Isso é o que abre uma dinâmica de troca entre a comunidade e o objeto de arte produzido. Referências teóricas ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. Rio Janeiro: Forense universitária, 2010. BEY, Hakim. Taz: zona autônoma temporária. Tradução de Renato Resende. São Paulo: Conrad editora do Brasil, 2011. BORIE, Monique e outros. Estética teatral. Textos de Platão a Brecht. Tradução de Helena Barbas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. CARVALHO, Sérgio. http://www.sergiodecarvalho.com.br/?p=1080. Acesso 10 de agosto de 2012. DIDI-HUBERMAN. Ante el tempo. Tradução Oscar Antonio Oviedo Funes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2011. RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009. -----. O inconsciente estético. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009. Referências espetaculares COMPANHIA DO LATÃO. A ópera dos vivos. Belo Horizonte: FIT, 21 de junho de 2012. PRIMEIRA CAMPAINHA. Sobre dinossauros, galinhas e dragões. Belo Horizonte: FIT, 13 de junho de 2012. TEATRO PLAYA E GUILLERMO CALDERÓN. Villa + discurso. Belo Horizonte: FIT, 14 de junho de 2012.