As origens do discurso modernizante que colocava o fenômeno do. analfabetismo como entrave à modernização e ao desenvolvimento sócioeconômico



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Transcrição:

PELAS ONDAS DO RÁDIO : CULTURA CAMPONESA E A LUTA POR DIREITOS NO MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO DE BASE. Autoria: Profª. Drª Claudia Moraes de Souza Curso de História do UNIFIEO Pesquisadora do LEI/laboratório de Estudos sobre a Intolerância Uma breve historia das políticas de alfabetização. As origens do discurso modernizante que colocava o fenômeno do analfabetismo como entrave à modernização e ao desenvolvimento sócioeconômico da nação, encontram-se em fins dos anos 40 e inícios da década de 50, quando preocupações com a ordem e a paz mundial e com a situação de miséria social e econômica de grande parte da população do planeta África, Ásia e América latina - elevaram os temas do equilíbrio social, da sedimentação de valores democráticos e do anticomunismo, como pontos prioritários dos programas educacionais de organismos internacionais, como UNESCO, ONU e especificamente na América Latina, a CEPAL e a OEA. Neste momento, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabeleceu, no seu artigo 26, o direito da pessoa à educação com a finalidade de favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre as nações e promover o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas (ONU) para a manutenção da Paz. O Direito à Educação se estabelecia como um direito da pessoa, porém assumia finalidades articuladas à tolerância e à manutenção da paz mundial no contexto da bipolarização ideológica da Guerra-Fria. A UNESCO exerceu um papel fundamental naquela conjuntura, preocupando-se largamente com a alfabetização de jovens e adultos na

América Latina e África, sendo responsável mundialmente pela construção dos preceitos da educação fundamental e da educação de adultos fundados em um conjunto de representações acerca dos males do analfabetismo. Das parcerias da UNESCO com países latino-americanos 1 nasceram políticas educacionais que claramente se posicionavam pela necessidade de intervenção junto às classes subalternas nas áreas de educação e cultura, sob a alegação da urgência de disseminação da educação primária entre a população adulta. Os discursos defensores da cooperação e dos projetos, elaborados pela UNESCO, erigiam-se sobre a conservação da ordem social como pressuposto da conquista do desenvolvimento. Tratava-se de conservar valores e ao mesmo tempo eliminar os entraves ao desenvolvimento econômico e social. Desde sua criação em 1945, a UNESCO teve como centralidade o estudo, a investigação e o planejamento da questão educacional, acabando por funcionar como instância de produção científica e idealizadora de projetos mundiais para educação e cultura. Promovendo reuniões científicas, conferências internacionais e seminários regionais, o organismo se projetou na década seguinte, como propositor de um amplo plano de erradicação do analfabetismo no continente americano, conhecido como Projeto Principal da UNESCO. Criado oficialmente em 1956, na IX Conferência Geral da UNESCO em Nova Delhi, o Projeto Principal para a América Latina dispunha-se a planejar e organizar ações nos campos de formação de professores, extensão da escolaridade, controle na aplicação dos recursos educacionais, focando sua 1 Estas parcerias envolveram também organismos intracontinentais como a CEPAL e a OEA com os países: Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Haiti, México,?Nicarágua, Peru, República dominicana e Uruguai.

ação nos esforços de erradicação do analfabetismo e ampliação do ensino fundamental no continente. A concepção de alfabetização da UNESCO passou a vincular o aprendizado da leitura e escrita a um processo mais amplo de socialização do indivíduo. A alfabetização deveria tornar-se um processo de aquisição de valores culturais, morais e cívicos, devendo superar meramente o ensino das letras e passar ao ensino de um modo de vida digno e democrático, segundo o discurso daquele organismo 2. Da ampliação do conceito de alfabetismo surgiu uma concepção de Educação Fundamental que consistia em um ensino que possibilitasse ao indivíduo uma vida digna em que este fosse útil a sua comunidade e exercesse seus direitos de cidadão livre 3. Assim sendo, o alfabetismo e a escolarização passaram a representar um processo de aquisição de valores (culturais, morais e cívicos), além de aquisição de aptidões para o trabalho, para uma vida saudável, para o exercício da cidadania, etc. Nesses termos, a representação acerca do analfabetismo transfigurou-se. O Analfabeto deixou de ser apenas aquele que não dominava tecnicamente o ato de leitura e escrita. A ausência da escolarização passou a identificar no indivíduo, uma série de incapacidades: de autonomia, de organização, de aptidão para o trabalho, de exercício da cidadania, de capacidades em gerir o próprio corpo etc. 2 Sobre a construção do conceito de alfabetismo e as concepções da Unesco sobre o processo de alfabetização, discutimos mais profundamente em nossa dissertação de mestrado a problemática da representação do analfabeto nos projetos educacionais das décadas de 40 e 50 nos organismos internacionais, Ver: SOUZA, CLAUDIA MORAES Nenhum Brasileiro sem Escola : Projetos Educacionais do Estado Desenvolvimentista-1947/1964. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 1999. 3 Relatório do Grupo de Trabalho Campanha de Alfabetização e Educação de Adultos - Seminário Regional de Educación da América Latina, Caracas, 1948. In : PAZ, AGULAR J. - Definición de Alfabetismo y Analfabetismo. Relatório do Grupo de Trabalho : Documentação y Estatística, no Seminário Interamenricano de Alfabetização de Adultos, Petrópolis, 1949. pp. 01-02.

Como podemos perceber, a conceituação do analfabeto ultrapassou a perspectiva da ausência do domínio instrumental da língua escrita direcionando-se a uma definição que estende o rol de incapacidades do analfabeto para um amplo conjunto de ausências 4 : ausência de civilidade, ausência de autonomia, de organização política e social, de domínio e conhecimento de si. Agregou-se à figura do analfabeto, um conjunto de práticas sociais que representava os limites da inserção do indivíduo ou do grupo de indivíduos na almejada sociedade moderna, além do dado explícito da incapacidade de gestão de sua própria terra ou da terra de trabalho. Durante toda a década de 50, esta representação propagou-se entre a intelectualidade brasileira, articulada diretamente com as tendências já mundializadas do pensamento. Lourenço Filho (representante brasileiro na UNESCO), Anísio Teixeira, Francisco Campos e Almeida Jr. difundiram por meio de sua produção científica e suas intervenções políticas em organismos públicos, uma consciência genérica de que mudanças sociais e culturais, possibilitadas pela alfabetização, seriam um dos movimentos fundamentais em direção ao desenvolvimento, e se realizariam através da prática do planejamento dos sistemas de educação. As transformações propagadas pelo desenvolvimentismo associavam industrialização/desenvolvimento como forma de elevação dos patamares econômicos da nação. Segundo este discurso, uma vez em andamento o processo industrializante, seria necessária a imediata integração dos setores 4 Presença e ausência para H. Lefebvre compõem o todo da Representação. A representação resulta das relações do real vivido com o fenômeno a ser representado, assim a representação nada mais e do que a impossibilidade do representado se materializar na reprentacao.ver LEFEBVRE, H. La Presencia y la Ausencia - Contribuición a la Teoria de las Representaciones. México : Fondo de Cultura Economica, 1980.

arcaicos na perspectiva do crescimento econômico e da melhoria do nível de vida da população. O campo deveria ser incorporado ao processo de desenvolvimento urbano e consequentemente, o homem do campo (analfabeto), deveria ser preparado para uma dupla inserção: como mão de obra da agroindústria (proposição modernizadora do campo) e/ou como mão de obra industrial nas cidades. No Brasil, algumas experiências educacionais foram colocadas em prática a partir deste pensamento pedagógico, a exemplo, podemos citar três grandes campanhas educacionais que vigoraram por toda a década de 50: A Campanha de Educação de Adultos e Adolescentes (CEAA), de 1947, a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), de 1952, e a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA), do início de 1960. De uma maneira geral, as campanhas partiram de ações planejadoras e intervencionistas do Estado e acabaram por propagar pela sociedade civil o discurso do desenvolvimento atrelado à questão educacional. A CEAA e a CNER tiveram repercussão imediata. A Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos, coordenada por Lourenço Filho, alcançou sucesso inusitado atingindo dimensões numéricas gigantescas para a época, a exemplo, a ampliação do número de matrículas na educação de adultos foi da ordem de 138.000 matrículas em 1945 para 800.000 matriculas em 1949, ano chave da Campanha. O caráter voluntarista das Campanhas (CEAA e CNEA tratavam-se de ações de alfabetização em massa incentivando o ato voluntário de ensinar) e a forte divulgação pelo rádio e imprensa escrita tornaram o tema da alfabetização um tema de alcance e penetração nacional, gerando ampla mobilização da sociedade civil brasileira.

Transformada em questão nacional a temática da alfabetização foi apropriada pela sociedade civil. A partir daí, na história da educação brasileira passa a ocorrer uma metamorfose, pois o envolvimento e a mobilização da sociedade com as campanhas recontextualizaram as ações interventoras, ideológicas e reprodutoras do Estado na ação educacional. Estamos falando do surgimento de novas concepções de educação popular, fundadas nos direitos sociais e na participação dos sujeitos históricos. No início da década de 60, grupos diferenciados da sociedade organizada envolveram-se diretamente com a educação popular e passaram a apresentar projetos próprios de alfabetização e educação das classes populares. Ligada à Igreja, a Ação Católica atuou pela JUC, JOC e JEC na ação educacional criando projetos locais de alfabetização; partidos e organizações políticas como o PCB e a AP (ação Popular) também se preocuparam em formatar projetos de educação popular; universidades e prefeituras organizaram campanhas e ações, como os projetos de Extensão Universitária do Professor Paulo Freire, a Campanha de educação e cultura popular do governo Miguel Arraes, em PE, e a Campanha De Pé no Chão também se Aprende a Ler, na Paraíba. A inserção destes mediadores sociais em políticas públicas educacionais apontou para a participação do movimento popular na construção de projetos educacionais e culturais valorizando os conhecimentos pretéritos das populações carentes. Dentre todos estes movimentos, aquele que mais se destacou por sua dimensão e suas características de ação comunitária e mobilização de comunidades por direitos sociais e políticos, foi o Movimento de Educação de Base (MEB), criado pela CNBB em 1961.

O MEB, a participação popular e o direito à escola. O Movimento de Educação de Base (MEB) articulava diversos sistemas radioeducativos, constituídos por uma rede de núcleos organizados para recepção de programas educacionais, especialmente elaborados para a alfabetização de adultos e educação de base em áreas rurais. Em âmbito nacional formava-se uma rede de emissoras subordinadas a uma estrutura organizativa hierarquizada. De uma ampla base, composta pelas unidades escolares radiofônicas, afunilava-se para uma direção nacional, assumida por representantes diretos da CNBB e do MEC, que coordenavam a atuação dos organismos regionais e locais. Entre 1961 e 1965 5, o episcopado brasileiro colocou a disposição do MEB sua rede de emissoras formando o maior sistema interligado de emissoras educativas que, até então, a América Latina havia conhecido. Inicialmente, em 1961, o MEB contou com programas em 10 emissoras evoluindo num crescente que, ao final de 1965, atingiu o número de 29 emissoras interligadas, responsáveis pela transmissão diária dos programas educativos elaborados pelas equipes locais de 14 estados brasileiros. Munido de uma estrutura física garantida pela rede de emissoras católicas, o MEB articulou objetivos e finalidades educacionais a uma lógica organizacional e técnica, que permitiu o funcionamento contínuo de 5 Digo entre 1961 e 1965 na medida em que neste período o MEB atingiu o auge em número de emissoras vinculadas ao programa, o que não implica em determinar que o os sistemas tenham funcionado apenas neste intervalo temporal. Mesmo após o golpe e a instalação da ditadura civil-militar, o MEB continuou atuando em moldes diferenciados persistindo ligado a CNBB e atuante no campo da educação popular até os dias atuais.

diferentes sistemas responsáveis pela comunicação entre o aluno/ouvinte e professor/locutor, gerando, a partir daí, um processo educacional que conectava emissores e receptores com intuito de transcender a mera transmissão de conhecimentos e irradiar um conjunto de práticas coletivas que tivessem efeitos na vida cotidiana do trabalhador rural. Para o MEB, era preciso ir além da mera extensão de conhecimentos e construir uma comunicação entre o aluno e os agentes educacionais: (...) O nosso drama, não é só alfabetizar. Junto a isso, há urgência de muito mais. Há urgência de se abrirem aos nossos camponeses, operários e suas famílias as riquezas da educação de base, fundamental educação que chamaríamos de cultura popular, a qual tem a força de fazer o homem despertar para seus próprios problemas, encontrar suas soluções, defender sua saúde, manter boas relações com seus semelhantes, andar com seus próprios pés, decidir dos seus destinos, buscar sua elevação cívica, moral, econômica, social e espiritual. É esta escola que temos de jogar no seio das populações camponesas e operárias através de métodos próprios, já experimentados e vitoriosos. Evidentemente não falamos do tipo de escola tradicional com professor para um grupo de alunos.seria impossível dessa forma, hoje, no Brasil, se atingir milhões de analfabetos. Vamos apelar para o rádio, para as escolas radiofônicas (...) 6 O rádio, como recurso tecnológico não foi unidirecional, o que gerou uma relação interacional, em que a proposta educacional acabou por sofrer as influências das demandas do universo simbólico e mental das comunidades, na medida em que, a comunidade não se limitou a encarar o rádio apenas como um transmissor de mensagens, mas sim, como um veiculador de idéias pertinentes ao seu universo cotidiano. 6 Plano Qüinqüenal do MEB. MEB Nacional. Fundo MEB-CEDIC.s/d.

Percebendo-se do conjunto diferenciado de funções e/ou perspectivas que a comunicação via rádio podia oferecer, as comunidades rurais do MEB, na medida em que se relacionavam com os Centros Radiofônicos apresentavam suas demandas e perspectivas se apropriando do rádio, primeiro como um prestador de serviços e paulatinamente, como um veículo de articulação política em prol de direitos do trabalho, de cultura e até de diversão e lazer. Num estudo específico sobre a participação dos camponeses no Movimento de Educação de Base, buscamos resgatar a intencionalidade das comunidades em se apropriar dos conhecimentos da escola em prol da melhoria de suas condições de vida, assim como da conquista de direitos, no trabalho, de saúde, moradia, acesso a cultura, dentre outros. Na verdade, o direito à educação foi visto como porta de entrada para o mundo do direito, uma vez que o conhecimento abriria a possibilidade de conquista de direitos trabalhistas e políticos pela comunidade. A luta pela conquista da escola começava na implantação da unidade escolar, pois o processo de radicação das escolas dependeu fortemente das habilidades dos camponeses em se relacionarem com os poderes locais. No contexto do clientelismo e do domínio sobre a propriedade da terra, a criação das escolas nos engenhos e usinas dependia do bom relacionamento entre o latifundiário e o trabalhador. No MEB, os monitores da escola e seus alunos souberam articular a instalação das escolas de rádio sem levantar conflitos com os proprietários, ao contrário, contaram com a colaboração de muitos destes senhores de engenho e usineiros para o funcionamento da escola.

Conquistado o direito de instalar uma escola no Engenho ou na Usina, os trabalhadores deviam mantê-la, ou melhor, os recursos materiais da escola deveriam ser conseguidos pela própria comunidade. Cada escola construiu mecanismos próprios para arrecadação de fundos: a cotização de despesas, a realização de festas, quermesses e atividade diversas que envolveram o trabalho comunitário. Conquistando a escola, o trabalhador rural que participou do MEB acabou por adquirir novos direitos: um deles foi o voto. Alfabetizados, os trabalhadores puderam requerer seus títulos de eleitores e passaram a expressar sua vontade política através do voto. A escola também levou o analfabeto do campo ao conhecimento dos direitos do trabalho. Com a ação do MEB multiplicou-se pelo nordeste a ação sindical dos trabalhadores rurais, pois a escola atuou na educação sindical e no processo de sindicalização de trabalhadores. Nesse sentido, afirmamos a articulação entre a questão educacional e o conjunto mais amplo dos direitos humanos, quando entendemos o conjunto pleno destes direitos, que tratam da moradia, do acesso à saúde, do direito ao trabalho digno, do direito à cultura, à informação, à participação política, dentre outros. À guisa de conclusão, podemos dizer que na história brasileira a institucionalização de um direito social, como o direito à educação, não dependeu apenas da criação das leis educacionais, pois as leis não se desenvolvem por lógicas imparciais, coerentes e inabaláveis, frente às conveniências sociais e políticas (THOMPSON, 1999), e muito menos se

estabeleceram como direito sem a contradição e as árduas lutas do movimento social. A conquista da escola pela população rural do MEB exigiu mobilização e participação ativa destas populações na manutenção do espaço escolar, revelando também as atitudes, desta população, interessada não apenas no conhecimento escolar strictu senso, mas no conjunto de possibilidades políticas e operacionais que a informação e o conhecimento científico poderiam propiciar. Desta forma, participar da escola do MEB significou muito mais do que se alfabetizar. Significou, do ponto de vista do trabalhador rural nordestino, o acesso a conhecimentos do mundo do trabalho, e conseqüentemente ao direito sindical, conhecimentos do campo da política, como o acesso ao voto, assim como o direito à comunicação e à cultura, conquistado na apropriação do rádio como forma de comunicação, lazer e educação.