RESENHA: Santos, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 7ª Ed. São Paulo, Cortez, 2010.

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Transcrição:

RESENHA: Santos, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 7ª Ed. São Paulo, Cortez, 2010. 1 Ana Leticia Carnevalli MOTTA 1 Lilian Bitencourt Alves BARBOSA 1 Renata Pinto Ribeiro MIRANDA 2 Zélia Marilda Rodrigues RESCK 2 Sueli Leiko Takamatsu GOYATÁ 2 Eliza Maria Rezende DÁZIO 1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas. UNIFAL MG.Brasil.Leticia.motta@oi.com.br;lbalves@hotmail.com;renatapr85@gmail.com 2 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas. UNIFAL MG. Brasil.zeliar@unifal-mg.edu.br;suelileiko@unifal-mg.edu.br;elisadazio@unifal-mg.edu.br Recebido em: 27/11/2014 - Aprovado em: 14/07/2015 - Disponibilizado em: 15/07/2015 A obra de Boaventura, catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, foi apresentada pela primeira vez em Portugal, no ano de 1987 e, no Brasil, em 1988. Por sua relevância, foi adotada como leitura obrigatória nos cursos do ensino superior, conduzindo ao pensamento sobre a construção histórica da ciência, seus reflexos e sua grande influência nas práticas de saúde em prol de uma vida saudável para a sociedade moderna. No prefácio da obra, o autor apresenta a ambigüidade e a complexidade das ciências no tempo presente: uma fase de transição entre tempos científicos 791 diversos (passado e futuro), que nos ocorrem alternadamente, e nos convida a refletir sobre os limites do rigor científico, diante das demandas atuais. Concordando com Einstein, afirma que os questionamentos simples, como os feitos por uma criança, são capazes de nos fornecer esclarecimentos tão próximos da realidade que nos trazem uma nova luz à nossa perplexidade perante o mundo moderno. Utilizando-se da obra de Rousseau, Discours sur les Sciences et les Arts (1750), afirma que estamos novamente regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a ciência e a

virtude; pelo valor do conhecimento vulgar que nós, sujeitos individuais e coletivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante e, finalmente, pela contribuição do conhecimento científico no enriquecimento ou empobrecimento prático das nossas vidas. Nesse sentido, o autor sustenta o seu posicionamento e caracteriza a ordem científica hegemônica, analisando os sinais da crise dessa hegemonia e abordando uma nova ordem científica emergente. Sobre o paradigma dominante da ciência moderna, descreve que ele se constituiu a partir do século XVI e se estendeu a um modelo global de racionalidade, no século XIX, negando todas as formas de conhecimento que não fossem pautadas pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas. Como principal traço desse paradigma, aponta a distinção entre o conhecimento científico e o senso comum e entre a natureza e a pessoa humana. Sobre a ciência moderna desconfia das evidências da nossa experiência imediata e trata a natureza com total separação do ser humano, visando conhecê-la para dominála e controlá-la. Nessa perspectiva, conta como o conhecimento científico moderno avança pela observação livre, sistemática e rigorosa dos fenômenos naturais. Para tal, considera que a matemática forneceu um instrumento privilegiado de análise, uma lógica de investigação e um modelo de representação. Por meio dela foi possível quantificar os fenômenos (pelo emprego rigoroso de medições) e reduzir a complexidade do mundo (pela divisão e classificação para posterior determinação de relações entre o que foi separado). Desse modo, evidencia que o conhecimento científico é um conhecimento causal, que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vistas a prever o comportamento dos fenômenos. Mantendo a ideia de previsibilidade, ordem e estabilidade do mundo, transforma-se na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo e, pouco a pouco, este modelo de racionalidade hegemônica transborda do estudo da natureza para o estudo da sociedade, pois, tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade. Bacon, Vinco e Montesquieu tornam-se os grandes precursores do estudo da sociedade, que ampliado e aprofundado, cria condições para a 792

emergência das ciências sociais que, no século XIX, assumiram duas vertentes. A primeira e dominante, consistia em aplicar ao estudo da sociedade os princípios epistemológicos e metodológicos dos estudos da natureza. A segunda e marginal, consistia em reivindicar para as ciências sociais um estatuto próprio, com base na especificidade do ser humano e sua distinção em relação à natureza. Porém, ambas priorizaram as ciências naturais e pertenciam ao paradigma da ciência moderna, ainda que a segunda representasse um sinal de crise e de transição para outro paradigma científico. Sobre a crise do paradigma dominante, Boaventura afirma sua profundidade e irreversibilidade, por estarmos vivendo uma revolução científica que só nos permite especular acerca do paradigma que emergirá. No entanto, já é possível afirmar que as distinções em que se assenta o paradigma dominante colapsarão. A crise do paradigma dominante resulta da pluralidade de condições sociais e teóricas. Quanto às condições teóricas, o autor evidencia quatro: a teoria da relatividade; a mecânica quântica; os questionamentos da matemática e os avanços tecnológicos da microfísica, química e biologia. Por meio delas, observa que a identificação dos limites e das insuficiências do paradigma moderno resultam do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. Ao tratar da teoria da relatividade de Einstein, discute a simultaneidade de acontecimentos distantes que não pode ser verificada por leis da física e da geometria, que se assentam em medições locais. Assim, dois acontecimentos simultâneos num sistema de referência deixam de ser simultâneos noutro sistema de referência e, desse modo, o tempo e o espaço absolutos de Newton deixam de existir. Discutindo sobre a mecânica quântica, demonstra a impossibilidade de se observar ou medir um objeto sem nele interferir. Consequentemente, o rigor do nosso conhecimento torna-se limitado, pois as leis da física são meramente probabilísticas; o determinismo mecanicista é inviável, pois a totalidade do real não se reduz à soma das partes e; a complexidade da distinção entre o sujeito e o objeto é maior do que pode parecer. O rigor da medição é ainda mais abalado ao se questionar o rigor da matemática, sendo esta a terceira condição da evidente crise. Tal rigor mostra que, mesmo seguindo à risca as regras da matemática, é possível formular proposições inexcedíveis, que não 793

podem ser demonstradas e nem refutadas. Por fim, aborda a quarta condição teórica que é constituída pelos avanços da microfísica, química e biologia. Sendo representada principalmente pela teoria de Ilya Prigogine, traz uma nova concepção da matéria e da natureza, na qual ao invés do determinismo, temos a imprevisibilidade; ao invés do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização e ao invés da necessidade, a criatividade e o acidente. Além disso, defende a quebra do modelo de mecanicismo linear e propõe um movimento de vocação transdisciplinar, que perpassa as várias ciências da natureza e as ciências sociais. Para o autor, a crise do paradigma dominante propicia profundas reflexões sobre o conhecimento científico, apresentando duas facetas sociológicas importantes. Dessas reflexões, ele destaca dois temas principais. No primeiro tema, ao questionar a formulação das leis da natureza, fundamentada na ideia de que os fenômenos observados independem de tudo, afirma que as leis são probabilísticas e provisórias, constituindo uma simplificação arbitrária da realidade. E, ao refletir sobre a causalidade alega que esta tem perdido terreno em favor da finalidade. Já, no segundo tema, versa mais sobre o conteúdo do conhecimento científico do que sobre sua forma, afirmando que o rigor científico, fundado no rigor matemático, quantifica e desqualifica os fenômenos. Finalmente, também trata das condições sociais que contribuem para a crise do paradigma moderno: a industrialização da ciência e o seu compromisso com o poder econômico, social e político, os quais passaram a definir as prioridades científicas; as relações de poder autoritárias e desiguais entre os cientistas; a proletarização no interior dos laboratórios e centros de estudos; o acesso aos equipamentos contribuindo para o aprofundamento do fosso científico entre países centrais e países periféricos. Ao iniciar o último capítulo, Boaventura propõe o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente e afirma que o paradigma a emergir não pode ser apenas científico, mas também um paradigma social. Para apresentar esse paradigma, recorre a quatro teses. Na primeira, afirma que todo conhecimento científico-natural é científico-social. Assim, a distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais deixa de ter sentido e utilidade. O paradigma emergente funda-se na 794

superação dessas distinções e torna a ciência pós-moderna uma ciência analógica, decorrente das interações e intertextualidades que soubermos imaginar. Em sua segunda tese, diz que todo conhecimento é local e total, portanto, o conhecimento pós-moderno constitui-se a partir da pluralidade metodológica, da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade entre as diversas áreas das ciências. Por não seguir um estilo unidimensional, constrói uma configuração de estilos, segundo o critério e a imaginação pessoal do cientista. No paradigma emergente, o conhecimento tem como horizonte a totalidade universal ou indivisa. Sua fragmentação deixa de ser disciplinar, para ser apenas temática. Assim, avança à medida que o seu objeto se amplia e para tal, incentiva que os conceitos e teorias desenvolvidos localmente emigrem para outros lugares cognitivos, de modo a serem utilizados fora do seu contexto de origem. Na terceira tese, Boaventura explica que todo conhecimento é autoconhecimento. Apesar da ciência moderna não tolerar a interferência de valores humanos no conhecimento e assim distinguir o sujeito do objeto, sabemos que nossas trajetórias de vida, valores e crenças permeiam nossas investigações e cálculos. No entanto, este saber ocorre clandestinamente nos nãoditos dos nossos trabalhos científicos. No paradigma emergente, o caráter autobiográfico e auto-referenciável da ciência é plenamente assumido. O objeto passa a ser uma extensão do sujeito, implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto e sobre o próprio sujeito. Na sua última tese, o autor afirma que todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum. Assim, a ciência pós-moderna resgata o valor do senso comum no enriquecimento da nossa relação com o mundo. O conhecimento científico pósmoderno só se realiza na medida em que se converte em senso comum. A ciência pósmoderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida. Face à revolução científica as influências naturais e constantes crises paradigmáticas, protagonizamos as transformações do mundo, e o resgate histórico que acompanha a obra de Boaventura nos apresenta a construção 795

desta nova era por meio da ciência pósmoderna, e conduz aos caminhos do desenvolvimento tecnológico, através da aquisição de conhecimentos, mas que em verdade, deveriam ser usados pelo homem de forma sábia, em respeito à ética e à dignidade humana. É preciso uma reflexão epistemológica profunda sobre o próprio homem, para que a prática científica não seja vazia e atenda à investigação e transposição dos paradigmas que emergem da realidade. Conhecer os caminhos da ciência é imprescindível para corroborar os fenômenos científicos e nesta perspectiva formar o corpus de competências e habilidades em prol da compreensão do ser humano em sua integralidade. 796