ESCRITOS EM BANHEIROS: A DESNATURALIZAÇÃO DO PÚBLICO E A CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADES Ana Luíza Casasanta Garcia (UFSC) analuizagarcia@hotmail.com Ruthie Bonan Gomes (UFSC) tutti.gomes@gmail.com Resumo: As instituições sociais como Igreja, Família, Escola e Estado se constituíram como ferramentas decorrentes dos processos de construção social da vida dos sujeitos, que, além de ser determinadas pelos indivíduos, constituem subjetividades, comportamentos e pensamentos humanos. Partindo desse pressuposto, entendemos a subjetividade como um objeto construído socialmente, que não necessariamente implica interioridade, substância ou permanência. Segundo Iñiguez (2001), a subjetividade é entendida como uma figura histórica em movimento, que, superposta pelos discursos, se forma nas instâncias da interioridade e da exterioridade, em prol de ser humano. Pensando sobre a performance das instituições sociais na vida dos sujeitos, tem-se que a constituição dos sujeitos se dá na articulação dos âmbitos do saber, poder e da subjetivação, que criam mecanismos de normalização que tem como ponto fixação os corpos dos indivíduos localizados no interior de espaços institucionais precisos. Neste contexto, as instituições sociais estabelecem e colocam em vigência suas normas, constituindo sujeitos, delimitando territórios, e criando sujeitos desviantes e aprisionados pelos mecanismos normativos. Partindo desse pressuposto, este trabalho tem como objetivo analisar os escritos presentes em um banheiro público, acreditando que tais marcas de comunicação demarcam os desejos e pensamentos desterritorializantes que advém de um processo revolucionário desejante. Para tal, esta pesquisa foi realizada no banheiro feminino do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, que possuem diversos escritos referentes a questionamentos sociais. Considerando o banheiro como um lugar de resistências ao controle da estrutura social e da normatividade, vemos que este espaço, ao mesmo tempo privado e público, se faz um ambiente propicio para a disseminação de movimentos de resistências às normas, devido à proteção, entre quatro paredes, do caráter anônimo do autor de quaisquer escritos. Aparentando um lugar de esperanças e de micropolíticas, o banheiro se apresenta como um espaço onde os sujeitos conseguem fugir da disciplina, mesmo que em meio público. Para análise, foram capturadas imagens de um smartphone, no período vespertino. Partindo do contato com estes elementos expressivos e artísticos, percebe-se o corpo como realidade biopolítica, sobre o qual o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica e onde operam códigos de normalização. Dos conteúdos encontrados, destacamos escritos sobre conteúdos políticos, poemas, frases de reflexão e, principalmente, sobre o movimento feminista, com o intuito de fazer com que a mulher conheça seu corpo e lute pela equidade dos sexos. Isso, por sua vez, abre espaço para que a biopolítica seja pensada, pois ela dá forma ao corpo múltiplo com seus fenômenos coletivos, políticos e econômicos. Dessa forma, os escritos são expressões que parecem marcar como o poder incide nestes corpos e como é o diálogo com as formas de pensar destes sujeitos. Por fim, acreditamos que estas marcas de comunicação abrem espaço para problematizações e é uma forma de expressão que busca romper com a lógica normativa que intervém na constituição dos sujeitos. Além disso, questionamentos acerca do desejo revolucionário de um processo de individuação, de revolução e descarga resultada dos atravessamentos sociais foram pontuados. Palavras-chave: Subjetividades; público; normatividade.
Introdução As instituições sociais como Igreja, Família, Escola e Estado se constituíram, ao longo do tempo, como ferramentas decorrentes dos processos de construção social da vida dos sujeitos. O surgimento do eu, portanto, está imbricado na matriz das instituições sociais e é entrecruzado por relações de poder e de saber (BUTLER, 2015). Neste sentido, nos constituímos historicamente e culturalmente e nos tornamos inteligíveis por intermédio de um conjunto de convenções sociais, através da relação com o Outro. Este Outro não seria apenas aquele que nos constitui, mas ele é aquele que nos despossui, que nos desampara, na medida em que existe algo fundamental de si em um outro que não controlo. Assim, somos constituídos por princípios inerentes a práticas materiais e em instituições que, atravessadas pelo poder e pelo discurso, produzem sujeitos. Segundo Foucault, o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência [...] revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos [...] mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. (FOUCAULT, 2004b: 54-5). Por poder se entende que ele é exercido em rede, transitando pelos indivíduos (FOUCAULT, 2006). Assim, imbricadas e evidenciadas nesta construção, as relações de poder encontram-se em todos os lugares, o poder é onipresente e não depende de uma intencionalidade consciente para funcionar (BUTLER, 2015). A este respeito, as instituições sociais promovem normas subjetivadoras pelas quais o que se entende por verdade é enquadrado. Isto significa que a teoria da constituição do eu aparece como fundamento para reflexões éticas e políticas. Dessa maneira, os sujeitos são constituídos mediante discursos e normas que, quando repetidas, produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos (BUTLER, 2015, p.17). Assim sendo, o sujeito não é dado a priori, é construído mediante atos de diferenciação que o distinguem de seu exterior constitutivo, um domínio de alteridade degradada (BUTLER, 1998, p.30). Subjetividade, então, é entendida aqui como uma figura histórica em movimento, superposta pelos discursos, se forma nas instâncias da interioridade e da exterioridade, em prol de ser humano (IÑIGUEZ, 2001). Tomada como um objeto construído discursiva e culturalmente, a subjetividade engloba também o campo das experiências do sujeito e não implica, necessariamente,
integridade, substância ou permanência. Ela é resultante, dessa forma, de uma dispersão de forças sociais. Sendo assim, deve ser considerada como uma figura histórica que não tem centro, permanência, inerência ou substância, mas sim como um instável jogo de forças dos enunciados e dispositivos (PRADO FILHO, 2007). Desta maneira, analisar as pichações existentes em banheiros seria estudar a maneira como os discursos constroem as subjetividades dos sujeitos e como eles verbalizam e expressam seus desejos e sentimentos em um território onde ninguém os vê, onde ninguém pode os julgar. Por isso, dado o constructo físico do espaço do banheiro, entendemos que ali o sujeito parece estar submerso em uma localização onde pode se expressar, pode escrever o que quer e pode denunciar o que é silenciado pela norma e pela sociedade. É um lugar de livre expressão, onde não há o olhar do outro e onde não há limites de fala. Em consonância com o exposto, Pereira, Silva e Vilar (2005) salientam que o grafito, denominação dada aos escritos e pichações, representam a voz coletiva de um grupo perfeitamente localizável e localizado (p.1). Entendemos que, por intermédio da análise desses escritos, podemos problematizar a respeito de como somos formados na vida social. Em acréscimo, compreendemos que as pichações falam de desejos, de consequências da interpelação com o outro e com as normas que nos constituem. Dessa maneira, escrever na porta do banheiro seria uma representação de um porta-voz de uma coletividade nem sempre escutada e em um local de livre expressão de um grupo social muitas vezes submetido a um silêncio forçado (PEREIRA; SILVA & VILAR, 2005). O banheiro, nesse contexto, se torna cenário para a discussão dos aspectos da cultura, história, subjetividades e experiências dos sujeitos. Acreditamos que é por meio dos escritos que os sujeitos falam de suas experiências, experiências estas que são uma parte tão integrante da linguagem cotidiana, tão imbricada em nossas narrativas (SCOTT, 1988, p.324). Além disso, consideramos este movimento como um processo de desterritorialização que, segundo Deleuze e Guatarri (1995), é conceituada como um processo revolucionário desejante, contrapondo ao que se encontra em nossa sociedade quadriculada e aprisionante da produção e do desejo, a qual canaliza o individuo no sentido reprodutivo e antiprodutivo. Denominada teoria das multiplicidades, a teoria deleuze-guattariana coloca, dessa forma, em evidência a geograficidade dos eventos, os reconstruindo, os recriando e os reconduzindo para outros caminhos.
Assim, visando problematizar o que está por detrás dos escritos do banheiro, este trabalho tem como objetivo analisar as pichações presentes em banheiros públicos, acreditando que tais marcas de comunicação demarcam os desejos e pensamentos desterritorializantes que advêm de um processo revolucionário desejante. Vale ressaltar que a escolha do banheiro público se remete ao fato de que este local é um espaço que, por mais que esteja inserido em um meio público, é também um espaço privado, onde há a colocação do desejo revolucionário por intermédio de pichações. Método Com o objetivo de analisar as pichações presentes em banheiros públicos, esta pesquisa utilizou o método fotográfico de registro. Considerando a fotografia uma ferramenta que possui o papel de documentar uma determinada ocorrência (NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002), o método fotográfico de registro se preocupa com o conteúdo existente em cada uma das fotos e, por este motivo, este método não leva em consideração o autor nem o observador das fotografias. Dessa forma, para atingir o objetivo desse estudo, foram capturadas imagens de um smartphone, no período vespertino do banheiro feminino do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, que possuem diversos escritos referentes a questionamentos sociais. Discussão Partindo do contato com estes elementos expressivos e artísticos, percebe-se o corpo como realidade biopolítica, sobre o qual o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica e onde operam códigos de normalização. Dos conteúdos encontrados, criamos 3 categorias: escritos sobre conteúdos políticos, tais como, Consumismo te consome, Desmilitarização já! Quer falar de Democracia? Só se for sem farda! A PM mata ; frases de reflexão, Quantas horas da sua vida seu celular custa? ; e escritos advindos do movimento feminista, Moça, tu arrasa, teu clitóris é lindo. A partir da análise dos escritos, vemos que o banheiro deu espaço para que a biopolítica dos corpos fosse repensada, dando forma ao corpo múltiplo com seus fenômenos políticos, coletivos e econômicos. Do ponto de vista dos escritos sobre política, vemos que eles criticam a norma capitalista vigente e questionam acerca do papel da Polícia Militar no Estado. No que tange às frases de reflexão, há também a inferência de questionamentos sobre a norma social que os corpos interiorizam. Com relação aos escritos sobre o movimento
feminista, é visto que eles promovem um debate para que a mulher seja aceita, da forma como ela é, e que lute pela equidade dos sexos. Em função destas expressões analisadas, faz-se necessário discorrer sobre o feminismo. Emergente na década de 60 e 70, o feminismo exerceu um papel fundamental em dois sentidos: em primeiro lugar, este movimento pôs à tona o gênero, bem como a categoria mulheres. Em segundo lugar, devido aos questionamentos feitos por homossexuais e afrodescendentes, que fizeram com que a homofobia e o preconceito racial fossem reconhecidos como princípios organizadores do masculino (KIMMEL, 2008, p.16). O feminismo, dessa forma, busca dar visibilidade às questões referentes ao lugar da mulher na sociedade, problematizando, por exemplo, a autonomia do corpo da mulher e do direito ao aborto. Os escritos, portanto, parecem clamar pelo questionamento deste lugar e querem dar visibilidade ao ser mulher na sociedade. Além disso, entendemos que esta ação abre espaço para que as mulheres se potencializem e dá margem para que haja um espaço de encontro entre corpos de um coletivo. Partindo desse pressuposto, os escritos são expressões que parecem marcar como o poder incide nestes corpos e como é o diálogo com as formas de pensar destes sujeitos. Por fim, acreditamos que estas marcas de comunicação abrem espaço para problematizações e são uma forma de expressão que busca romper com a lógica normativa que intervém na constituição dos sujeitos. Além disso, questionamentos acerca do desejo revolucionário de um processo de individuação, de revolução e descarga resultada dos atravessamentos sociais foram pontuados. Considerações finais A partir deste trabalho vemos que os conteúdos dos escritos estão vinculados com a constituição da subjetividade dos autores e com a sua política de localização de onde vêm e para onde vão. Os escritos falam sobre os autores, falam sobre como eles enxergam a sociedade e quais os questionamentos consideráveis que devem ser colocados. Falam também sobre liberdade, exclamações e questionamentos. Nesse sentido, retomamos Foucault (1987), quando afirma que a ausência da assinatura nos escritos se refere ao fato de que a liberdade é conferida ao autor através da categoria anônima dada por aquele espaço em especifico, lhe dando, assim, o direito de expressão conforme bem entender.
Público, porém, privado, o banheiro assegura a liberdade de expressão dos sujeitos, visto que ali os procedimentos de poder (enclausuramento, vigilância, recompensa e punição e hierarquia piramidal) não atravessam a barreira das quatro paredes dos cubículos sanitários. Naquele espaço, portanto, os questionamentos acerca do conjunto de comunicações reguladas por lições, ordens e pela normatividade parecem ter lugar e serem passiveis de visibilidade. Dessa forma, acreditamos que esta pesquisa evidencia os enunciados de poder que perpassam por entre os comportamentos humanos. Diante disso, entendemos que os escritos encontrados falam sobre um discurso ideológico e desejante dos sujeitos que escreveram. Os escritos dos sujeitos, portanto, parecem desterritorializar e desnaturalizar o espaço público que ao mesmo tempo é privado. Os escritos, dessa forma, se classificam como expressões que parecem marcar como o poder incide nestes corpos e como é o diálogo com as formas de pensar destes sujeitos. Além disso, vemos que são ilustrações de um discurso de uma eterna condenação ou enaltecimento do fazer alheio, sem notar o próprio fazer, sendo, assim, um eterno vigiar e punir foucaultiano (FOUCAULT, 2004). Referências BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo. Campinas: Cadernos Pagu, No. 11, 1998, p.11-42, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 1995, 34 (2) FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
IÑIGUEZ, L. Identidad: de lo personal a lo social. In: CRESPO, E. (Ed.). La Constitución social de la subjetividad. Madrid: Catarata. 2001, p.209-225. KIMMEL, M. Los estudios de la masculinidad: una introducción. En: Àngels Carabí & Josep M. Armengol (eds). La masculinidad a debate. (pp.15-31). Barcelona: Icaria, 2008. PEREIRA, P. H. C.; SILVA, T. E.; VILAR, F. S. Análise dos discursos dos escritos de banheiro na universidade. Campinas: UNICAMP, 2005. PRADO FILHO, K; MARTINS, S. (2007). A subjetividade como objeto da(s) Psicologia(s). Psicologia & Sociedade, 19 (3); 14-19. SCOTT, J. Gênero, uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Sociedade, 16(2), 1990, 5-22. Anexos (Foto 1- Porta papel- higiênico- Moça tu arrasa - É linda - É forte )
(Foto 2- Consumismo te consome - Quantas horas da sua vida seu celular custa? ) (Foto 3- Desmilitarização já! Quer falar de democracia? Só se for sem farda! A PM mata )