IX Salão de Iniciação Científica PUCRS Histórias de Vida e Trabalho de Operárias da Indústria Coureiro Calçadista do Vale dos Sinos Cristiane Veeck, Ana Luisa Poersch, Desireé, Márcia Ziebell Ramos, Álvaro Roberto Crespo Merlo (orientador) Instituto de Psicologia da UFRGS Resumo Introdução Este trabalho tem por objetivo compreender como se constituíram as relações sociais, de trabalho e os processos de adoecimento dos trabalhadores oriundos da Indústria Calçadista do Vale dos Sinos, bem como investigar as relações que esses sujeitos estabelecem consigo e com sua enfermidade, a partir das suas trajetórias de vida e trabalho. Os sujeitos da pesquisa vêm de um longo processo de adoecimento, sendo considerados como portadores de LER/ DORT (lesões por esforços repetitivos/ distúrbios osteo-musculares) relacionados com o trabalho e são atendidos no Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (ADT-HCPA). As LER/DORT são as patologias mais freqüentes no conjunto dos adoecimentos relacionados ao trabalho. Além de causarem inúmeros afastamentos da vida laboral, a quase totalidade deles evolui para incapacidade temporária, e, em muitos casos, para a incapacidade permanente, culminando com a aposentadoria por invalidez (Assunção, 2003). Os portadores de LER/DORT, além das queixas de dores osteomusculares, manifestam sofrimento psíquico relacionado a sua história de adoecimento. Estas manifestações dizem respeito a uma vivência de incapacidade, desesperança, impotência, inutilidade, ambivalência, culpa, raiva, sentimentos de perda e de exclusão, tal como já citados em estudos anteriores (Sato et al, 1993; Santos, 1995; Merlo, Jacques e Hoefel, 2001; Ramos, 2005). Metodologia
Nesta pesquisa as Histórias de Vida são utilizadas como um recurso metodológico no estudo dos modos de trabalhar e viver destes trabalhadores portadores de LER/DORT De acordo com a orientação deste método, a coleta de dados foi realizada através de entrevistas individuais. Os trabalhadores que fizeram parte da pesquisa foram encaminhados pelos residentes em Medicina do Trabalho do ADT/HCPA, tendo como critério de inclusão ser oriundos da indústria calçadista da região metropolitana de Porto Alegre. Foi oferecido aos participantes o Termo de Consentimento Livre e Informado para assinatura. A pesquisa foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sob o nº 07-135. Foram realizadas entrevistas individuais abertas, com cada trabalhador, onde a abordagem do pesquisador permitiu que o entrevistado fizesse livremente a narrativa da sua história de vida e de trabalho. Estas entrevistas foram gravadas e transcritas. Os depoimentos foram analisados buscando-se identificar as recorrências e as singularidades nas trajetórias de vida e trabalho dos trabalhadores entrevistados, a fim de que se identificassem as interseções entre os modos de se relacionar consigo, com o trabalho e o sofrimento psíquico. Dessa maneira, gerou-se uma reorganização dos depoimentos, dando origem a categorias temáticas. Resultados Através da análise dos depoimentos coletados nas entrevistas individuais, o grupo de pesquisa encontrou categorias de falas referentes a acontecimentos comuns a todas as trabalhadoras entrevistadas. Essas categorias são: 1.Trabalho infantil: Todas as trabalhadoras entrevistadas relatam o inicio da vida laboral sendo entre a infância e a adolescência, como podemos ver na fala abaixo: Tinha que ir trabalhar com o pai, fabricando tapetes. Eu tinha 10 anos, depois eu fiz a minha carteira de trabalho e parei numa fábrica de calçados. E ali sempre foi a minha vida. (Amélia) 2.Baixa escolaridade e início na indústria calçadista: As entrevistadas relatam que, por terem baixa nível de escolaridade tinham pouca possibilidade de encontrar outros empregos que não fossem na indústria, conforme a fala abaixo:
até a 6 série...onde a gente morava não tinha como ter acesso...era tudo longe. Daí, quando a gente mudou pra cidade, eu tinha que trabalhar e não dava pra trabalhar e estudar. (Mara) 3. Relação de prazer e sofrimento com o trabalho: na fala das trabalhadoras entrevistadas aparece um ambigüidade na relação que tinham com o trabalho: ao mesmo tempo em que sofriam no trabalho pelo ritmo incessante e repetitivo gostavam de trabalhar porque eram reconhecidas pelo que faziam, se sentiam úteis e tinham amizades no serviço: Tu sabe que eu até cogitei em largar esse serviço, mas é um serviço que eu gosto de fazer. Mesmo sendo pesado, eu gosto de fazer. No inverno eu trabalho com couro, com tesoura, coloco na máquina, eu adoro, me largou na máquina eu adoro. (Ivete) 4. Marcas do trabalho no corpo: A doença, que marca o corpo, aparece nessas trabalhadoras enquanto uma manifestação das pressões sofridas na organização do trabalho: trabalho extenso, metas homéricas a serem atingidas, pouco tempo de intervalo para fazer as necessidades, trabalho amplamente repetitivo, entre outras coisas. A dor, causada pelas LER/DORT muitas vezes impede essas mulheres de desempenhar as mais simples funções domésticas, como vemos na fala: Eu não consigo nem pegar uma sacola de mercado, eu não agüento, de tanta dor, tem dias que eu tenho que ficar assim, eu não posso fazer isso aqui, é terrível assim dói tudo, e eu não sei o que é. (Lucélia) 5. Afastamento do trabalho e sofrimento: Todas as entrevistadas estão afastadas do trabalho, assim sentem-se improdutivas e impotentes, às vezes, com medo de nunca mais poder voltar a trabalhar, ficando dependentes de outras pessoas para viver. Todos esses e outros fatores fazem com que sintomas como a depressão, apareça em conjunto com as LER/DORT e o conseqüente afastamento do trabalho. Podemos verificar esses fatos através das falas das trabalhadoras: Agora eu me sinto rejeitada. Quando trabalhava ganhava atenção, ganhava meu dinheiro. (Inajara) Dava vontade de largar tudo e sair correndo pedindo socorro, mas eu não sabia o que era aquilo. Era tipo uma depressão. (Inajara)
Conclusão As trabalhadoras da indústria calçadista com LER/DORT pesquisadas apresentam muitas semelhanças em suas histórias de vida. Através do método Histórias de Vida pudemos destacar cinco aspectos relevantes para a compreensão das relações sociais, de trabalho e os processos de adoecimento dessas trabalhadoras. Pudemos ver como elas se relacionam com a sua doença e o que o afastamento do mercado de trabalho por LER/DORT acarreta na vida pessoal dos doentes. A partir disso, a possibilidade de construir políticas de prevenção e trabalhos de intervenção conta com mais este estudo como ferramenta de embasamento. Referências Assunção, A. A. (2005) Sistema Músculo-esquelético: Lesões por Esforços Repetitivos. In: Rene Mendes. (Org.). Patologia do Trabalho. 2 ed. Rio de Janeiro: Atheneu v. 1, (pp 1732-1738) Barbosa, M. S. A.; Santos, R. M.; Trezza, M. C. S. (2007) A vida do trabalhador antes e após a Lesão pos Esforço Repetitivo (LER) e Doença Osteomuscular Relacionada ao Trabalho (DORT). Revista Brasileira de Enfermagem, vol 60 (5) (pp. 491-496) Campos, H. R.; Alverga, A. R. (2001) Trabalho infantil e ideologia: contribuições ao estudo da crença indiscriminada na dignidade do trabalho. Estudos de Psicologia, vol 6 (2) (pp. 227-233) Durand, Marina(2000). Doença ocupacional: psicanálise e relações de trabalho. São Paulo: Escuta. Fontes, C. Métodos biográficos. Disponível em: <http://educar.no.sapo.pt/biograficos.htm> Acesso em: 19/09/06. Hennington, E. A.; Monteiro, M. (2006) O perfil epidemiológico dos acidentes de trabalho no Vale dos Sinos e o sistema de vigilância em saúde do trabalhador. História Ciências e Saúde, vol 13 (4) (pp. 865-876) Merlo, A. R. C.; Vaz, M. A.; Spode, C. B.; Elbern, J. L. G.; Karkow, A. R. M. E Vieira, P. R. B. (2003). O trabalho entre prazer, sofrimento e adoecimento: a realidade dos portadores de lesões por esforços repetitivos. Psicologia e Sociedade, vol 15 (1). (pp. 117-136). Merlo, A. R. C.; Ghisleni, A. P. (2005) Trabalho contemporâneo e patologias por hipersolicitação. Psicologia: Reflexão e Crítica vol. 18 (2) (pp. 171-176) Merlo, A. R. C.; Jacques, M. G. C. E Hoefel, M. G. L. (2001). Trabalho de Grupo com Portadores de Ler/Dort: Relato de Experiência. Psicologia: Reflexão e Crítica, vol 14 (1). (pp.253-258). IX Salão de Iniciação Científica PUCRS, 2008
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