Crônicas de Machado de Assis: reflexões sobre o livro e o jornal 1. Felipe Quintino LIMA 2 Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

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Transcrição:

Crônicas de Machado de Assis: reflexões sobre o livro e o jornal 1 Felipe Quintino LIMA 2 Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Resumo O artigo contextualiza a produção do escritor Machado de Assis na imprensa brasileira. Com participação efetiva na segunda metade do século XIX por meio da escrita de várias crônicas, ele trouxe discussões relevantes sobre o próprio gênero, a capacidade do jornal de ser um espaço de debates públicos e os impactos desse meio nos livros. As crônicas escolhidas para análise neste artigo vão enfocar a própria visão de Machado de Assis do trabalho de folhetinista, em um exercício de metalinguagem do escritor. Palavras-chave: jornalismo; literatura; livro; crônicas; Machado de Assis As páginas da imprensa brasileira nasceram políticas, de perfil opinativo e nacionalista. Desde o surgimento, elas registraram participação de escritores na vida dos jornais. O envolvimento dos escritores foi de forma variada. Eles foram editores, repórteres, cronistas e folhetinistas. Este artigo aborda a produção do escritor Machado de Assis, que escreveu várias crônicas em jornais do Brasil por quarenta anos. O foco do estudo será três crônicas que abordam as origens do próprio gênero, o papel do jornal na sociedade e o impacto do desenvolvimento do jornal sobre o livro. Machado de Assis foi o cronista que levou o gênero a um amadurecimento no Brasil e sua produção é constante a partir da segunda metade do século XIX. O escritor começa aos 20 anos como cronista em O Espelho, uma revista de literatura, modas, indústrias e artes. Até o final do século XIX, ele vai estar presente não só em crônicas, mas também em poesias, contos, romances, para ocupar aquele respirador artificial do jornal, colocado meio a tanta matéria política, pesada, mal distribuída, disposta em colunas de ínfima entrelinha e letra miúda (BRAYNER, 1992, p.407). 1 Trabalho apresentado no GP Produção Editorial do XI Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestrando em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e-mail: felipe.quintino@yahoo.com.br 1

O autor de Dom Casmurro também contribuiu com suas crônicas no Diário do Rio de Janeiro, no jornal humorístico Semana Ilustrada (1860-1875), O futuro (1862), na Ilustração Brasileira, em O Cruzeiro (1878) e na Gazeta de Notícias (1881-1900). Machado usa de pseudônimos em suas crônicas. Ele foi Lara, Lélio, Eleazar, Job, Sileno, entre outros. A crônica, vinda do folhetim francês, passa a ser um texto da imprensa, ganhando papel relevante no espaço dos periódicos. Em crônica chamada O folhetinista, de 30 de outubro de 1859, da série Aquarelas, Machado de Assis faz referência ao termo folhetim, com uma reflexão metalingüística do gênero. Ele mostra as características do próprio trabalho de folhetinista, numa interseção entre jornalismo e literatura. Machado de Assis trata o folhetim francês como algo superior, nobre. O rodapé dos jornais para o escritor tinha características diferentes no país de origem e suas influências no Brasil, sendo necessário algum caso de aclimatação séria. Faz uma distinção do local e do global: o folhetim na França tinha determinado estilo e formas de organização, inserido em outro contexto social. Quando o gênero foi para outros países, tomou formas e particularidades de acordo com o funcionamento da imprensa e do tipo de sociedade. Como ele argumentou, o folhetinista tratou de acomodar a economia vital de sua organização às conveniências das atmosferas locais. Machado sugere que se coloque no folhetim uma cor nacional, embora tenha reconhecido que escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil. Ele expõe que o folhetinista é a fusão do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. É possível perceber toda a extensão que o folhetim pode chegar, abrindo possibilidades de conversar sobre os mais diversos temas, tarefa que o escritor soube fazer com destreza. Os lados opostos que ele cita na crônica estão expostos nos textos. De um lado, críticas à política da época e resenhas teatrais. De outro, crônicas leves que traziam a distração dos leitores. A possibilidade de falar do cotidiano, com a união do útil e do frívolo, perceberemos em cronistas do século XX que marcaram a imprensa brasileira, como Rubem Braga e Nelson Rodrigues. Nem mesmo a falta de assunto para as crônicas deixou de ser citada pelo escritor, além da relação do folhetinista com as pessoas: Todos o amam, todos o admiram, porque todos têm interesse de estar bem com esse arauto amável que levanta nas lojas do jornal a sua aclamação de hebdomadário. Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas as vantagens de sua posição, nem todos os dias são tecido de ouro para os folhetinistas. Há-os negros, com fios de 2

bronze; à testa deles está o dia.. adivinhem? O dia de escrever! Não parece? Pois é verdadeira puríssima. Passara-se séculos nas horas que o folhetinista gasta à mesa a construir sua obra. Não é nada, é o cálculo e o dever que vêm pedir da abstração e da liberdade um folhetim! Ora, quando há matéria e o espírito está disposto, a coisa passa-se bem. Mas quando, à falta de assunto se une aquela morbidez moral, que se pode definir um amor ao far niente, então é um suplício (ASSIS, 1859). Na realidade, Machado de Assis soube trabalhar a linguagem específica, com uso de recursos estilísticos da literatura: um grande exercício do fazer crônica, para que seus leitores pudessem traduzir a aliança entre a reflexão (o real) e a brincadeira (a fantasia). Ele usou metáforas, citações eruditas e paródias. Segundo Brayner (1992, p.415), a característica do trabalho da linguagem está bem presente na crônica machadiana, pois está sobrecarregada de sua instrumentação retórica, um verdadeiro caleidoscópio metatextual. Na crônica A reforma pelo jornal, onde são encontradas referências históricas, ele comenta o papel do jornal como motivador da democracia e as diferenças do poder das palavras no jornal e no livro. Houve uma coisa que fez estremecer as aristocracias, mais do que os movimentos populares, foi o jornal. A palavra no jornal propiciaria, segundo Machado, a discussão e o choque da argumentação, envolvendo todo o corpo da sociedade. Esses efeitos da palavra não estariam no suporte livro e nas tribunas políticas na avaliação do escritor, porque continuavam em situação de monólogo, apesar de reconhecer as vertentes de criadora e prodigiosa. Ora pois, a palavra, esse tom divino que fez do homem simples matéria organizada, um ente superior na criação, a palavra foi sempre uma reforma. Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é monólogo; escrita no livro, é ainda criadora, mas é ainda o monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa é criadora, mas não é o monólogo, é a discussão. E o que é a discussão? A sentença de morte de todo o statu quo, de todos os falsos princípios dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não tem legitimidade evidente, e nesse caso o choque de argumentação é uma probabilidade de queda. Ora, a discussão, que é a feição mais especial, o cunho vivo do jornal, é o que não convém exatamente à organização desigual e sinuosa da sociedade (ASSIS, 1859). Apesar de ressaltar esse poder dos jornais de motivar a discussão e de ser o derramamento fácil em todos os membros do corpo social, Machado de Assis reconhece que os jornais aqui não estão à altura da sua missão. Também numa exaltação ao jornal como formador de um espírito crítico e responsável por trazer a interação entre os indivíduos, a crônica O jornal e o livro, publicada em 1859, polemiza uma discussão ao perguntar: O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal? O 3

jornal devorará o livro? Machado admite o fortalecimento do jornal, pois o campo jornalístico representaria uma tribuna de idéias, característica que faltaria ao livro na avaliação do autor. Para ele, o jornal representaria:... a verdadeira república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e o fogo das convicções. O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social[...]quem enxergasse na minha idéia uma idolatria pelo jornal teria concebido uma convicção parva. Se argumento assim, se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, um sintoma da democracia; e a democracia é o povo, é a humanidade (ASSIS, 1859). O escritor percebia a imprensa como um espaço para a mudança, de movimento e de tornar públicas as informações, enquanto a discussão pelo livro esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. Mas alerta que, admitido o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo, diz. O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento: "Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!" Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto? Não! graças a Deus! Esse mau uso caiu com o dogma junto do absolutismo. O jornal é a liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização. Tudo se liberta; só o talento ficaria servo?não faltará quem lance o nome de utopista. O que acabo, porém, de dizer me parece racional. Mas não confundam a minha idéia. Admitido o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo. Destruída a arquitetura, quem evita que à fundação dos monumentos modernos presida este ou aquele axioma d'arte, e que esta ou aquela ordem trace e levante a coluna, o capitel ou zimbório? Mas o que é real é que a arquitetura não é hoje uma arte influente, e que do clarão com que inundava os tempos e os povos caiu num crepúsculo perpétuo (ASSIS, 1859). Ao trazer essas provocações, Machado de Assis abre as possibilidades do jornal como atrativo para os homens das letras para que pudessem fazer seus escritos e obras serem reconhecidos pelo público. Por sinal, muitos escritores vão notar esse potencial da imprensa, que foi o caminho para a apresentação dos romances. A própria linguagem utilizada nos jornais refletia depois na literatura. Em Machado de Assis escritor em formação, Lucia Granja estuda a produção do escritor em início de carreira no Diário 4

do Rio de Janeiro. Ela argumenta que o jovem escritor antecipa, nas crônicas, procedimentos que vão ser utilizados posteriormente em seus romances, como o narrador que conversa com o leitor. A autora identifica várias passagens que são transpostas da crônica política para a literatura, em especial, em Brás Cubas, personagem do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ao estudar o deslizamento das narrativas de um meio para o outro, Vera Follain afirma que os romances, desde o momento que começaram a ser publicados em capítulos nos jornais, passaram por mutações, como a divisão em capítulos menores e a instituição do gancho entre um capítulo e outro, visando estimular a curiosidade do leitor. (p.27). A questão do jornal em confronto com o livro apaixonava intelectuais brasileiros e gerava polêmicas, segundo a pesquisadora Marisa Lajolo. Ela acredita que o caráter tardio da chegada da imprensa no Brasil tem relação direta com essa divergência. Lajolo lembra que essa questão foi retomada, por exemplo, no início do século XX, quando o escritor João do Rio fez um questionário com os principais intelectuais do período com a pergunta: o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mal para a arte literária? As respostas deram origem ao livro O momento literário. Machado de Assis e o lado político Aprendiz de tipógrafo da Imprensa Nacional e revisor do correio Mercantil, Machado de Assis escreve no Diário do Rio de Janeiro as crônicas denominadas Comentários da Semana, entre outubro de 1861 e maio de 1862, e Ao acaso, de junho de 1864 e maio de 1865. O Diário do Rio de Janeiro foi criado em 1821 pelo português Zeferino Vito de Meireles com um perfil popular. Devido ao seu baixo preço de comercialização, foi conhecido como o Diário do Vintém ou Diário da Manteiga (porque trazia o preço da manteiga que chegava à corte para consumo da população). O jornal, segundo Nelson Werneck Sodré, em História da imprensa no Brasil, foi o primeiro jornal informativo a circular no Brasil, com ênfase em questões locais e informações que tratavam de furtos, assassinos, reclamações, espetáculos, observações metereológicas, entre outros. O distanciamento das questões políticas era tão forte que o jornal não noticiou a Proclamação da Independência. Contudo, não é nesse contexto de jornalismo que insere a produção de Machado no Diário do Rio de Janeiro. Até 1859, o jornal manteve suas características populares. 5

Em 1860, foi reformulado por Saldanha Marinho, Henrique César Muzzio e Quintino Bocaiúva. O jornal passa a ter uma posição mais política. Nesse novo ambiente jornalístico, Quintino Bocaiúva convida Machado de Assis para a equipe do jornal. De acordo com Sodré (p.195), a companhia de Quintino Bocaiúva é estimulante. Machado de Assis escreverá, muito depois, páginas antológica sobre o espetáculo do Senado, que virá com os olhos atentos de jovem repórter. No jornalismo, ele manteve posturas críticas, deu opiniões e participou, com interesse, da política brasileira. O crítico Brito Boca, em artigo Jornalista político, presente no livro Machado de Assis e a política e outros ensaios, comenta a polêmica já levantada sobre a distância do autor para a realidade: Não resta dúvida de que Machado de Assis sempre acompanhou os acontecimentos políticos com interesse, formulando sobre eles juízos definidos. Mas o que se deu foi o seguinte. No começo de carreira, nos primeiros tempos de jornalismo, como bom romântico, formou na ala dos liberais e, colaborando em jornais dessa corrente, não hesitou em criticar os fatos políticos do ponto de vista de um liberal. Mais tarde, absorvido pela arte, absteve-se gradativamente do ardor primitivo até recair na ironia dissolvente que lhe caracteriza a maior parte da obra (BOCA, 1957, p.22). No Diário do Rio de Janeiro, jornal liberal, Machado de Assis fez críticas abertas ao governo. Em crônica de novembro de 1861, o escritor fez referência ao marasmo do governo e criticou o senador Pena e os ministros do Império. Chama os ministros de medíocres. Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão, disse. As opiniões políticas também estiveram presentes na série de crônicas intituladas de Bons Dias! São 49 crônicas, sendo 48 publicadas na Gazeta de Notícias e uma na Imprensa Fluminense. Algumas delas abordam a conjuntura da história do Brasil, com a abolição da escravatura e o fim do Império. Em um estudo sobre essas crônicas, John Gledson também encontra outros temas de preferência do autor, como a medicina popular, os neologismos e o espiritismo. Sobre essa série de Machado de Assis, Gledson avalia: Essas crônicas são, portanto, um entrelaçar de temas persistentes com os acontecimentos imediatos do dia. Na verdade, o segredo do grande cronista talvez esteja na capacidade de misturar os dois tão imperceptivelmente quanto possível, para que o assunto mais trivial revele o seu potencial. [...] A série Bons Dias!, como qualquer outra série de crônicas, é uma mistura do velho e do novo, do permanente e do ocasional (GLEDSON, 1990, p.24-25). 6

Considerações finais Percebemos a importância das crônicas para a produção de Machado de Assis e como parte do cenário da imprensa brasileira. Ao trazer as discussões sobre o papel do jornal e de sua influência no aniquilamento do livro, Machado de Assis propõe uma reflexão que estará bem presente em anos posteriores, com outras mídias e formatos artísticos. Os questionamentos também foram feitos diante do rádio e do cinema e, hoje, de forma mais enfática, entre o jornal e a internet. Como se vê, a discussão de uma mídia matando a outra não é nova. Machado de Assis já dava respostas para essa questão ao dizer, por exemplo, que o aniquilamento de um meio, no caso o livro, não seria de forma total, ou seja, havia a possibilidade de coexistência entre os formatos. As crônicas representaram um símbolo de experimentação ficcional, um espaço de exercício do escritor. Ele as usou como um grande laboratório de sua ficção, um desembaraço preparatório para as experiências de um novo enunciado romanesco (BRAYNER, 1982, p.426). Machado de Assis fez muito mais do que um exercício da linguagem. Ele caminhou por vários temas e problemas da época, em um compromisso de mostrar o cotidiano da vida política, social e cultural. Organizou um verdadeiro testemunho do período. As crônicas superam qualquer fragilidade que o gênero possa sugerir, tornando-as uma grande conversa com os leitores. Se relegarmos a crônicas machadianas a um gênero menor, perderíamos textos que representam formações discursivas de um tempo e que questionaram, com criatividade e ironia, a história do Brasil no século XIX. Referências ASSIS, Machado de. Bons Dias! Introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1990.. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986. BRAYNER, Sônia. Machado de Assis: um cronista de quatro décadas. In: CANDIDO, Antonio (org.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. FOLLAIN, Vera. Narrativas em trânsito. In: Revista Contracampo, Niterói, número 21, agosto/2010 7

GRANJA, Lucia. Machado de Assis: escritor em formação. São Paulo: Mercado de Letras, 2000. LAJOLO, Marisa. Jornalistas e escritores: a cordialidade da diferença. In: Comunicação & Sociedade, n.28, p. 9-24. 1997. SODRÉ, Nelson. História da imprensa no Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 8