Sobre a noção de verdade: da adequação à ontologia de Martin Heidegger

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Transcrição:

Sobre a noção de verdade: da adequação à ontologia de Martin Heidegger Leonardo Goulart Pimenta Resumo Este artigo trata de apresentar os fundamentos da ontologia para Martin Heidegger enquanto noção fundamental para compreensão da noção de verdade. Para tanto busca diferenciar a noção tradicional da verdade como adequação da perspectiva heideggeirana sobre verdade apoiada na compreensão do ser e da liberdade. Palavras-chave: verdade; Heidegger; ontologia; liberdade. A noção comum de verdade é intimamente relacionada à ideia de adequação. O conceito da tradição filosófica está apoiado na ideia de adequação: uma proposição é verdadeira quando adequada ao seu objeto. Tal perspectiva foi colocada em voga pela interpretação tradicional das obras aristotélicas e perdurou ao logo do tempo nos escritos de autores paradigmáticos, tais como Tomás de Aquino, Descartes e Kant. Heidegger apresenta uma explicação geral dessa perspectiva. A epistemologia neokantiana do século XIX caracterizou de muitas maneiras essa definição de verdade como expressão de u m realismo que, do ponto de vista do método, se manteve ingênuo, considerando-a incompatível com um questionamento que tenha passado pela revolução copernicana de Kant. O que assim não se percebe, e para Brentano chamou a atenção, é que Kant se ateve de tal modo ao conceito tradicional de verdade que nem chegou a discuti-lo: A antiga e famosa questão, com a qual se supunha colocar os lógicos em apuros, é a seguinte: o que é a verdade? O esclarecimento nominal da verdade como concordância entre o conhecimento e o seu objeto é aqui apresentada e pressuposta.... Se a verdade consiste na concordância de um conhecimento com o seu objeto, segue-se que esse objeto deve distinguir-se dos demais; pois um conhecimento é falso quando não concorda com o objeto a que está remetido mesmo que contenha algo que possa valer para outros objetos. E na introdução à dialética transcendental, Kant diz: verdade ou aparência não se dá na intuição e sim no juízo a seu Mestre e Doutor em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor de Filosofia do Direito, Direito Romano e História do Direito da Puc-Minas. leogoulart@ig.com.br Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 10

respeito, na medida em que é pensado (HEIDEGGER, 2002, p. 282-283). Heidegger apresenta três teses que caracterizariam a apreensão tradicional da essência da verdade: 1- O lugar da verdade é a proposição (o juízo); 2 - a essência da verdade reside na concordância entre o juízo e seu objeto; 3 - Aristóteles, o pai da lógica, não só indicou o juízo como o lugar originário da verdade, como também colocou em voga a definição da verdade como concordância. (HEIDEGGER, 2002, p. 282) Primeiramente, o conceito de verdade relaciona-se à realidade, ou adequação de algo à realidade. É comum dizer: é uma verdadeira alegria colaborar com este trabalho ; com isso quer-se manifestar a realidade do sentimento de alegria na adesão ao trabalho proposto (PAIVA, 1998, p. 139); a alegria é real, é verdadeira. Contudo, o conceito de real não é suficiente. Algo pode ser real, mas não ser autêntico. Falamos de ouro verdadeiro e ouro falso, embora ambos sejam reais. Mas ouro verdadeiro significa antes de tudo ouro autêntico (PAIVA, 1998, p. 139). O conceito de verdade implica, portanto, além da realidade, a autenticidade daquilo que é afirmado como verdadeiro. Porém, a noção de autenticidade também traz consigo a ideia de correspondência de algo àquilo que anteriormente se entende quando se fala de ouro, ou seja, é necessária uma prévia concepção do que seja ouro para que seja possível atestar sua autenticidade. Portanto, o conceito de verdade se revela como a concordância da coisa com o pensamento. Nós costumamos definir como verdadeiro os nossos juízos sobre as coisas e fatos da realidade, quando coincidem efetivamente com a situação. Um juízo é verdadeiro quando aquilo que pretende e diz se adequa com a coisa sobre a qual se exprime. Também neste caso, o conceito de verdade se revela como acordo, coincidência, adequação do pensamento com a realidade. A verdade é, pois, no sentido corrente da palavra, a coincidência da coisa com o pensamento e do pensamento à realidade (PAIVA, 1998, p. 139). Ainda, na medida em que a adequação entre o objeto e o juízo se expressa por meio de uma proposição, a verdade tem seu lugar natural na proposição. Predica-se ou não verdade à proposição. A partir da ideia de verdade como adequação, Heidegger traça novos rumos para o conceito de verdade apoiado numa releitura dos clássicos gregos. Sua pretensão é demonstrar a insuficiência da perspectiva tradicional e desdobrar um conceito de verdade como fundamento da possibilidade de adequação entre juízo e objeto. Não se trata de descartar a ideia de adequação, mas de encontrar a condição para que possa haver adequação. Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 11

Primeiramente, pode-se apontar um problema no conceito de verdade como adequação: a diversidade de natureza dos termos envolvidos. De um lado a coisa material, concreta, destinada aos fins da vida prática; de outro, o juízo lógico e o conceito universal, imaterial, privado de qualquer valor prático imediato. Márcio Paiva bem exemplifica este ponto: Sobre uma mesa encontram-se duas moedas do mesmo valor: elas coincidem na forma, no peso e no valor no aspecto. Mas se se diz: a moeda é redonda, entre a afirmação e a moeda não parece subsistir coincidência alguma. A moeda é efetivamente redonda, mas a afirmação não tem nenhuma forma uma vez que não é quantitativa. Com a moeda se compra algo, mas com a assertiva não se compra nada, o juízo não é utilizável como meio de pagamento. Não obstante todas as diferenças existentes entre a afirmação e a moeda, o dito juízo, enquanto verdadeiro, concorda com a moeda (PAIVA, 1998, p. 134). Apesar de haver uma relação, a proposição não se torna perfeitamente adequada ao seu objeto, não passa de uma concordância formal entre signo e significado. A proposição não faz nada mais do que uma imagem ou uma reprodução do objeto, não o torna presente tal como realmente é. Heidegger só se interessa pela problemática da hermenêutica histórica e da crítica histórica com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a estrutura prévia da compreensão (GADAMER, 2003, p. 354). Para que efetivamente haja adequação, Heidegger sustenta que o juízo deve tornar presente assim como a coisa é, para além da perspectiva tradicional. Trata-se de descobrir como o objeto é, de apresentá-lo como realmente é em todas as suas características, ou seja, adequar o objeto ao seu próprio ser, descobrir o Ser do ente. No caso, a proposição sobre a moeda se refere a ela enquanto a a-presenta como ela é. O juízo deve fazer aparecer, descobrir o Ser do ente. Assim, que uma asserção seja verdadeira significa: ela descobre o ente em si mesmo, enuncia, manifesta, deixaver (apo,fanoij) o ente no seu ser descoberto (PAIVA, 1998, p. 146). O que se deve verificar é unicamente o Ser estar descoberto do próprio ente, o ente na modalidade de sua descoberta. Isso se confirma pelo fato de que o proposto, isto é, o ente em si mesmo, mostra-se como o mesmo. Confirmar significa: que o ente se mostra a si mesmo. A verificação se cumpre com base num mostrar -se dos entes. Isso só é possível pelo fato de que, enquanto proposição e confirmação, o conhecimento é, segundo seu sentido ontológico, um Ser que, descobrindo, realiza seu Ser para o próprio ente real. A proposição é verdadeira significa: ela descobre o ente em si mesmo. Ela propõe, indica deixa ver (apo,fanoij) o ente em seu Ser e estar descoberto (HEIDEGGER, 2002, p. 286). Neste sentido, carece saber o que é o Ser para que se possa discutir a adequação dos entes a ele. A compreensão dos entes em geral depende da compreensão daquilo Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 12

que é, do Ser. Toda a discussão sobre os entes deve ser precedida por uma discussão sobre o Ser, uma ontologia. Como explica o próprio Heidegger em Ser e Tempo: A questão do Ser não se dirige apenas às condições a priori de possibilidade das ciências que pesquisam os entes em suas entidades e que, ao fazê-lo, sempre já se movem numa compreensão do Ser. A questão do Ser visa às condições de possibilidade das próprias ontologias que antecedem e fundam as ciências ônticas. Por mais rico e estruturado que possa ser o seu sistema de categorias, toda a ontologia permanece, no fundo, cega, e uma distorção de seu propósito mais autêntico se previamente, não houver esclarecido, de maneira suficiente, o sentido do Ser nem tiver compreendido esse esclarecimento como sua tarefa principal (HEIDEGGER, 2002, p. 37). E qual seria o caminho para compreensão do Ser? A proposta de Heidegger passa pela análise da existência do homem enquanto ser no mundo, por uma analítica existencial. Tal premissa decorre do fato de que o homem é o único ente que tem condições de questionar sobre seu ser. A compreensão do Ser deve buscar suas raízes no homem enquanto ente que dispõe do privilégio de colocar em jogo seu próprio ser. Na interpretação das coisas está sempre a compreensão que o homem tem de si mesmo no conto está sempre o contador (STRECK, 2003, p. 188). Como Heidegger analisa o homem numa perspectiva transcendental, como Dasein, a rigor, a via de acesso ao Ser é o Dasein. Aquilo que os gregos denominavam animal racional passa a ser compreendido na filosofia heideggeriana como Dasein (PAIVA, 1990, p. 60). Heidegger usa Dasein para indicar o ser dos humanos, todo o homem é Dasein: esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pre-sença (HEIDEGGER, 2002, p. 33). A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre os outros entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da pre -sença a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se abra e manifeste com que por meio de seu próprio o ser, isto, é sendo. A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da pre -sença. O privilégio ôntico que distingue a pre-sença está em ser ela ontológica. (HEIDEGGER, 2002, p. 38). Como ainda explica Lênio Luiz Streck: Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 13

O conceito de ser é o mais universal e o mais vazio, resistindo a toda tentativa de definição. Por ser o mais universal dos conceitos, prescinde de definição. Não se pode derivar o ser no sentido de uma definição a partir dos conceitos superiores nem explicá -lo através de conceitos inferiores. Por outro lado, visualizar, compreender, escolher são atitudes constitutivas do questionamento e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente que nós mesmos sempre somos. Elaborar a questão do ser significa tornar transparente um ente em seu ser. Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, é designado como o termo pre -sença. O ser não pode ser concebido como ente, logo, o ser não é um ente (STRECK, 2003, p. 187). Contudo, mesmo sendo o lugar onde o Ser de desvela, o sujeito tem como compreender o Ser de todos os demais entes. A totalidade do universo deixa-se tematizar pela mediação de uma análise do homem enquanto ser no mundo. Isto ocorre porque entre o seu Ser e o Ser dos demais entes não há diferença, o Ser é um só; logo, ao compreender seu Ser, ele tem condições de compreender o Ser de todos os demais entes. O Dasein existe sempre dentro de uma compreensão do seu Ser, num estado interpretativo de si mesmo. E neste referir-se a si mesmo, o homem é capaz de compreender o Ser do ente diverso dele. E qual seria o sentido do Ser? Para Heidegger, a compreensão do Ser se dá sempre no horizonte do tempo. Primeiramente, a ideia de horizonte implica a ideia de abertura - por definição não existe horizonte fechado. Antes, o que está a dizer a palavra horizonte? Por que falar em horizonte? Tomamos a palavra horizonte, que vem de horizo, definir, limitar, assimilar os confins de algo no duplo sentido d e limitar e condicionar. Ao mesmo tempo em que o horizonte assinala os limites de algo, condiciona as estruturas e o sentido daquilo que é limitado, e desse seu ser limitado é, por sua vez, determinado. Talvez o procedimento de Heidegger fosse completamente outro. Certamente ele imaginaria uma viagem de navio. Quando nos damos conta, já estamos em alto-mar. O que vemos diante dos olhos? A imensidão das águas, que coincide com o firmamento. É isso mesmo, aquilo lá é o horizonte. Porém, depois de algum tempo, continuamos a navegar e o que acontece com aquele horizonte de antes? Parece ter sido englobado num horizonte não completamente igual e não completamente diferente, pois permanece sempre o horizonte da viagem. O horizonte, então, se descortina ao caminhar. Talvez o filósofo tomasse como exemplo o cair da tarde. Lá está ele a contemplar o ocaso do sol e a olhar o horizonte que torna cada vez mais escuro. O exemplo do navio é mais eloquente. Se considerarmos pessoas que estão ali a degustar a viagem e a dialogar, o horizonte assume novas significações, mesmo que no seu limite não venha a mudar praticamente nada. Mas quando o horizonte se torna mais vasto, permanece ainda a noção de horizonte enquanto delimitação. O horizonte é o limite que se Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 14

descortina como dimensão espaciotemporal, como condição para que algo aconteça (PAIVA, 1990, p. 46). Ao se dar num horizonte, o Ser é um Ser aberto, ou seja, não se pode trancafiar o Ser numa noção definitiva e imutável. Esta abertura, por sua vez, ocorre no tempo, o Ser é aberto no tempo. O Ser se desvela ao longo do tempo sem nunca se deixar fechar numa noção definitiva. O sentido do Ser é tempo isto quer dizer: Ser não é nada persistente, é algo passageiro, não é nada presente, mas acontecimento (SAFRANSKI, 2000, p. 206). Ou ainda, como a temporalidade fundamenta a historicidade, é possível dizer que o Ser é algo que acontece na história, que toda compreensão sobre o Ser é aberta à sua determinação histórica. O ser do Dasein tem o seu sentido na temporalidade. Esta, por sua vez, é também a condição de possibilidade da historicidade enquanto um modo de ser temporal próprio do Dasein, mesmo abstraindo da questão se e como o Dasein é um ente no tempo (HEIDEGGER, 2002, p. 47). Com efeito, todas as asserções do tipo a vida é isto..., o mundo é aquilo..., são apenas falsamente ontológicas, pois o é não pode assumir, em uma asserção final, o peso de sua construção e reconstrução no dia a dia. Sendo o homem o momento fundamental do desvelamento do Ser, sua existência torna-se aberta ao horizonte do tempo. O sentido do Ser do homem é ser histórico, sua existência significa estar historicamente aberto ao Ser. O homem existe como ser aberto, i.e., ele nunca está acabado como algo completo, em todos os pontos está aberto para um futuro (SAFRANSKI, 2000, p. 190). Ao compreender seu Ser como Ser aberto ao tempo, o homem é lançado num eterno processo de construção de si mesmo. Sua existência passa a ser entendida como uma atitude em relação a si mesmo. A compreensão do Ser do homem implica um ato de sempre procurar algo além do presente, em descobrir aquilo que ainda não é. Esta atitude, este modo de ser, deve se desenvolver em toda e qualquer atividade humana. Todo o agir do homem deve ser compreendido sob o prisma do ser. A compreensão do Ser não supõe apenas uma atitude teorética, mas todo o comportamento humano, ou seja, compreender não é um simples modo de conhecer, mas um modo de Ser. Por conseguinte, o homem passa a entender que seus juízos sobre a verdade também devem ser interpretados à luz do Ser, i.e., no horizonte do tempo. O homem descobre que as verdades do juízo são abertas ao tempo, históricas. Não há mais um lugar seguro para a verdade do juízo, não há mais verdades eternas. Há sim uma historização da questão da verdade através de sua própria condição da revelação: um existencial que é um elemento dinâmico, ligado à historicidade (STEIN, 1993, p. 23). A característica do homem em Ser aberto ao tempo o coloca numa situação de sempre propor novos juízos sobre a realidade. A verdade é uma atitude constante de busca por âmbitos ainda desconhecidos, é um Ser-descobridor. Ao colocar a questão da verdade no horizonte do tempo (STEIN, 1993, p. 21), Heidegger retira o caráter de verdade da proposição e o coloca num nível fundamental: verdade é o que possibilita ao homem propor juízos sobre a realidade. Trata-se da verdade como a possibilidade de haver uma adequação entre juízo e objeto, e não como a adequação propriamente dita. É a verdade como condição de possibilidade (STEIN, 1993, p. 21), como a reflexão sobre o fundamento da adequação Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 15

entre o juízo e a realidade. A verdade é o que capacita o homem a fazer toda e qualquer proposição e juízo, é a busca por âmbitos ainda desconhecidos. Heidegger sustenta que existe uma verdade que não é apenas verdade das proposições, verdade simplesmente do proferimento das sentenças, mas uma verdade que seja vista como condição de possibilidade para podermos entender o que é verdadeiro ou falso de uma proposição. Essa é a questão: uma espécie de verdade fundante (STEIN, 1993, p. 18). A verdade se dá na história, quer dizer, só é possível afirmar algo como verdadeiro ou falso na história, isto porque o Ser se dá no tempo, tal como a interpretação do próprio homem demonstra. Resta ao homem, portanto, deixar que o Ser se apresente na história. Porém, deixar-ser algo nesse contexto não tem o sentido de desleixar ou ser indiferente, mas vale o contrário: confiar-se no ente, confiar naquilo que é manifesto e na sua manifestação, em cuja origem o ente mora (PAIVA, 1990, p. 59). E é justamente este deixar que o Ser seja na história, o deixar-ser o ente, que Heidegger define como um dos momentos fundamentais da liberdade. Ou seja, o deixar que o Ser se apresente assim como é, o deixar-ser o ente, é liberdade. A liberdade é experimentada como o deixar-ser, no sentido de que a liberdade humana deixa-ser o ente como ele é e lhe permite revelar-se na sua especificidade. Mas vejase que este deixar-ser significa, Mas veja-se que este deixar-ser significa, antes de tudo, a liberdade do próprio ente em se manifestar, quer dizer, deixar ser é deixar que ele se mostre livre de qualquer estrutura pressuposta ou pré-determinada. Deixar ser aberto significa não sobrecarregar aquilo que se manifesta com estruturas categoriais de ordem psicológica ou gnoseológica, pois estas esconderiam o vulto do que se manifesta e impediriam o acontecer da verdade como alhqeia, como manifestação (PAIVA, 1998, p. 147). Nestes termos, a liberdade fundamenta a própria ideia Heidegeriana de verdade. A liberdade é o fundamento da intrínseca possibilidade da conformidade, é a condição para que o Ser se a-presente assim como é. Em síntese, a essência da verdade é a liberdade. About the notion of truth: from the adequacy to the ontology of M. Heidegger Abstract This article is to present the fundamentals of ontology to Martin Heidegger as a notion fundamental to understanding the notion of truth. For it seeks to differentiate the traditional notion of truth as adequacy of Heideggeir perspective on truth be supported in understanding and freedom. Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 16

Keywords: truth, Heidegger, ontology and freedom. Referencias GADAMER, Hans Georg. Verdade e método: volume 1: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo (trad. Márcia Sá Cavalcante Shuback). 12ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. PAIVA, Márcio Antônio de. A liberdade como horizonte da verdade segundo M. Heidegger. Roma: Editrice Pontifica Università Gregoriana, 1998. PAIVA, Márcio Antônio de. O horizonte da liberdade. Cadernos da Pró-Reitoria de extensão da PUC Minas, Belo Horizonte: PUC Minas, v. 1, n. 1, mar. 1990. SAFRANSKI, Rudiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003. STEIN, Ernildo. Seminário sobre a verdade: lições preliminares sobre o parágrafo 44 de Sein und Zeit. Petrópolis: Vozes, 1993. Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 5, nº 9, novembro de 2012 17