Palavras-chave: Trabalho artesanal, corporeidade, relação humanos e cavalos.

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Transcrição:

Da mão que queima à mão que acaricia: notas etnográficas sobre os encontros corporais entre humanos e animais não humanos no trabalho artesanal da doma de cavalos 1 Daniel Vaz Lima (PPGAnt/UFPel) Flávia Rieth (PPGAnt/UFPel) Resumo: Neste texto discutimos, a partir da descrição etnográfica da técnica da amanonciação, a noção de artesanato de Richard Sennett (2013) para quem o pensamento e o sentimento estão contidos no processo do fazer artesanal. Os movimentos aliados ao tato e as diferentes maneiras de segurar e tocar com as mãos afetam a maneira de pensar e constituem, no caso deste texto, a habilidade artesanal para a lida com os cavalos. No contexto do pampa, desenvolveram-se formas de sociabilidade a partir das estreitas relações estabelecidas entre humanos com os não humanos e cujas possibilidades se pode apreender, etnograficamente, por meio do estudo das diferentes técnicas de manejo dos animais. No caso do ofício da doma de cavalos, que é um saber e modo de fazer que busca ensinar equinos para as práticas relacionadas aos trabalhos que envolvem a pecuária extensiva, desde as etapas iniciais do processo técnico, humanos e animais não humanos estabelecem formas de comunicação pelo envolvimento em forma de práticas corporais. O artigo consiste em pensar a relação entre o domador e o cavalo nos estágios iniciais da doma considerando os seus encontros corporais, especificamente no que se refere ao encontro da mão do domador com o corpo equino. A técnica da amanonciação consiste na primeira etapa do trabalho de ensinar cavalos em que o domador busca uma aproximação com o animal visando acostumá-lo com a mão que vai tocando as diferentes partes do seu corpo, processo que chamam ir tirando as cóscas. O estabelecimento de uma comunicação a partir da linguagem verbal e principalmente corporal, junto da mediação dos artefatos, consiste nos principais atributos desta técnica. A percepção dos domadores referente a uma sensação corpórea do cavalo, que vai de um toque de mão que parece que queima e desconforta à um toque que acaricia e que gera sensação de conforto, nos convida a um conjunto de reflexões acerca do encontro entre o animal humano e o animal não humano no processo técnico. O toque da mão do domador que desenvolveu a habilidade de tocar por meio da sensibilização da ponta dos dedos engendra pensar o aprendizado e a construção do artífice domador pela relacionalidade com os animais não humanos, os artefatos e os ambientes. Palavras-chave: Trabalho artesanal, corporeidade, relação humanos e cavalos. 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 1

1 Introdução As reflexões de Richard Sennett (2013) sobre a maneira como podemos perceber o trabalho artesanal dentro das relações sociais contemporâneas consistem numa referência central para a construção deste texto sobre o ofício da doma de cavalos no contexto do pampa brasileiro. Sennett escreve que as habilidades, inclusive as abstratas, iniciam como práticas corporais de um conhecimento adquirido com a mão, pelo toque e movimento. Por conseguinte, o entendimento técnico é uma capacitação pela força da imaginação que direciona e orienta a habilidade corporal. Nesse sentido a noção de habilidade artesanal consiste numa aptidão desenvolvida a partir do engajamento, que significa dizer por meio do treinamento e repetição, o que, por sua vez, infere uma autocritica constituída por meio da relação entre detecção do problema e a sua solução. No caso do ofício da doma de cavalos, que é um saber e modo de fazer que busca ensinar equinos para as práticas relacionadas aos trabalhos que envolvem a pecuária extensiva, desde as etapas iniciais do processo técnico, humanos e animais não humanos estabelecem formas de comunicação pelo envolvimento em forma de práticas corporais. O artigo consiste em pensar a relação entre o domador e o cavalo nos estágios iniciais da doma considerando os seus encontros corporais, especificamente no que se refere ao encontro da mão do humano com o corpo equino. A técnica da amanonciação consiste na primeira etapa do trabalho de ensinar cavalos em que o domador busca uma aproximação com o animal visando acostumá-lo com a mão que vai tocando as diferentes partes do seu corpo, processo que chamam ir tirando as cóscas. O estabelecimento de uma comunicação a partir da linguagem verbal e, principalmente, corporal, junto da mediação dos artefatos, consiste nos principais atributos desta técnica. Os domadores percebem o cavalo como um ser em constante fuga. Assim, nos primeiros contatos, todo o corpo do cavalo é fuga, ou seja, o toque da mão é reprimido pelo corpo do animal e controlado pelo olhar vigilante que quer saber o que o domador está fazendo. Esse olhar vigilante está presente nestes primeiros contatos e constantemente cria uma situação de defesa para a fuga. O toque pela mão busca estabelecer uma relação de confiança que permite uma aproximação e assim, nas etapas seguintes do processo de ensinamento do potro cavalo em processo de iniciação de doma -, o toque que acaricia vai antecipar qualquer ação no corpo do equino, principalmente no que se refere aos ensinamentos com os diferentes artefatos de montaria. Portanto, essa percepção dos domadores referente a uma sensação corpórea do cavalo, 2

que vai de um toque de mão que parece que queima e desconforta à um toque que acaricia e que gera sensação de conforto, nos convida a um conjunto de reflexões acerca do encontro entre o animal humano e o animal não humano no processo técnico. O toque da mão do domador que desenvolveu a habilidade de tocar por meio da sensibilização da ponta dos dedos engendra pensar o aprendizado e a construção do artífice domador pela relacionalidade com os animais não humanos, os artefatos e os ambientes. Por conseguinte, mostraremos que essas habilidades estão relacionadas as transformações do ofício da doma no decorrer do desenvolvimento da pecuária extensiva e das relações de mercado da sociedade capitalista. 2 A Habilidade artesanal : A experiência do Homo faber A proposta central de Richard Sennett no livro O artífice é estabelecer uma reflexão a partir da distinção entre as duas imagens de pessoas trabalhando elaborada por Hannah Arendt. De um lado tem-se o trabalho braçal rotineiro do animal laborens em que as pessoas fazem coisas que não sabem o que estão fazendo (SENNETT, 2013, p. 11) onde nada mais importa do que fazer a coisa funcionar, ou seja, estão entregues a realização de uma tarefa. Do outro lado, em contraponto e também de forma superior a primeira imagem, encontra-se a atividade artesanal como uma outra forma de vida, sendo um trabalho que desenvolve a criatividade pois que se deixa de produzir para discutir e julgar em conjunto. Nesta segunda imagem tem centralidade o conceito de homo faber, homem que faz. O autor considera esta divisão equivocada, pois o animal laborens também tem capacidade de pensar considerando que o produtor pode discutir mentalmente com os materiais ao mesmo tempo em que trabalhar conjuntamente com outras pessoas possibilita que conversem a respeito do que estão fazendo. A questão, portanto, está em responder o que o processo de fazer coisas revela a nosso respeito (ibdem, p. 18). A técnica é assim o cultivo de um estilo específico de vida, não sendo um procedimento maquinal, mas uma questão cultural (ibdem, p. 19). Sennett desenvolve essa questão por meio do conceito trabalho artesanal como uma expressão que supostamente desapareceria na sociedade industrial. Porém, esta noção sustenta-se a partir do princípio de que o impulso humano básico é o desejo de um trabalho bem feito por si mesmo, e assim, abrange um aspecto mais amplo do que a atividade manual dando conta de atividades que são praticadas de maneira capacitada, tais como a cidadania. O 3

artífice é entendido como aquele que se engaja de uma forma prática, mas não instrumental, com o objetivo de fazer um bom trabalho por meio da curiosidade, investigação e a capacidade de aprender com a incerteza. A habilidade artesanal é uma aptidão desenvolvida em alto grau onde as pessoas, deixam de esforçarem-se somente para fazerem as coisas funcionarem, tornando-se capazes de sentir e pensar sobre o que estão fazendo. A técnica é uma habilidade incorporada por meio do envolvimento perceptivo das práticas corporais, como o pegar com a mão, em que o treinamento vai constituindo as habilidades, que são os movimentos corporais sincronizados (INGOLD, 2010, SENNETT, 2013). A maneira como aprende-se um saber e modo de fazer se dá a partir da experiência adquirida, sendo um constante processo de educação corporal expressas na forma como os humanos movimentam seus corpos (MAUSS, 2003). Sennett (2013) entende que a habilidade artesanal é a incorporação de um processo de conversão da informação e das práticas em conhecimento tácito. Conhecimento que é adquirido com a mão por meio do toque e movimento. O autor escreve que, de todos os membros do corpo humano, a mão é a que é dotada de maior variedade de movimentos o que permite trabalhar as coisas de diferente maneiras. A evolução biológica e cultural do humano e o aparecimento do homo faber estão relacionados a mudança estrutural das mãos que se deu quando se capacitou segurar as coisas com segurança numa mão, para poder trabalhar com a outra. O treinamento por meio da repetição permite a autocrítica no sentido de que o movimento das mãos estimula determinadas regiões do cérebro expandindo a capacitação. Os calos adquiridos consistem num processo de sensibilização da mão para o controle dos movimentos através da força mínima e aprender a soltar proporcionando o autocontrole do corpo e facultando a precisão nos gestos. No trabalho manual a força bruta e cega é contraproducente. Assim, fazer algo repetidas desenvolve a habilidade de olhar para a frente e prever aquilo que vai se transformar. Ao treinar a mão desenvolve-se uma habilidade rítmica considerando que as mãos vão acumulando um repertório de gestos adquiridos. (Ibdem, p. 190 192). Por conseguinte, a habilidade artesanal, além do treinamento dos movimentos corporais que expande as capacitações, é o resultado de uma interação entre os humanos e destes com a dimensão não humana sendo um aprendizado a partir do encontro com o outro (Wagner 2010). A aprendizagem, que vai constituindo a habilidade, é transmitida ao iniciante pelos mais velhos, através do que Ingold (2010, p. 20) chama de educação 4

da atenção. Esse aprendizado não se dá pela entrega de um corpo de informações desincorporada, consideradas representações, mas pela criação, por meio das atividades de determinada geração, de contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem suas próprias habilidades incorporadas de percepção e ação. O iniciante aprende imitando os gestos e tentando repetir os movimentos corporais e rítmicos de seus mestres. Por conseguinte, o aprendizado se dá pelo caminhar no mundo (especificamente, no pampa), se engajando de diferentes maneiras em múltiplos contextos (LAVE, 2015) como participante cambiante (ibdem, 2015, p. 42) entendido com aquele que se movimenta por entre os contextos que influenciam e moldam a aprendizagem das diferentes técnicas. A referência de Carlos Sautchuck (2015) que adota as noções de Tim Ingold e Leroi-Gouhan para refletir sobre a aprendizagem de pescadores laguista e costeiros, percebe a técnica a partir, não da relação entre o organismo e ambientes mediados pelos artefatos, mas pelos movimentos e ritmos estendendo o olhar para os gestos humanos. As habilidades, nesse sentido, são construídas a partir de uma conjunção de movimentos. Assim, pode-se adotar a referência para conceber a construção do artífice domador por meio de uma constituição corporal mais ampla que está associada a outros movimentos. O enfoque deve ser a atividade engajada e suas ações junto a outras ações. O domador é um ato devendo-se atentar para sua formação como parte do fluxo de processos mais amplos (SAUTCHUK, 2015, p. 133). A doma, nessa conformação teórica, é um conjunto de aconteceres que se entrelaçam e o domador mistura os elementos em combinações variadas (diferentes artefatos, diferentes cavalos) de maneira a redirecionar seus fluxos com intuito de antecipar o que irá emergir (INGOLD, 2012, p. 36). Assim, a relacionalidade entre os animais humanos, os animais não humanos, os artefatos e os ambientes na construção do artífice domador e das diversas técnicas de ensinar cavalos se dá por meio da emergência dos diversos ritmos e fluxos que constituem os ambientes no pampa. Giovani Alves (2015) retoma a discussão referente as duas narrativas sobre o trabalho no capitalismo baseadas nas noções de animal laborens e homo faber. O autor não desconsidera essa distinção ao passo que são a condição existencial da pessoa que trabalha no capitalismo. Ao mesmo um trabalhador pode ser uma força de trabalho como mercadoria, ou seja, um empregado executando tarefas cotidianas, e também, um Homo faber que desenvolve uma capacitação pelo engajamento. Com as transformações do mundo do trabalho nas sociedades industriais cujas relações sociais são regidas pelo 5

modo de produção capitalista enquanto um fazer produtivista, existe a tendência do trabalho artesanal incorporar em parte as dimensões dos seus processos produtivos precarizando a própria atividade e as pessoas, reduzindo o homo faber ao animal laborens que significa corroer o desejo do trabalho bem feito por si mesmo. Entretanto, o autor ressalta que o processo de, resgatar a experiência oculta do homo faber nas narrativas do trabalho significa demonstrar que, apesar do processo de especialização e fragmentação do sujeito que trabalha, existe (e persiste), nos interstícios do mundo vivido de homens e mulheres que trabalham em ofícios e profissões, narrativas de resistência e memória que expõe o outro lado da condição humana salientada por Hanna Arendt: A experiência do homo faber. (ALVES, 2015, p. 14) Se o tempo do artífice é lento permitindo a reflexão, os mesmos inseridos na sociedade capitalista têm que adaptarem seus tempos dando conta da necessidade de produtividade. Nesse sentido, o fazer está inserido em processos sociais mais amplos que o fazem transformar sua forma de trabalho para se inserir as normas sociais. No próximo item, apresentaremos como as transformações do mundo da pecuária, especificamente no que se refere ao surgimento de um complexo agronegócio do cavalo no pampa, faz com que os domadores busquem se adaptarem a essas novas configurações. 3 As transformações do ofício da doma no pampa Num texto intitulado O trabalho visto pela antropologia social José Sérgio Leite Lopes (2013) desenvolve que o tema trabalho está presente nas etnografias sobre grupos indígenas, étnicos, camponeses, artesãos, embora não como tema central da reflexão, mas embutido na vida social do grupo sendo um dos seus aspectos. O tema torna-se domínio da antropologia somente no momento em que nas sociedades capitalistas ocorre o processo de proletarização dos camponeses os quais migram do campo para a cidade se tornando trabalhadores industriais. A antropologia brasileira enquanto uma anthropology at home passa então a se interessar pelo tema sendo que uma de suas preocupações é etnografar o impacto do capitalismo sobre esses grupos de trabalhadores. Entretanto, nos parece que o centro das reflexões do autor é o trabalhador assalariado e não dá conta dos trabalhadores que exercem ofícios sejam agricultores familiares, artesãos e peões da pecuária. Nesse sentido, quando deixamos de estudar o trabalhador 6

enquanto categoria social, para concebê-lo como uma pessoa humana que trabalha (ALVES, 2015, p. 9) podemos enriquecer as reflexões antropológicas sobre o assunto. Assim, o tema dos ofícios e profissões enquanto uma dimensão oculta dentro do sistema capitalista ganha relevância e centralidade. O conjunto de observações escritos por Leticia Ferreira e Jussemar Gonçalves (2011; 2012a; 2012b) referente aos trabalhadores rurais do pampa nos conduzem a pensar sobre um modo de vida em constante transformação - em alguns casos em ruinas -, e que concilia o trabalho, a lida do campo, o convívio com os animais e a vida. Os autores argumentam que poucos trabalhos foram produzidos no pampa brasileiro referente a história, a memória e ao modo de vida desses trabalhadores rurais. Compartilhamos a constatação dos autores e entendemos em forma de hipótese que isso se deve ao fato de uma visão por parte das ciências sociais que considera esses trabalhadores como não politizados, ou seja, não se reconhecem como sujeitos de direitos no sentido de buscar o que lhe é garantido pelo estado. Ora, impor uma forma de cidadania pautada em uma legislação a um grupo que partilha um determinado modo de vida sem perguntar-se como eles constroem suas próprias relações políticas, é desconsiderar a compreensão das possíveis formas de cidadania construídas de diferentes maneiras, por grupos diversos. No âmbito do cotidiano constroem-se relações e modos de vida que muitas vezes entram em conflito com a legislação trabalhista. Outra questão refere-se ao fato de que a literatura das ciências sociais considera este trabalho na pecuária como em processo de extinção, sendo que aquilo que foge aos padrões e regras legais figuram como sobrevivências de um passado que não está de acordo com o moderno fato que, em nossa experiência de campo, observamos como um processo de constantes transformações. Para os autores, os ofícios voltados para a manutenção da pecuária no pampa, abarcados pela denominação lidas campeiras, vem se transformando a partir das novas configurações do capitalismo. O trabalho que, de uma maneira geral, é marcado pelo caráter de aventura, é afetado pela introdução de novas técnicas sendo quase extintos, seja o ofício quanto seu artesão (FERREIRA e GONÇALVES, 2012a, p. 157). As transformações dos processos produtivos conformadas por novas tecnologias e necessidade de se adaptar as exigências do mercado alteram o trabalho dos peões campeiros (idem, 2012b). Atividades vinculadas a uma ideia de aventura que se caracterizam pela presença dos cavalos e cachorros, são refutadas por novas técnicas de manejo considerando que podem interferir na produtividade, ou seja, no engorde do gado. 7

Assim, o manejo com animais vacuns deve ser feito com vagar para não estressá-lo fazendo com que perca peso (idem, 2012b, p. 04). Por conseguinte, este texto se insere numa série de etnografias 2 que se desenvolveram (e estão sendo desenvolvidas) como desdobramentos do trabalho realizado pelo Inventário Nacional de Referências culturais INRC lidas campeiras na região de Bagé (1 Fase) 3 que realiza pesquisa de campo desde 2010. Para a documentação do inventário o grupo se constituiu por uma equipe de antropólogos, historiadores e geógrafos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com financiamento e metodologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O objetivo consistiu em inventariar a pecuária extensiva (criação de bovinos, ovinos e equinos com fins econômicos) nas práticas e saberes que a compõe, como referência na constituição da cultura pampiana (KOSBY e SILVA, 2013; RIETH et al 2013, RIETH, RODRIGUES e MARTINS, 2015). Observou-se que as transformações da pecuária influenciam diretamente nas configurações do trabalho e consequentemente no modo de vida. A introdução do método de pastoreio rotativo Voisin (RIETH et al, 2013), que consiste em um manejo que não utiliza cachorros e cavalos sendo o boi quem segue o homem, não o homem quem corre atrás do boi. A convivência diária entre o gado e o peão a pé estreita a relação entre ambos. Os proprietários da fazenda elencam a dificuldade em contratar peões campeiros para as lidas com o método Voisan elencando uma resistência desses trabalhadores na lida a pé sem cavalo e cachorros e sem os artefatos que aprenderam a trabalhar. A preferência dos peões em correr atrás do boi ao invés de ensiná-lo a seguir seus passos reflete um modo de vida sustentado na lógica da caça, em que o animal domesticado se torna xucro quando manejado de forma tradicional (RIETH, LIMA e BARRETO, 2014). A partir dos ofícios levantados pelo INRC, uma das pesquisas empreendeu uma reflexão sobre a relação entre humanos e cavalos no ofício da doma (LIMA, 2015). Este ofício é um saber e modo de fazer que é praticado pelo domador concebido como um 2 Ver SILVA (2014), LIMA (2015) e BARRETO (2015). 3 O trabalho de levantamento do inventario foi financiado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Se constituiu a partir de uma demanda da Prefeitura de Bagé/RS ao Instituto e acolhida pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), por intermédio do curso de Bacharelado em Antropologia que se utilizou da metodologia deste para inventariar os bens patrimoniais de caráter imaterial. A primeira fase compreende os anos de 2010-2013. A equipe de pesquisadores do INRC Lidas Campeiras na região de Bagé/RS foi composta por: Flávia Maria Silva Rieth (Coordenadora), Marília Floôr Kosby, Liza Bilhalva Martins da Silva, Pablo Dobke, Marta Bonow, Daniel Vaz Lima, Cláudia Turra Magni (Consultora em Antropologia da Imagem), Fernando Camargo (Consultor em História), Erika Collischonn (Consultora em Geografia) Beatriz Muniz Freire e Marcus Benedetti (técnica/o IPHAN). 8

artífice que possui a habilidade das diferentes técnicas de ensinar cavalos para as práticas relacionadas aos trabalhos que envolvem a pecuária extensiva. O saber e modo de fazer da doma é constituído de diferentes momentos em que se acionam a utilização de determinados artefatos, estabelecendo uma interação em que o cavalo e o humano aprendem formas de comunicação (ibdem, 2015). Enquanto um saber e modo de fazer histórico e culturalmente construído, vem constituindo-se nessa área cultural (LEAL, 1997), dentro de um processo histórico de circulação de elementos humanos e não humanos que, nos encontros com os outros aprenderam novos saberes num movimento constante de invenção da cultura (WAGNER, 2010). Geralmente a doma é praticada dentro das estâncias propriedades rurais cujas atividades estão voltadas para a pecuária extensiva -, e o domador, assim, é um trabalhador por conta própria que circula pelas propriedades rurais vendendo sua força de trabalho. Os processos iniciais da doma iniciam no final do verão e início do outono, período chamado primeira sova. No inverno os cavalos são soltos no campo e retornam às atividades no início da primavera quando começam a aprender a realizar as práticas das lides pastoris, período chamado de segunda sova. A doma de um cavalo, nesse caso, tem duração de praticamente um ano e segue o tempo de aprendizagem do animal e o tempo do domador. Por conseguinte, o potro segue aprendendo a prática no cotidiano de trabalho no manejo com os bovinos e ovinos. Com a transformação das técnicas, a atividade passou também a ser praticada em ambientes urbanos (HOWES NETO, 2006, p. 51) transformando esta forma de trabalho. Na maioria dos estabelecimentos localizados nos ambientes urbanos em que fizemos trabalho de campo, as técnicas de domar cavalos estavam voltadas quase que exclusivamente para a competição em provas promovidas pela Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos (ABCCC) 4. É marcante a presença de um mercado do cavalo crioulo no Rio Grande do Sul - que se estende para alguns estados brasileiros, além de países como Uruguai e Argentina -, envolvendo uma rede de diversos agentes e segmentos denominados de complexo do agronegócio Cavalo (CEPEA, 2006). A rede se constitui em ramos de atividades chamadas antes da porteira que envolvem o mercado de medicamentos veterinários e de rações para equinos, selaria e acessórios, casqueamento e ferrageamento, transporte, pesquisas e publicações, mídia, equipamentos 4 A ABCCC foi criada em 1932 no município de Bagé/RS tendo como intuito identificar animais da raça e evitar seu desaparecimento, manter registros e organizar o stud book e organizar eventos com os criadores para premiar os melhores animais (MATTOS et al, 2010, p.12). 9

e acessórios para equitação e esportes equestres, entre outros. Por conseguinte, há as atividades dentro da porteira que se referem aos cavalos para lida, equoterapia, esportes como as provas funcionais, escolas de equitação, exposições e eventos e, por fim, as atividades Pós porteira que se referem aos leilões, exportações e importações de cavalos vivos (MATTOS et al, 2010). O cavalo crioulo descende dos cavalos da raça andaluz que chegaram com os europeus na América a partir de 1493 e, desde então, vem se adaptando ao ambiente. A raça cavalo crioulo é reconhecida como patrimônio cultural do Estado do Rio Grande do Sul tendo aproximadamente 80% dos cavalos crioulos do país. Um grande número de eventos realizados pela ABCCC ocorre todos os meses do ano ao passo que o evento mais importante é a prova do Freio de Ouro, que acontece numa grande feira agropecuária do estado, em que se avalia a habilidade e morfologia do cavalo crioulo para o trabalho no campo. Assim, o objetivo dos criadores é fazer com que seus cavalos participem das provas mensais e consigam uma boa posição para concorrer na prova do Freio de Ouro o que gera prestigio ao criador e aumenta o valor monetário do cavalo. Os valores dos cavalos com as primeiras colocações na prova são estimados em milhões de reais. (LÜTTING, 2009). Nos locais que se criam os cavalos crioulos, seja no meio urbano ou nas propriedades rurais, empregam-se os domadores e treinadores que ensinam e treinam os cavalos para correr prova, ou seja, para realizarem as tarefas das diversas competições equestres e também os cabanheiros que são os responsáveis pelos cuidados dos animais tais como alimentação, medicação e cuidados estéticos. Nesse sentido, a prática de domar cavalos ocorre em todas as estações do ano e o domador passa a ter que se adaptar aos prazos que as provas exigem, além da necessidade de transformar os animais em atletas. As atualizações do ofício permitiram que alguns domadores, que desenvolveram a habilidade trabalhando nas estâncias e cabanhas, construíssem seus centros de doma e hospedarias para cavalos em que, muitas vezes, contratam, por um salário mínimo, a força de trabalho de outros domadores e cabanheiros para ajudarem no trabalho com os cavalos. A necessidade de alto desempenho e a competitividade das provas faz com que os cavalos selecionados pelos criadores, baseados nos quesitos de morfologia, genética e aptidão para a modalidade escolhida, desenvolvam uma habilidade altamente especializada para realizar as etapas das competições. Esse fator é fortemente influenciado pelo tipo de ensinamento que o animal recebe. A doma desse animal influencia sua psicologia e no comportamento durante a prova e, nesse caso, o treinamento destes cavalos tem que ser realizado por um artífice com habilidades na 10

prática do ofício (LÜTTING, 2009). Conforme nos falou Dula, domador que possui um centro de doma localizado no município de Pelotas, o cavalo tem que se tornar um atleta e o principal trabalho do domador é ensiná-lo de maneira que este goste da atividade que está realizando. Nesse sentido, o domador ressalta a importância da confiança estabelecida entre o humano e o cavalo de forma que estabeleçam uma interação para a realização das provas. Assim, os domadores passaram a valorizar as etapas inicias da doma, chamadas de amanonciação, considerando que neste momento os humanos e cavalos iniciam um processo de comunicação e confiança que será a base para as etapas posteriores. Portanto, no próximo item desenvolveremos algumas notas iniciais sobre esta técnica ressaltando os seus principais aspectos. 4 Amanonciação: o encontro da mão do domador com o corpo do cavalo Na pesquisa do INRC lidas campeiras na região de Bagé/RS levantou-se a existência de diversas técnicas de domar em que basicamente se classificam de acordo com a graduação da violência empreendida: na doma tradicional ou gaúcha são utilizadas técnicas de reforço, tendo centralidade o uso da força e imposição em que se acionam alguns artefatos como rebenques e esporas 5. Lima (2015) desdobra essa questão mostrando que existem regras e normas para empreendimento de um ato de violência em que a violência do domador tem que ser em resposta de uma ação negativa do cavalo. No mesmo sentido, os domadores percebem que a ação violenta do potro se dá em resposta a violência, sem justificativa, do domador. Assim, estabelecem uma discussão sobre o que é um ato de violência e o que não é um ato de violência. Em contraponto, se tem as técnicas de doma ditas racionais (como doma racional, doma índia ) cujos os princípios se baseiam na não utilização da força e imposição, ou seja, sem machucar o animal estabelecendo uma relação de confiança entre o humano e o cavalo considerando que o domador o convida a realizar as tarefas. O princípio das 5 É um artefato tridimensional e consiste de uma armação de metal (em geral ferro) em forma de U. Na sua volta externa (volta do U ), uma roseta se encontra acoplada à armação, por meio de uma extensão ( papagaio de 3 a 4cm ou mais) do próprio metal. A parte interna da volta do U fica encaixada no calcanhar da pessoa que usa a espora; uma corrente de metal ou o tento de couro faz um outro U que é acoplado por baixo do pé, firmando a espora no taco (salto) da bota do campeiro. Tentos de couro são utilizados fazendo voltas pela frente do pé, passando pela extensão de metal onde se encontra a roseta, com o objetivo de evitar que a espora se solte do pé. A roseta é um artefato de metal (em geral ferro ou latão) quase bidimensional, circular, achatado, de 2cm de diâmetro ou mais, com pontas agudas em toda a sua volta (pontas também variam de tamanho e de quantidade, de acordo com o tamanho da roseta). (RIETH et al 2013: S/N). 11

técnicas de domas ditas racionais consistem em despertar o interesse do potro baseandose na comunicação por meio dos movimentos corporais em que ambos vão se conhecendo permitindo, assim, uma aproximação. Entretanto, esse debate entre os domadores se refere a melhor maneira de ensinar o cavalo e observa-se que não há consenso, pois entendem que a diferença entre as técnicas está na maneira de lidar com o potro 6, construído a partir da relação estabelecida entre ambos (LIMA, 2015). Conforme o dicionário de regionalismo do Rio Grande do Sul escrito por Zeno Cardoso Nunes e Rui Cardoso Nunes (1996, p. 29) amanonciar significa fazer carinhos com as mãos nos potros que estão sendo domados a fim de tirar-lhes as cócegas. Em nossa definição, a técnica consiste num conjunto práticas que buscam conquistar a confiança do potro e estimular seu interesse por uma interação. Segundo Sérgio, domador residente em Pelotas/RS, há alguns anos atrás não eram relevantes as técnicas de amanonciar, ou seja, o potro era pego xucro (não amanonciado) para domar o que demandava muito mais força física e violência. Por conseguinte, Minga Blanco, domador e proprietário rural no município de Aceguá/RS, revela que as técnicas da doma ditas racionais exploram este momento de iniciação do potro. Os interlocutores que praticavam a doma tradicional adotaram as técnicas de amanonciação para, como dizem, trabalhar a mansidão do cavalo facilitando a realização das próximas etapas. Esse trabalho, muitas vezes é feito desde quando o potro está sendo desmamado pela égua, com seis meses de idade. Assim, os primeiros contatos com o animal acontecem com a presença da égua e o domador utiliza a linguagem corporal desta para aproximação: encosta o seu corpo no pescoço do animal e o abraça fazendo conforme a mãe faz para indicar-lhe a direção que deve tomar. O primeiro objetivo é colocar o cabresto e sensibilizar a cabeça do animal para aprender a entender o que o domador está indicando por meio do movimento do artefato. O principal aspecto desses primeiros momentos é buscar a confiança do potro e isto se consegue quando o mesmo deixa a mão humana tocar na sua parte cega que é a sua testa. Após a permissão para acariciar a testa que o domador passa a etapa de colocar-lhe o cabresto. Colocado o artefato, o domador puxa a corda que está ligada ao mesmo e a primeira reação do cavalo é sentar para trás tentando tirar o objeto que está puxando sua cabeça. Nesse caso, faz-se necessário os princípios mostrados por Sennett (2013) da força mínima e aprender a 6 Cavalo não iniciado no processo de doma. 12

soltar, pois o domador deve manter uma leve pressão quando o animal está reagindo e aliviar a mesma quando este esboça uma aproximação. Nos casos em que o potro está desmamado e não tem mais contato direto com sua mãe os domadores adotam o seguinte procedimento: O animal é conduzido para dentro de um pequeno curral circular e o domador, com o cabresto na mão, busca se aproximar. O animal entra em fuga passando a correr em volta enquanto o domador acompanha seus movimentos, vez por outra, lançando uma corda por trás do potro fazendo-o correr em disparada. Depois de algum tempo, o potro começa a dar um sinal de aproximação que é o gesto de baixar e subir à cabeça e começar a lamber os beiços. Nesse momento, o domador se aproxima do cavalo que aos poucos vai permitindo o encontro. Por fim, se aproxima acariciando a testa e colocando o laço no focinho para o cavalo cheirar, pois segundo dizem este conhece algo pelo cheiro. Após isso, o domador, lentamente e com calma, coloca o cabresto no pescoço do potro (LIMA, 2015). Por conseguinte, inicia-se o processo do toque da mão do domador no corpo do animal, chamado palmear o potro. Inicialmente o domador acaricia a testa e a cabeça do potro, para as etapas seguintes tocar as demais partes do corpo: pescoço, paletas, barriga, virilhas chegando às patas traseiras. Esse processo chama tirar as cóscas ou trabalhar o medo. O domador, inicialmente, vai palmeando o potro segurando pelo cabresto, pois o animal não está sensível ao toque. Essa etapa é importante para o desenvolvimento psicológico e comportamental do animal considerando que o ensinamento não é praticado de forma a criar traumas. O cavalo é um ser em constante fuga e nos primeiros contatos, todo o seu corpo é fuga. O toque da mão é reprimido pelo corpo do animal e controlado pelo olhar vigilante que quer saber o que o domador está fazendo. Esse olhar vigilante está presente nestes primeiros contatos e constantemente cria uma situação de defesa para a fuga. O toque, neste sentido, busca derrubar estas barreiras com intuito de estabelecer uma relação de confiança que permite uma aproximação. Bayard Jacques, domador de cavalos que reside em Jaguarão/RS, relata em um livro sobre a suas experiências no oficio sobre o toque da mão: Desde os primeiros potros que amansei, sempre me impressionou o verdadeiro pavor que eles sentiam ao toque da mão. A impressão que me passavam era como se minha mão fosse fogo e queimasse. Depois de conseguir que o animal reduzido pelos elementos de contenção se deixasse apalmar a impressão era exatamente o contrário: os animais gostam de ser tocados, desde que tenham sido bem tocados. (JACQUES, 2008, p. 66). 13

A maneira como toca o corpo do animal deve ser capaz de passar a sensação de segurança e nesse sentido é importante ser paciente considerando que o cavalo é perceptivo as emoções humanas. Se o potro está desinquieto e inseguro e o domador se mantém calmo, o primeiro irá perceber que não há motivos para ficar assim. Nas etapas seguintes do processo de ensinamento esse toque que acaricia vai antecipar as ações no corpo do equino, principalmente no que se refere aos ensinamentos com os diferentes artefatos de montaria. Porém, antes dos artefatos de montaria, tem-se os maneadores e maneias: As maneias são peças constituídas por dois pedaços de couro, ligados por argolas, que tem a função de prender as patas do cavalo para este não fugir. Colocadas as maneias o domador aciona os maneadores que são cordas feitas de tiras couro com espessura grande que servirão para rodear o corpo do animal. Esses artefatos limitam as possibilidades de reação do potro fazendo-o acostumar-se com os artefatos que, futuramente, serão colocados. Todo o artefato que o domador irá colocar no cavalo que está em iniciação é cheirado pelo animal, pois o cavalo conhece algo pelo cheiro e se está na mão do domador ele não irá reagir. Também chamada de amansar de baixo, a amanunciação busca uma aproximação com o cavalo, visando estabelecer uma relação de confiança em que o animal vai permitindo as ações do domador e aprendendo sem traumas. O domador observa as reações do cavalo ao mesmo tempo em que este observa as reações do domador. Por isso a ênfase na paciência quando se está lidando com o potro. Depois desta etapa segue-se o processo em que o domador considerando o que aprendeu sobre o cavalo e seu temperamento, vai acionando determinadas técnicas, e associados a elas tem-se os artefatos, a fim de seguir os ensinamentos. 5 Considerações finais Neste texto desenvolvemos algumas notas iniciais a cerca das transformações do ofício de domar cavalos no contexto do pampa brasileiro no âmbito das novas configurações da pecuária. Se por um lado, existe a tendência de desestimular o manejo do gado a cavalo, por outro, se observa o surgimento de um complexo agronegócio do cavalo crioulo no pampa fazendo com que os domadores busquem se adaptarem a essas transformações. A técnica concebida como uma habilidade incorporada por meio de práticas corporais, principalmente a mão, em que o treinamento vai constituindo as 14

habilidades, que são os movimentos corporais sincronizados além das interações estabelecidas com os não humanos, transformou-se diante deste quadro. O alto desempenho e a competitividade das provas faz com que os cavalos selecionados pelos criadores tenham de desenvolver uma habilidade altamente especializada para realizar as etapas das competições que envolvem a funcionalidade do cavalo crioulo. A doma influencia a psicologia e o comportamento do animal e, nesse caso, o treinamento destes cavalos tem que ser realizado por um artífice também altamente especializado. Assim, os domadores passaram a valorizar as etapas inicias da doma, chamadas de amanonciação, considerando que neste momento os humanos e cavalos iniciam um processo de comunicação e confiança que será a base para as etapas posteriores. Se o tempo do artífice é lento permitindo a reflexão, os mesmos inseridos na sociedade capitalista têm que adaptarem seus tempos dando conta da necessidade de produtividade. Nesse sentido, o fazer está inserido em processos sociais mais amplos que o fazem transformar sua forma de trabalho para se inserir as normas sociais. Ao mesmo um trabalhador pode ser uma força de trabalho como mercadoria, ou seja, um empregado executando tarefas cotidianas, e também, um Homo faber que desenvolve uma capacitação a partir do engajamento. Para finalizar, observamos assim um modo de vida se adaptando as novas configurações sociais da sociedade capitalista considerando que esta forma de viver está inteiramente vinculada ao cavalo. Somente com a extinção dos cavalos que se terá a extinção deste modo de vida. 6 Referencias ALVES, Giovani. Prefácio: Animal laborens e homo faber. In: Nummer, Fernanda Valli; França, Maria Cristina Caminha Castilhos (Organizadoras). Entre ofícios e profissões: reflexões antropológicas. Belém: GAPTA/UFPA. 2015, p. 9 14. BARRETO, Éric. Por dez vacas com cria eu não troco meu cachorro: as relações entre humanos e cães nas atividades pastoris do pampa brasileiro. 2015, 116f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015. ESCOLA SUPERIOR DE AGRICULTURA LUIZ DE QUEIROZ. CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA (CEPEA). Estudo do 15

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