PARENTALIDADE TRANS: NOVAS FORMAS DE (R)EXISTIR

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Transcrição:

PARENTALIDADE TRANS: NOVAS FORMAS DE (R)EXISTIR Giulliany Gonçalves Feitosa (1); Pedro Augusto Araújo Ribeiro (1); Elizama Leal de Melo Lima (2); Anderson Scardua (3) Universidade Federal de Campina Grande giullianyg@hotmail.com RESUMO: As novas formas de (r)existir na contemporaneidade surgem de forma latente diante do desejo da constituição familiar para além dos padrões heteronormativos estabelecidos socialmente. O preconceito interfere diretamente na vida das pessoas trans, em especial quando estas almejam gerar e/ou adotar filhos, e se apresenta como obstáculo para esses sujeitos, já que, no Brasil, o Estado segue leis conservadoras que, apesar da transformação jurídica ao longo dos anos, no movimento de promover mais direitos à população LGBTT, ainda restringem as possibilidades legais desse grupo. O presente trabalho busca problematizar a parentalidade transgênero no Brasil e as categorias que entrelaçam a formação do sujeito, através das questões sobre gênero trazidas por Butler e da teoria da interseccional idade, a fim de demonstrar as possibilidades de (r)existir dentro das novas constituições familiares. Palavras-chave: Parentalidade, Transgênero, Gênero, Família. INTRODUÇÃO Nos últimos anos, houve um avanço das lutas e visibilidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT) no Brasil e no mundo, trazendo à tona conquistas e desafios para esses grupos que durante anos têm sido estigmatizados. Dentre essas categorias, a categoria Transexual é uma das que mais sofre com a falta de compreensão sobre seu existir enquanto sujeito trans, em especial quando essa categoria está em vias de paternidade ou maternidade. Para pensarmos a trajetória e os desafios desses sujeitos atualmente, é necessário, antes, expor alguns elementos históricos que contribuíram para a atual realidade em que vivem os grupos LGBT, em especial, nesse trabalho, os transgêneros. A primeira agremiação homossexual com finalidades políticas surgiu em São Paulo, em 1978, com o grupo Somos. Esse grupo lutava não apenas pelos direitos homossexuais, mas pela transformação mais ampla da sociedade. O período entre 1983 e

1992 é marcado pelo surgimento da aids e pela falência do modelo de organização comunitário e autonomista, gerando uma drástica redução na quantidade de grupos de militância homossexual, segundo Facchini (2005), no fim da década de 1980 apenas cinco ou seis grupos se sobressaíam, pautando suas propostas mais na luta por direitos civis do que na transformação da sociedade. Paralelo a esses acontecimentos, a noção de orientação sexual é formulada, a fim de debater como se apresentava a homossexualidade. Também foi incluído no código de doenças do INAMPS o HIV/aids como doença que atinge tanto homo quanto heterossexuais. O Código de Ética do Jornalista sofreu intervenções a favor da inclusão da não discriminação por orientação sexual, o que desencadeou o processo de formulação de leis anti-discriminatórias em âmbito estadual e Municipal (LINO, 2011). Em 1995 foi fundada, em Assembleia Geral, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT), ao mesmo tempo em que ocorreu o VII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas. Em 1999 o termo travesti foi substituído na sigla GLBT por transgênero, porém, em agosto de 2004, no II Encontro Paulista GLBT, foi aprovada a separação entre travestis e transexuais no Estado de São Paulo. Essa separação foi fundamental para viabilizar as diferenças e demandas das duas categorias, já que, como aponta Vencato (2003, apud SOUZA, 2013), no Brasil, travestis, transexuais e drag queens tinham suas especificidades diluídas na categoria transgênero. Na contemporaneidade uma questão recorrente nos meios de comunicação e que é bastante debatida é o da condição de transgênero. As pessoas trans sofrem com o preconceito em diversas esferas da sociedade e vivem em uma luta constante para que haja aceitação dentro desta categoria que é colocada pela sociedade, a do transgênero, como se fosse esta a única forma identitária do sujeito trans. Tentamos então, com este trabalho, pensar nas categorias que se entrelaçam na formação do sujeito, a partir da parentalidade transgênero, posto que a sociedade tem um ideal heteronormativo forte quando se trata de parentalidade, como defende Butler (2003). METODOLOGIA Como trabalharemos com uma noção ampla do indivíduo, que não é demarcado apenas por uma, mas por múltiplas identidades, nos utilizaremos da Teoria da Interseccionalidade que seria, então, uma nova maneira de observar o que se chama de identidade, tomando por base que ninguém é uma coisa só e que existem várias facetas identitárias que se tocam na formação do

indivíduo (NOGUEIRA, 2013). É a partir da Revisão Bibliográfica (GIL, 2008) que traremos a questão do gênero à tona, e para além da construção do gênero a possibilidade transgênero, associada à construção identitária de pais transgênero. Para tanto, faz-se necessário a problematização das questões da construção do sexo, gênero e da parentalidade pelas ciências humanas, ao passo que trabalhamos com as desconstruções cunhadas por Judith Butler. Posteriormente será apresentado um caso como estratégia de representação do ponto de vista teórico e metodológico. RESULTADOS E DISCUSSÃO De acordo com Zambrano (2006) o conceito de parentalidade está diretamente relacionado ao pensamento tradicional, concebendo a família como uma entidade sagrada, que condiciona a uma única perspectiva, excluindo as novas modalidades de família e de gênero tais como homossexuais, travestis e transgênero. Esse modelo familiar estabelecido que determina a posição que o sujeito deverá ocupar a depender do seu sexo (mãe-mulher, paihomem) não considera o caráter histórico dessa construção. Com o passar dos anos a família nuclear que antes era vista apenas como meio de procriação, passou a ser pensada de outras maneiras, apesar do modelo tradicional ainda ser prevalente. Essa diferença sexual que regula o parentesco é para Butler um tipo de regulação normativa que passa pela ordem do discurso, tornandose uma prática regulatória que produz os corpos que governa (BUTLER, 2001), (de)marcando os corpos e o lugar que estes irão ocupar diante da sociedade. As diferentes culturas demonstram a dissociação entre parentalidade e filiação, sendo estes, estruturas sociais, construídas de acordo com valores e crenças de um determinado local e não necessariamente são regulados pela procriação, assim, a parentalidade pode também ser exercida por pessoas que não necessariamente terão algum vínculo biológico (ZAMBRANO, 2006). Portanto, a família tradicional nuclear não consegue abarcar a diversidade de arranjos e expressões que surgem na sociedade, até mesmo a denominação das relações homoafetivas não são capazes de apreender as demais categorias como transgênero e travesti, desembocando na necessidade de se criar outras denominações que possam contemplar os laços afetivos estabelecidos por diversos sujeitos com características próprias de gênero. Butler (2003) recorre a diversos autores que estudam a parentalidade na contemporaneidade. Dito isso, ela defende que é impossível dissociar o que o Estado

legitima politicamente e socialmente, em relação ao parentesco, e a relação desta legitimação com os interesses nacionais que estão incutidos nisto. Países da Europa e os Estados Unidos que legitimaram o casamento homossexual também instituíram a exclusão de determinados direitos que são outorgados aos casais heterossexuais, como a adoção e a reprodução assistida, isto em 2003, época em que o texto foi escrito. Com tal proposição coloca-se a necessidade dos movimentos que lutam pelos direitos LGBTTs de exigir que o Estado legitime o lugar dos casais homoafetivos, uma vez que não se coloca em questão que o mesmo Estado trata de forma diferente a população tirando-lhes alguns direitos, concedendo privilégios a alguns ao sabor das necessidades políticas, fazendo assim sua auto-gestão e forcluindo alguma parte da população, mesmo movimento que fazem as categorizações, em relação ao movimento de legitimação de alguns direitos e outros não, assim se lança mão do Estado para conferir o reconhecimento que ele pode outorgar ao casal do mesmo sexo e para se opor ao controle regulador sobre o parentesco normativo que o Estado continua a exercer (BUTLER, 2003, p. 225). No Brasil se discute, hoje, sobre as condições de existência da instituição família e como ela se organiza, trazendo mais uma vez a família nuclear como modelo e deslegitimando as demais modalidades de viver em conjunto. Tais disposições políticosociais foram propostas por membros congressistas que carregam uma posição ideológica pautada em religiões cristãs e acabam por promover um encontro entre política e religião. Todavia, um documento da Corregedoria Nacional de Justiça, datado de 14 de março de 2016 provê que todos os cartórios de registro de nascimento devem ter um registro para dois pais e duas mães. 1 Butler (2003) defende, ainda, que toda vez que uma nova categoria se incorpora ao léxico, outra forma de existir que, na verdade, quase existe por ser nomeada muito precariamente ou simplesmente não nomeada, possui esta condição de invisibilidade, ilegitimidade. Deste Modo, se reforçarmos os binarismos homo-hétero, homem-mulher, feminino-masculino, não conseguiremos fazer com que haja, de fato, alguma igualdade, pois pelo que parece, um desses lados do binarismo social construído também politicamente é mais forte e detentor de mais direitos, sendo legitimado institucionalmente pelo Estado, ou seja, "ser legitimado pelo Estado é aceitar os termos de legitimação oferecidos e descobrir que o senso público e reconhecível da pessoalidade é 1 http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/0 3/6bd953c10912313a24633f1a1e6535e1.pdf

fundamentalmente dependente do léxico dessa legitimação." (BUTLER, 2003,p. 226). Compreendendo o binarismo como construção social e vigente na cultura da contemporaneidade, Áran & Júnior (2007) afirmam que para começar a incluir novas formas de gênero e de existência é necessário criarmos novos termos que o atravessem, como se faz ao nomear transgênero e o cross gender, essas seriam uma terceira via de constituição, uma quebra no paradigma binário do gênero, que parece ter sido criado para contrapor ou complementar o sexo biológico, como argumenta Butler (2001). A construção de gênero se dá, segundo Butler (2001), a partir das questões de nomeação e de uma dinâmica puramente construtivista, como se o sexo biológico e natural não existisse, como se não existisse natureza e houvesse, tão somente, uma criação com a linguagem, como se a linguagem inaugurasse todas as coisas, como se nada existisse antes, sendo assim, a linguagem demarcaria, ao mesmo tempo que fundaria, os corpos, as existências, e as normas e formas e viver socialmente aceitáveis, impedindo ou incluindo fora toda a questão de uma orientação sexual que não fosse a heterossexual. Os movimentos sociais que visam tirar da invisibilidade as pessoas que criam diferentes nomenclaturas para si acabam por também serem marginalizados, esse dado vai ao encontro do que propõe Butler (2003), sobre a questão da legitimação do Estado, a autora coloca uma importante premissa para que possa vir à tona a questão do desejo ou quem ou o que se pode desejar, postulando que só deseja quem pode desejar o desejo do Estado (p. 233). Continua, assim, havendo a prevalência do masculino e do feminino, sendo reforçada pelas teorias estruturalistas, como trazem Áran e Júnior (2007) quando tratam da Psicanálise e sua forma de ver os mecanismos de identificação e a forma como se institui o desejo, atrelando sempre a um referencial que é heteronormativo, ressaltando que sem que haja a quebra desses paradigmas da identidade e desejo é impossível trabalhar com outras formas de construção de gênero. É a partir dos eixos identificatório e do desejo que os autores trabalham o que chamam de subversão do desejo quando haveria uma subversão do próprio simbólico criando novas formas de sociabilidade. As formas de ser transgênero observadas na contemporaneidade também parecem adequar-se aos binarismos tratados por Butler e demais autores aqui trazidos. Há a demarcação de um lugar fora, lugar onde o caminho para que o Estado legitime a forma de existir para as pessoas se torna difícil e esses grupos difíceis de serem nomeados, e até de formarem um grupo, dificultam o

acesso aos direitos que deveriam ser de todos. Temos como exemplo o acesso difícil à usabilidade do nome social, a troca de nomes, o acesso às cirurgias, o uso de serviços que o próprio Estado oferece. Caso Anderson e Helena 2 No Brasil é possível encontrar casos que exemplificam as novas parentalidades, tal como o exemplo do casal Anderson e Helena, que nasceram mulher e homem, respectivamente. Eles se conheceram em 2013 e pouco tempo depois Anderson engravidou, passando a enfrentar ainda mais preconceito por estar esperando um filho, sendo ele um transgênero. Em seu relato, afirma que questionamentos sobre sua relação e gravidez são comuns, e que, uma vez no trem, um senhor perguntou como pode uma machorra ter um filho?, frase que exemplifica claramente a falta de conhecimento e de compreensão das pessoas acerca da paternidade/maternidade transgênero. Sobre a experiência de gerar um filho, Anderson relatou que se sentiu pai e mãe ao mesmo tempo, mas que isso não lhe provocou estranheza, isso se deve ao fato de ter engravidado e ter se submetido ao parto, todavia compreende que é um homem, 2 http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-eestilo/noticia/2015/07/casal-de-transgeneros-da-aluz-um-filho-em-porto-alegre-4799953.html mesmo bordeando os limites de gênero instituídos, colocando-se entre, e é a partir desta conjectura que pode postular uma forma de existir mesmo com as dificuldades impostas pela necessidade de nomeação que a sociedade e Estado colocam sobre os corpos. As primeiras dificuldades pós nascimento do filho surgiram no cartório, ao tentarem registrar o filho com o nome social de pai e mãe, o que não foi possível, pois segundo a advogada do caso, o nome social é apenas para apresentação, não podendo ser utilizado para registro de nascimento de filhos. Nos primeiros meses pós-parto, Anderson diz que cumpre o papel da mãe com relação aos cuidados e a amamentação, mas que na verdade sempre deixará claro para o filho sua posição de pai, sendo Helena a mãe, que relata ter algumas dificuldades de ocupar esse lugar materno, pois nos primeiros meses de vida, o filho Gregório parece estar mais próximo do pai. Anderson afirma, ainda, que solicitou licença maternidade da empresa em que trabalha para estar mais tempo com o filho. O Hospital Fêmina, em Porto Alegre - RS onde Anderson deu à luz, conta com profissionais capacitados, com palestras e treinamentos, para o bom acolhimento dos mais diversos tipos de gênero. Nesse hospital, travestis e transexuais mulheres são colocadas em quartos femininos e tratadas pelo nome

social no prontuário. Com isso, Helena pôde ver o nascimento de seu filho durante o parto de Anderson, o que a deixou surpresa, pois além de achar, antes, que nunca poderia ter um filho biológico, após a gravidez de Anderson ela também duvidava da possibilidade de assistir ao nascimento do filho, o que se tornou possível graças à política de inclusão do Hospital Fêmina. O caso de Anderson e Helena é real, e foi retirado do site de notícias Clicrbs. Esse caso é um exemplo ilustrativo das parentalidades trans possíveis, não podendo ter suas particularidades generalizadas, já que o processo de ter filhos é singular, e cada família lida com isso de um modo diferente. A forma como o Estado se coloca, tal qual verificamos em nossa análise do caso, contribui para o apagamento subjetivo do pai que é homem trans, com base em Butler é possível perceber que a categoria trans é uma categoria, que por si só, demarca seu apagamento e não continuidade no padrão que é outorgado pelo Estado. Ao retomarmos Nogueira (2013), observamos que mesmo criando uma relação interseccional entre pai e homem trans, percebemos que acaba havendo a nulidade frente às práticas regulatórias propostas pelos órgãos que se responsabilizam pelo cidadão, é pelo uso de tais categorias que os sujeitos se põe dentro ou fora da curva da normalidade. Pai é uma categoria que recorrentemente é trazida pela cultura através de uma condição da família nuclear burguesa (SILVA & PICCININI, 2007). No caso que analisamos, o sujeito é colocado fora deste padrão e o Estado encontra estratégias de mantê-lo neste lugar, mas o sujeito consegue estratégias de se manter e sustentar a posição (des)construída a partir da nomeação que dá a si. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar das inúmeras dificuldades, incluindo casos de violência por preconceito, sofridas pelas pessoas trans atualmente no Brasil, o caso de Anderson e Helena é uma ilustração frutífera de algumas conquistas desse grupo, pois além do casal ter sido amparado pela política de inclusão do Hospital, há ainda a possibilidade de licença maternidade para Anderson e principalmente a concretização do desejo de se constituir uma família com a chegada do pequeno Gregório. Os pais de Gregório trazem à tona outra forma de existir e de se significar no mundo, mostrando que não é preciso seguir a regulação normativa para se constituir um núcleo familiar. Esse caso se apresenta como um exemplo da dissociação entre parentalidade e filiação, que nesse caso não se encaixa na lógica dos papéis sociais na procriação, pois eles são pai e mãe, mas com identidade de gênero modificadas. Gregório

não está ligado aos pais pelas regras da sociedade heteronormativa, mas sim pelas representações que seu pai e sua mãe tem de si enquanto parentalidade trans. O fato do Estado barrar a possibilidade de registrar um filho com o nome social, não barra a luta e o desejo pela transformação da ideia de heteronormativa ser a única aceitável, pois outras formas de constituição familiar estão se formando para ocuparem seus lugares diante da sociedade (BUTLER, 2001). O caso mostra a insuficiência da lógica biológica da procriação associada à parentalidade para lidar com as formas de existência das identidades de gênero. O caso questiona isso de dentro, pois eles biologicamente procriaram e são pai e mãe, mas suas identidades se colocam de maneira diversa do padrão regulatório, gerando um problema legal de reconhecimento do nome social, mas não da filiação. Ou seja, o Estado não dá conta da constituição social desta subjetividade familiar. A proposta de subversão do desejo imposto pelo Estado é que possibilita o surgimento da nova parentalidade, é o que faz com que o movimento de assumir esta paternidade que dialoga transversalmente às questões de gênero impostas constitui não só um movimento de existir, é um movimento de resistir, onde o sujeito aparece e se impõe frente ao que lhe é tolhido. Uma forma de constituir um corpo e um corpo que importa e pesa, pois a sociedade põe-se a discuti-lo embora o Estado arquitete estratégias para mantê-lo fora, destituído, desimportante. REFERÊNCIAS ARÁN, M., JÚNIOR, C. A. P. Subversões do desejo: sobre gênero e subjetividade em Judith Butler. In: cadernos pagu v. 28, 2007, p. 129-147. BUTLER, J. "Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo". Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 151-172.. O parentesco é sempre tido como heterossexual? In: Cadernos Pagu, 2003, p. 219-260. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008. LINO, T. R., FREITAS, R. V., BADARÓ, J. AMARAL, J. G. O movimento de travestis e transexuais: construindo o passado e tecendo presentes. Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, Salvador, UEBA, 2011. Disponível em: https://nugsexdiadorim.files.wordpress.com/2 011/12/o-movimento-de-travestis-etransexuais-construindo-o-passado-e-tecendopresentes.pdf

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