Palavras-chave: Etnomatemática; história da matemática; transdisciplinaridade.

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Transcrição:

ENTRE O OCASO DO PARADIGMA CIENTÍFICO MODERNO E A EMERGÊNCIA DE NOVAS PROPOSTAS EPISTEMOLÓGICAS: O CASO DA ETNOMATEMÁTICA Gustavo Alexandre de Miranda 1 Faculdade das Américas gustavomiranda@usp.br Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma leitura de dois momentos históricos distintos e entrelaçados: a do aparecimento da etnomatemática como campo de pesquisa formal; e a da emergência de críticas ao paradigma científico moderno. Embora, a princípio, essa problemática se mostre aberta e abrangente, a proposta é construir algumas reflexões a partir de um texto já clássico de Boaventura de Sousa Santos, de 1987, intitulado "Um Discurso sobre as Ciências". Parte-se aqui do pressuposto de que, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX, e embasadas pelo pensamento de teóricos da complexidade e da transdisciplinaridade (MORIN, 2009; JAPIASSU, 2009), críticas acentuadas à produção e à difusão do conhecimento foram disparadas. A educação em geral e, particularmente, a educação matemática não ficaram à margem nesse processo. Bebendo, sobretudo, do cálice da filosofia e da história, trouxeram à pauta novas propostas e direções, muitas das quais enfatizando a necessidade de uma renovação epistemológica (D'AMBROSIO, 2009), bem como do reconhecimento (e consequente acolhimento) de culturas periféricas no fazer matemático (BISHOP, 1994; CARRAHER, 1988). Que relações podem ser traçadas entre essas duas histórias: a da crise do paradigma científico dominante e a da etnomatemática? Mais: que papel tem desempenhado a educação matemática frente a uma tal crise epistemológica? Uma possível resposta é construída a partir de alguns momentos históricos e de alguns preceitos do programa etnomatemática. Palavras-chave: Etnomatemática; história da matemática; transdisciplinaridade. 1. Introdução A proposta deste texto está ancorada em algumas premissas imediatas. Em primeiro lugar, na ideia de que, sob muitos aspectos, assiste-se hoje ao ocaso do paradigma científico oriundo da modernidade. Em segundo, na compreensão de que o desenvolvimento da educação matemática como campo de pesquisa não se deu, sobretudo no Brasil, alheio a essa problemática. Por fim, numa hipótese óbvia e observável na pesquisa em educação matemática nas últimas décadas (FIORENTINI, 1994; MELO, 2006): na compreensão de que a etnomatemática, como programa de pesquisa, está cada 1 Professor da área de educação e gestão e negócios da Faculdade das Américas.

vez mais atrelada às críticas que se vêm fazendo ao paradigma moderno, cartesiano e eurocêntrico de conhecimento, modelo esse que, entre outras coisas, tem também negado sistematicamente às culturas matemáticas periféricas o reconhecimento devido. Frente a essas premissas, que serão mais bem explicitadas no decurso deste trabalho, uma interrogação inicial se interpõe: que papel a educação matemática pode desempenhar num momento em que as limitações do paradigma científico dominante têm se mostrado tão evidentes? A proposta a seguir é construir uma leitura histórica a partir dessa pergunta. Para tanto, tomamos por referência o texto já clássico de Boaventura de Sousa Santos, de 1987, intitulado "Um Discurso sobre as Ciências"; e, ao final, traçamos algumas relações dessa temática com o campo da educação matemática, focalizando, principalmente, o Programa Etnomatemática. 2. Uma crise anunciada em dois movimentos Primeiro movimento. O início do período de consolidação da educação matemática, como campo de pesquisa formal, está localizado, como aponta Fiorentini (1994), na década de 1970. No Brasil, particularmente importantes foram os projetos realizados a partir de 1972, em parceria com a UNESCO, que desembocaram numa ação conjunta com a Organização dos Estados Americanos (OEA) e que, com a participação do PREMEN-MEC, impulsionaram a criação do PROMULMEC Projeto Multinacional para a Melhoria do Ensino de Ciências (MIRANDA, 2013). Esse projeto teve como desdobramento imediato a criação do Primeiro Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática da Unicamp, em 1975. E, segundo Melo (2006), foi um dos passos pioneiros rumo à instituição formal do ensino de matemática como campo de pesquisa. O PROMULMEC, porém, não foi o único (nem o primeiro) projeto com desdobramentos para a educação matemática. Antes dele, já se notava a efervescência da discussão nos congressos e conferências sobre o ensino de matemática pelo mundo. Em 1959, foi realizada a Conferência Royaumont, na França, cujo foco principal foi a reforma do currículo secundário; em 1960, encontros ocorreram em Zagrev e Dubrovnik, na Iugoslávia; em 1962, em Bolonha; em 1963, em Atenas; e, em 1969, a

UNESCO realizou o ICME (International Congress of Mathmatics Education), em Lyon, na França (SOARES, 2008). No Brasil, a discussão sobre o ensino de matemática também ganhou fôlego a partir do I Congresso Brasileiro do Ensino de Matemática, realizado em Salvador, Bahia, em 1955. Pinto (2005) argumenta que, já nesse primeiro congresso, as conclusões apontavam para uma questão aguda: a necessidade de reformar o ensino de matemática no Brasil. Em âmbito mundial, é desse período o surgimento do Movimento da Matemática Moderna, nas décadas de 1950 e 1960. Curiosamente, já naquela época, ficava patente que a ansiedade por melhorias no ensino de matemática atrelava-se diretamente a um evento tecnológico crucial: o lançamento do Sputnik, pela União Soviética, em 1957. Assim, segundo Schoenfeld (1991), o culto à Matemática Moderna (e a necessidade de reforma no ensino de matemática), no fundo, tinha também uma motivação políticotecnológica: era uma resposta imediata que os americanos tinham de dar aos russos (e, naturalmente, ao mundo inteiro). A partir de então, sobretudo das décadas de 1970 e 1980, o interesse formal pela pesquisa em educação matemática cresceu exponencialmente. Estavam lançadas as bases formais (e, posteriormente, institucionais) de nosso campo de saber! Embora ações particulares já tivessem ocorrido antes, como o caso de Euclides Roxo no Brasil (MIORIM, 1998; VALENTE, 2003), Felix Klein na Alemanha (BELTRÃO, 2001) e Silvanus Thompson na Inglaterra (MIRANDA, 2004), apenas para citar alguns, o fato novo era que, a partir da segunda metade do século XX, a pesquisa em educação matemática passava para um nível diferente, caminhando rumo à sua institucionalização e à composição de grupos de pesquisa Brasil afora. Segundo movimento. Ocorrendo de modo simultâneo a essa história, porém, um movimento aparentemente desconexo da educação matemática também ganha fôlego nesse período. São os movimentos de críticas e de dúvidas em relação ao paradigma científico da modernidade, que colocam em xeque de vez os modos de produção e de difusão do conhecimento. A matemática, e consequentemente seu ensino, não passa ilesa por esse período de questionamentos. Por representar a linguagem científica por excelência, logo algumas questões básicas surgem nesse panorama crítico: estaria a concepção tradicional de matemática também fadada a ser criticada? E seu ensino? E sua história?

A resposta para essas perguntas, como ficaria patente nas décadas posteriores, sobretudo a partir dos trabalhos de D'Ambrosio (1985; 1990), seria afirmativa. No entanto, não era a primeira vez que isso ocorria, visto que, segundo Schubring (1999), já em princípios do século XX era possível perceber o descontentamento com o ensino de matemática, razão por que esse período, principalmente com a criação do IMUK (Internacionale Mathematische Unterrichts Kommission), em 1908, acumulou incontáveis interrogações e iniciativas para a educação matemática. A diferença era que, desta vez, a natureza da crítica a partir da década de 1970 não focava mais exclusivamente o modo como o conteúdo matemático tradicional era transmitido nas salas de aula, mas, principalmente, a necessidade de reconhecer fazeres matemáticos distintos, oriundos de culturas diferentes, além é claro da necessidade de articular melhor os conteúdos. Estavam lançadas as bases para o Programa Etnomatemática, trazendo em seu bojo a revitalização de um problema antigo: a necessidade de transcender as fronteiras disciplinares que o modelo da modernidade havia estabelecido. 3. A crítica ao paradigma É nesse contexto que as críticas produzidas por Boaventura de Sousa Santos ganham destaque, proferidas na abertura solene das aulas da Universidade de Coimbra, no período letivo de 1985/86. Transformadas em livro em 1987, sob o título "Um Discurso sobre as Ciências", tais críticas pontuaram especificamente os limites do paradigma científico moderno, delineando, já de início, o que se devia compreender por racionalidade moderna: O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns prenúncios no século XVIII, é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. A partir de então pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite variedade interna mas que se distingue [...] de duas formas de conhecimento não científico [...]: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos) (SANTOS, 2013, p. 21). Em pauta, uma problemática razoável: Santos (2013) questionava a validade e os limites da ciência moderna, argumentando, sobretudo, que ao se dissociar da ciência

aristotélica a ciência moderna havia crescido em explicações objetivas, ao mesmo tempo em que tinha se fechado para as explicações subjetivas. O perfil desse modelo de ciência é desenhado, então, a partir de duas características essenciais. Em primeiro lugar, pela quantificação: "o que não é quantificável é cientificamente irrelevante" (SANTOS, 2013, p. 28). Em segundo, pela redução da complexidade: "o mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente" (p. 28) (razão por que, em Descartes, tal premissa se transformou numa espécie de louvor ao método: dividir cada uma das dificuldades, em tantas parcelas quanto for possível e requerido para melhor as resolver). Essas considerações aparecem alinhadas em seu "Discurso Sobre as Ciências" com outras premissas fundamentais. E a crítica de Santos (2013) prossegue nesse tom até atingir seu ápice. Se, por um lado, reconhece os enormes feitos que a ciência moderna legou à humanidade; por outro, não economiza na crítica do reducionismo científico. E sentencia: São hoje muitos e fortes os sinais de que o modelo de racionalidade científica que acabo de descrever em alguns dos seus traços principais atravessa uma profunda crise (SANTOS, 2013, p. 40). A partir daí, o autor recapitula quatro momentos da história da ciência que, em seu entender, foram responsáveis pelo início da desconfiança no paradigma científico moderno. Em primeiro lugar, cita Einstein e sua decorrente relativização do rigor das leis de Newton; depois, o duro golpe disparado por Heisenberg e seu princípio de incerteza, segundo o qual há uma interferência estrutural do sujeito no objeto observável; em terceiro, cita também o teorema da incompletude de Gödel, responsável por mostrar a impossibilidade de encontrar, em certas circunstâncias e dentro de um sistema formal, a prova de sua consistência; por último, menciona as investigações do físico-químico Ilya Prigogine, que, em sua teoria das estruturas dissipativas e no princípio da ordem através de flutuações, propõe uma concepção de matéria e de natureza bastante diferente da que herdamos da física clássica. Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente. A teoria de Prigogine recupera inclusivamente conceitos aristotélicos tais como os conceitos de potencialidade e virtualidade que a revolução científica do século XVI parecia ter atirado definitivamente para o lixo da história (SANTOS, 2013, p. 48). Por trás dessas críticas, alguns desdobramentos sensíveis: primeiro, que todo conhecimento científico-natural é, também, científico-social, no sentido de que não é

possível dissociar ciência e cultura, ciência e sociedade, ciência e homem; segundo, que todo conhecimento é local e total, no sentido de que não é possível aceitar mais a fragmentação disciplinar do paradigma da modernidade. À época, Boaventura de Sousa Santos provavelmente não tinha como prever que os movimentos de contestação cresceriam tão rapidamente e ganhariam vozes em tantos campos acadêmicos. Mas é nesse contexto que, a nosso ver, repousa a importância e o aspecto visionário do Programa Etnomatemática, não apenas por estar diretamente atrelado a tais questionamentos como, também, por propor uma ampliação epistemológica do fazer matemático. Na ordem do dia, uma pergunta insolente se formava: estariam também as expressões matemáticas culturalmente e historicamente condicionadas? 4. Uma re-conceituação do pensar e do fazer matemáticos Do ponto de vista da ciência moderna, do modelo universalizado, disciplinar e cartesiano do paradigma dominante, a pergunta anterior não poderia fazer qualquer sentido, visto que não se supunha seriamente, até a segunda metade do século XX, que o pensar e o fazer matemáticos pudessem estar, de algum modo, condicionados culturalmente e historicamente. Antes de 1950, pouco se explorou sobre essas relações. As primeiras abordagens, como mostram Rohrer e Schubring (2011), viriam apenas com Ewald Fettweis (1881-1967), um professor de matemática e etnólogo que, após a I Guerra Mundial, passou a se interessar pelos conhecimentos científicos e matemáticos dos Naturvölker (povos não colonizados / primitivos). Particularmente na década de 1920, Fettweis apresentaria algumas publicações etnográficas que focalizariam o conhecimento numérico desses grupos; e, em 1929, incluiria o conhecimento geométrico em suas investigações. Mas eram ainda estudos embrionários, que só então começavam a se alinhar com o trabalho independente de outros estudiosos, caso do psicólogo francês Georges-Henri Luquet (1876-1965) e suas (não menos importantes) reflexões sobre a origem cultural das noções matemáticas (LUQUET, 1929).

Em termos de publicações, provavelmente o livro de Otto Friedrich Raum, intitulado Arithmetic in Africa, de 1938, foi um dos precursores nessa linha de raciocínio. O pensamento de Otto Raum se mostra perceptível já na introdução, quando o entrelaçamento entre os aspectos culturais da matemática e seus desdobramentos pedagógicos, em sala de aula, vem à tona: "[...] a educação [...] não pode ser realmente eficaz, a menos que seja inteligentemente baseada na cultura e nos interesses dos nativos" (RAUM, 1938, p. 4, tradução nossa). A partir daí, alguns marcos históricos são dignos de menção. Em 1950, em sua palestra no Congresso Internacional de Matemáticos, Raymond Louis Wilder (1896-1982) trata do tema emergente a partir de sua fala: The cultural basis of mathematics. E o faz trazendo alguns aspectos novos para a discussão, já que, para Wilder (1950), os antropólogos já cultivavam o interesse por noções matemáticas de grupos não colonizados há bastante tempo, embora não dispusessem (os antropólogos) de um conhecimento matemático sólido a ponto de avaliar melhor os conceitos envolvidos no sistema de pensamento dos grupos que investigavam. Wilder (1950) alinha-se, assim, à reflexão proposta pelo antropólogo Leslie White (1900-1975) em seu ensaio The locus of mathematical reality: an anthropological footnote, originalmente de 1947. Em White (1956), despontava então uma interrogação ainda mais seminal para os caminhos futuros da etnomatemática: "residem as verdades matemáticas no mundo exterior, sendo portanto susceptíveis de serem descobertas pelo homem, ou são fruto da invenção do próprio homem?" (WHITE, 1956, p. 2349, tradução nossa). Embora até a década de 1950 alguns precursores tivessem desenvolvido uma boa noção do que, posteriormente, viria a ser o campo de investigação da etnomatemática, não há como negar que somente a partir da década de 1970 tais inquietações ganhariam fôlego real. Gerdes (1996) dá alguns indicativos dessa nova fase: em primeiro lugar, menciona a criação de sessões sobre "objetivos sociais" da educação matemática e de "por que ensinar matemática?", no Congresso Internacional de Educação Matemática de 1976 (ICME 3, Alemanha); em segundo, as iniciativas que se seguiram mundo afora, como a Conferência sobre o Desenvolvimento da Matemática nos Países do Terceiro Mundo (1978, Sudão), o Workshop sobre

Matemática e Realidade (1978, Dinamarca), a sessão sobre Matemática e Sociedade (Congresso Internacional de Matemáticos, 1978, Finlândia), a Conferência sobre a Matemática para Benefício das Populações (Paramaribo, 1982), o Simpósio sobre a Matemática na Comunidade (Peru, 1982), entre outras. O brasileiro Ubiratan D'Ambrosio, coordenador do IMECC-Unicamp em fins da década de 1970, ao tomar parte nos movimentos que, de alguma forma, colocariam em xeque a noção de ciência e de matemática oriunda do projeto da modernidade (MIRANDA, 2013), desempenhou um papel dinâmico e unificador em todos esses acontecimentos (GERDES, 1996). Lançou, em 1984, no 4º Congresso Internacional de Educação Matemática (Adelaide, Austrália), suas reflexões fomentadas por décadas de experiência na pesquisa em matemática, educação, antropologia e história sobre as bases sócio-culturais da educação matemática. Tomava corpo, então, o Programa Etnomatemática, definido como uma "metodologia para descobrir as pistas e analisar os processos de origem, transmissão, difusão e institucionalização do conhecimento" (D'AMBROSIO, 1990, p. 78). Não sem razão, ainda que sem estabelecer fronteiras muito rigorosas, a matemática ocuparia lugar de destaque nesse programa. A pergunta, formulada no fim da seção anterior, passava enfim a ter uma resposta: sim, ciência e matemática estão, definitivamente, condicionadas histórica e culturalmente! 5. Considerações (parcialmente) finais A proposta do artigo foi reconstruir historicamente dois momentos que, a nosso ver, têm se mostrado entrelaçados: por um lado, o momento de contestação do paradigma científico moderno a partir da segunda metade do século XX; por outro, o aparecimento do campo de investigação da etnomatemática, no mesmo período. Embora com nuances particulares e diferentes, o objetivo foi mostrar algumas proximidades conceituais entre os dois movimentos, focalizando a crítica ao paradigma científico moderno num livro já clássico de Boaventura de Sousa Santos, "Um Discurso sobre as Ciências"; e o aparecimento da etnomatemática nos tantos trabalhos produzidos (dos quais, citamos, por questões de espaço, apenas os mais importantes)

durante o século XX, todos enfatizando o papel da cultura e da história na produção do conhecimento e, nesse sentido, também a marca indelével impressa pelo brasileiro Ubiratan D'Ambrosio a essa história. As conclusões parecem apontar para um resultado óbvio, que não nos furtamos a verbalizar: ambos os movimentos estão datados historicamente! Se, por um lado, questionam os limites epistemológicos da ciência moderna; por outro, ampliam os limites academicamente instituídos da matemática padronizada. São, portanto, sínteses de dúvidas, contestações e críticas que tomaram corpo no cenário epistemológico com a transição da modernidade para a pós-modernidade. Ao que acrescentamos: são produtos de nosso tempo! 6. Referências BELTRÃO, Maria Eli. Félix Klein, sua trajetória e concepções a respeito do ensino de Matemática. Anais do IV Seminário Nacional de História da Matemática. Rio Claro: SBHMat, 2001. BISHOP, A. Cultural conflicts in mathematics education: developing a research agenda, For the Learning of Mathematics, 14(2), p. 15-18, 1994. CARRAHER, T. Street mathematics and school mathematics. Proceedings of the 12th International Conference on Psychology of Mathematics Education. Veszprem, p. 1-23, 1988. D'AMBROSIO, Ubiratan. Socio-cultural bases for mathematics education. Campinas, SP: Centro de Produções, 1985.. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. SP: Ática, 1990.. Transdisciplinaridade. 2ª ed. SP: Palas Athena, 2009. FIORENTINI, D. Rumos da Pesquisa Brasileira em Educação Matemática. Tese de Doutorado em Educação. Campinas, SP: FE/UNICAMP, 1994. GERDES, Paulus. Etnomatemática e educação matemática: uma panorâmica geral. Quadrante, Revista Teórica e de Investigação. V. 5, n. 2, p. 105-138, 1996. JAPIASSU, H. Ciência e Religião: articulação dos saberes. In: Soc. de Teologia e Ciências da Religião - SOTER. Religião, Ciência e Tecnologia. SP: Paulinas, p. 105-133, 2009.

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