ANDRESSA SÖRENSEN O LUGAR DOS PAIS NO ABANDONO DO TRATAMENTO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS

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Transcrição:

ANDRESSA SÖRENSEN O LUGAR DOS PAIS NO ABANDONO DO TRATAMENTO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS IJUÍ, DEZEMBRO, 2014

1 UNIJUÍ UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DHE DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA O LUGAR DOS PAIS NO ABANDONO DO TRATAMENTO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS ANDRESSA SÖRENSEN ORIENTADORA: PROFESSORA ANGELA MARIA SCHNEIDER DRÜGG Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para conclusão do curso de formação de Psicólogo IJUÍ, DEZEMBRO, 2014

2 ANDRESSA SÖRENSEN O LUGAR DOS PAIS NO ABANDONO DO TRATAMENTO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS BANCA EXAMINADORA PROFª MSc. ANGELA MARIA DRUGG Orientadora PROFª MSc. KENIA FREIRE Examinadora IJUÍ, DEZEMBRO, 2014

3 Dedico esta conquista aos meus familiares e ao meu noivo que, sem dúvida, foram essenciais para que eu pudesse chegar até aqui para a realização deste sonho, e aos demais amigos e colegas que, de alguma forma, me apoiaram durante meu percurso acadêmico. O meu muito obrigada de todo o coração!

AGRADECIMENTOS Este momento significa a realização de um sonho. Não foi fácil, mas hoje me sinto orgulhosa de ter conseguido ser psicóloga, profissão que escolhi seguir, honrar e, sem dúvida, servir. Agradeço ao meu companheiro de vida, Vagner, por ter sonhado junto comigo e não ter medido esforços para que esse sonho hoje se tornasse realidade; por ter respeitado os meus momentos de ausência e por ter me encorajado em momentos de dificuldades. Aos meus pais e meus irmãos, que acreditaram comigo que esse sonho seria possível; que confiaram e me deram todo o apoio necessário para que eu pudesse chegar até aqui. Hoje esta conquista é nossa. Aos meus sobrinhos que são a luz da minha vida. À minha avó Áurea que, em todo este percurso, sempre me apoiou, torceu e orou muito para que eu realizasse este sonho. A vocês o meu profundo agradecimento minha família, minha base. À minha orientadora, Angela Drügg, pelo caminho percorrido em conjunto, pelo conhecimento compartilhado, pela paciência e por me ajudar a evoluir tanto profissional quanto pessoalmente. Às colegas e amigas Aline A. Lindner, Marisa Scherer, Dalva A. Victor e Karine T. Schneider, pelo tempo que passamos juntas, dividindo nossas experiências. Aos amigos, familiares e colegas, por se permitirem ouvir e compreender minhas angústias durante as experiências dos estágios de ênfase e também no decurso da elaboração deste trabalho, além de entenderem a minha ausência em alguns momentos. Agradeço a Deus por ter me permitido chegar até aqui e por ter me protegido durante esta caminhada.

5 TÍTULO: O LUGAR DOS PAIS NO ABANDONO DO TRATAMENTO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS ACADÊMICA: ANDRESSA SÖRENSEN ORIENTADORA: PROFESSORA ANGELA MARIA SCHNEIDER DRÜGG RESUMO Este estudo traz considerações acerca do abandono do tratamento psicológico de crianças bem como a presença dos pais no trabalho clínico com elas. Aborda a presença dos pais desde os primórdios da psicanálise com crianças, e também a especificidade da clínica com crianças e suas características particulares, desdobrando, assim, conceitos fundamentais desta prática. A pesquisa analisa uma possível causa de abandono de tratamento infantil à medida que leva conta a constante presença dos pais neste momento. A interrogação que se produz é: Qual a relação entre o abandono do tratamento e o lugar dos pais? Palavras-chave: Abandono do Tratamento. Resistência dos Pais. Transferência Múltipla.

6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...7 1 O LUGAR DOS PAIS NA ORIGEM DA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS...8 2 O ABANDONO DO TRATAMENTO NA CLÍNICA INFANTIL: COMO PODEMOS PENSÁ-LO?...17 CONSIDERAÇÕES FINAIS...30 REFERÊNCIAS...32

7 INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende trazer algumas questões acerca da clínica com crianças relativas à suas especificidades e à constante presença dos pais como algo muito importante para o sucesso do tratamento psicanalítico destas. O trabalho se constitui por meio da pesquisa teórica pelo viés da psicanálise, trazendo autores contemporâneos que contribuíram com o tema em questão. O interesse pelo assunto iniciou durante o percurso acadêmico e, especialmente, a partir da experiência de estágio na Clínica/Escola, que nos proporcionou a observação de que ocorriam interrupções/abandonos de tratamento por parte das crianças. Esta observação nos fez começar a pensar quais poderiam ser as possíveis causas destes abandonos. Historicamente, a psicanálise com crianças teve seu primeiro intento realizado por Freud na análise do pequeno Hans. Até então o que se sabia do mundo interno infantil era baseado nas observações e escuta clínica de adultos. O trabalho com Hans obteve êxito, mas nada técnico foi elaborado, visto que, tratava-se de uma urgência a ser trabalhada e não a busca por uma forma de atendimento de crianças. Assim teve início um protótipo de atendimento infantil, uma futura técnica que adviria com outros estudiosos interessados como Hermine Von Hug-Hellmuth, Anna Freud, Melanie Klein, Françoise Dolto, Maud Mannoni. Como podemos observar, no cenário da psicanálise infantil encontram-se grandes pesquisadores, e claro, cada um, busca sua fundamentação dentro de sua teoria formadora e/ou constitutiva. Uma das características que podemos perceber na prática clínica com crianças é a presença dos pais e como isto pode interferir no curso do tratamento. Às vezes essa interferência conspira para o bem do tratamento, e, em outras, ela pode prejudicar o mesmo se o terapeuta não souber como lidar com ela. Esta real presença exige do profissional muito mais do que se ele estivesse tratando adultos. Muitos fatores, como a demanda e a transferência, determinam o tratamento quando se trata de crianças, pois se modificam e exigem certo manejo do psicólogo. Muitas interrogações surgem a partir do trabalho na clínica infantil, como, por exemplo, trabalhar essa relação com os pais e verificar como estabelecer o laço transferencial com estes e com a criança que está em atendimento. Estas e outras levaram à escrita deste trabalho, o qual se estrutura em dois capítulos.

8 O primeiro, O lugar dos pais na origem da psicanálise com crianças, aborda a presença dos pais desde os primórdios da psicanálise infantil e como os teóricos viam e trabalhavam com esta presença. Neste estudo podemos perceber as grandes diferenças teóricas que surgiram desde a prática clínica. Podemos, ainda, a partir de cada um deles, perceber como consideravam a presença dos pais no atendimento de crianças e o que achavam desta presença. O segundo capítulo, O abandono do tratamento na clínica infantil: como podemos pensá-lo?, destina-se a trabalhar as possíveis causas de abandono no tratamento psicanalítico de crianças, sem deixar de lado a questão do lugar que os pais ocupam neste trabalho clínico. Também apresenta as principais características desta clínica que tanto interroga os profissionais que nela atuam e como ela se configura diferentemente da clínica com adultos. Este capítulo aborda como os elementos principais no tratamento psicológico se configuram no trabalho com crianças, apresentando a origem da demanda, como ela vem expressa no tratamento e se torna mais complexa, trata da transferência e como se constitui um laço transferencial com os pais do mesmo modo que com a criança. Por fim, investiga como todos estes elementos particulares do trabalho clínico com crianças contribuem para que ocorra a interrupção do tratamento. Buscou-se, mediante a escrita, trazer considerações que sejam relevantes para entender este abandono, e poder, de alguma forma, trazer evidências que o ligam à presença real dos pais neste campo. Diante disto, cabe a reflexão acerca do trabalho clínico com crianças: Por que ocorrem essas interrupções? Quais seriam as possíveis causas? Partindo destas questões, na tentativa de uma explicação trazemos algumas considerações acerca do assunto.

9 1 O LUGAR DOS PAIS NA ORIGEM DA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS É importante buscarmos na História quando a psicanálise de crianças teve seu efetivo início e quais foram os principais teóricos que contribuíram para isso. Dentre estes, também verificamos como cada um trabalhou a presença dos pais no tratamento de crianças e qual era a importância destes para o trabalho clínico com as mesmas. Segundo Costa (2010), o interesse pela psicanálise infantil surgiu a partir da escuta de Freud a suas pacientes histéricas. Para esta autora, Freud desenvolveu a teoria da sedução, encontrando a etiologia das neuroses dos adultos em experiências sexuais traumáticas ocorridas na infância. Mais tarde, no entanto, os fracassos clínicos o levaram a abandonar essa teoria, porque concluiu que os sintomas histéricos decorriam de fantasias impregnadas de desejo. A realidade psíquica, portanto, era a determinante, e não a realidade factual. Esse foi um momento teórico muito importante para a teoria psicanalítica, quando o que se tornou relevante não mais eram os fatos decorridos na infância, mas sim a realidade psíquica, constituída pelos desejos inconscientes e pelas fantasias a ela vinculadas, tendo como pano de fundo a sexualidade infantil. A infância também passa por mudanças no seu conceito; passa não mais a ser vista como um registro genético e cronológico para ser abordada pela lógica do inconsciente. Durante muito tempo estudou-se sobre a psicanálise de crianças e se ela era realmente possível de ser realizada. Para Freud (1905), a criança é introduzida no campo da sexualidade por meio da função materna realizada pela própria mãe ou por quem assuma este papel. É por intermédio dos cuidados e do desejo materno que o corpo do bebê é erotizado e, então, passa a ser introduzido no campo da sexualidade. Desse modo, Freud (1909) apresenta ao mundo uma nova criança, dotada de sexualidade. A partir do conceito de pulsão, Freud (1905) mostra que o corpo da criança é um corpo pulsional, corpo este de desejo. De acordo com Costa (2010, p. 15), é mediante este conceito que Freud demonstra que a criança faz uso do seu próprio corpo como fonte de prazer. Para exemplificar, Freud utiliza a amamentação do bebê para mostrar a separação entre instinto e pulsão. Sempre haverá uma distância marcada entre o que é desejado e o

10 desejo alcançado, e é essa abertura que marcará o sujeito em sua eterna busca pelo objeto que supostamente o fará alcançar a satisfação. Muitas questões surgem a partir do estudo de vários teóricos sobre a psicanálise com crianças: Quem é essa criança da psicanálise? Como se constitui? É possível uma psicanálise com crianças? Durante muitos anos estas perguntas foram alvo de teóricos que tentavam de toda maneira respondê-las, cada um com sua linha de pensamento. Pode-se considerar que a psicanálise com crianças teve seu marco inicial com o caso do pequeno Hans, publicado por Freud em 1909. Este caso teve uma peculiaridade: o tratamento foi realizado pelo pai do menino, Max Graf, sob supervisão de Freud, que se encontrou com o menino apenas uma vez. Segundo Marra (2005, p. 26), até então tudo que se sabia sobre o mundo interno infantil era baseado em observações e escuta de adultos através da análise de pacientes do próprio Freud. O trabalho obteve êxito com o desaparecimento dos sintomas fóbicos de Hans, entretanto, nenhuma sistematização técnica foi elaborada, visto que, tratou-se na época de uma urgência a ser trabalhada para alívio dos sintomas de Hans e não a busca por uma forma de atendimento de crianças, na realidade de uma improvisação que em certa medida deu certo. Conforme Marra (2005), Freud nos forneceu o primeiro modelo de análise infantil, na medida em que mostrou ser possível ter acesso à linguagem pré-verbal de uma criança (as associações livres) por meio de desenhos, dos sonhos e também pelas fantasias que lançariam as bases de uma técnica da psicanálise infantil. Observou que, à medida que os aspectos conflitantes e os temores de Hans foram surgindo e do mesmo modo se esclarecendo, chegou-se ao desaparecimento da fobia. Nessa primeira tentativa de tratar de uma criança por meios analíticos, Freud contou com a colaboração do pai do menino. No já citado artigo, Freud (1909, p. 15) afirma: [...] o próprio tratamento foi efetuado pelo pai da criança, sendo a ele que devo meus agradecimentos mais sinceros por permitir publicar suas observações acerca do caso [...]. Ninguém mais poderia, em minha opinião, ter persuadido a criança a fazer quaisquer declarações como as dela; o conhecimento especial pelo qual ele foi capaz de interpretar as observações feitas por seu filho de cinco anos era indispensável; sem ele as dificuldades técnicas no caminho da aplicação da Psicanálise numa criança tão jovem

11 como esta teriam sido incontornáveis. Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniam numa só pessoa, e porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse científico, é que se pode neste único exemplo, aplicar o método em uma utilização para a qual ele próprio não se teria prestado, fossem as coisas diferentes. Foi a partir do caso Hans que Freud estabeleceu os pontos essenciais para que uma análise com crianças fosse possível, ou seja, a demanda, a transferência e a interpretação. A demanda normalmente vem expressa pelos pais ou pelos adultos responsáveis pela criança. A transferência, segundo Freud (1912), no caso da análise de crianças, precisa da junção da autoridade paterna com a autoridade médica. O terceiro ponto essencial para que uma análise seja possível é a interpretação. Freud demonstrou a importância da interpretação ao entender a fobia do pequeno Hans por cavalos como sendo um medo da retaliação paterna pelos desejos eróticos pela mãe. Essa interpretação, segundo ele possibilitou a cura da neurose. Freud (1909), com esses pontos e a partir do caso do pequeno Hans, lançou as bases teóricas para análise de crianças, mas ainda levaria muito tempo para que ela se desenvolvesse. Faltava um elemento fundamental para a clínica com crianças: a descoberta do brincar como um recurso que o terapeuta utiliza para ter acesso ao inconsciente infantil. A psicanálise tem como objeto o sujeito, seja ele uma criança ou um adulto, no entanto não podemos esquecer que a psicanálise com crianças tem uma especificidade em relação à clínica de adultos, uma vez que a criança, por características comportamentais que lhe são próprias, não pode cumprir com a regra fundamental da análise, ou seja, a associação livre. Por isso foi fundamental a descoberta do brincar como um equivalente da associação livre, pois, por meio dele, a criança sente-se livre; ela brinca com o que encontrar em sua frente, sendo esse um modo natural de ela se expressar. Na História da psicanálise foi, inicialmente, às mulheres que coube o papel de analisar crianças. Isso foi decorrente de uma época em que não era bem-visto que as mulheres ingressassem nas universidades e com isso pudessem seguir uma carreira profissional. Era possível, no entanto, que ingressassem nas escolas, atuando como professoras. Algumas, a partir daí, passavam a praticar a psicanálise,

12 pois encontravam no ambiente da sala de aula um lugar propício para aplicarem a teoria psicanalítica. Segundo Marra (2005), foi entre os anos 20 e 40 do século 20 que ocorreram os primeiros movimentos psicanalíticos em prol da clínica com crianças. A partir das pesquisas das primeiras analistas Hermine Von- Hug-Hellmuth, Anna Freud e Melanie Klein é que a clínica com crianças começa a se desenvolver. Depois de Freud, a tentativa de analisar crianças foi levada adiante por Hermine Von Hug-Hellmuth (1910), que, até o ano de sua morte, em 1924, dirigiu um serviço psicanalítico de ajuda à educação em Viena, que a consagrou, juntamente com suas publicações e o grande respeito que Freud tinha pelo seu trabalho, como a pioneira da psicanálise com crianças (COSTA, 2010). Conforme Costa (2010), Hermine Von Hug-Hellmuth visitava as crianças em seus lares a fim de observá-las enquanto participavam de atividades lúdicas. Na análise com crianças utilizava jogos e desenhos, afirmando que com esse material as crianças elaboravam as situações difíceis e traumáticas. Em seu método, a interpretação do material inconsciente combinava-se com a influência pedagógica direta. Hermine Von Hug-Hellmuth desaprovava o atendimento de crianças muito pequenas, as quais ainda não haviam passado pelo complexo de Édipo, pois acreditava que nesses casos a análise poderia prejudicá-las em razão do poder do recalque de mobilizar e fortalecer as tendências impulsivas da criança. A pioneira Hermine buscava conciliar o objetivo psicanalítico com os da família, escola e sociedade, tentando desvendar os segredos que a criança ocultava intencionalmente dos educadores. Propunha que o analista de criança não precisava explicitar os impulsos inconscientes, bastando que esses se expressassem em atos simbólicos, sem a necessidade de passar pela linguagem falada. O analista deveria ser, ao mesmo tempo, terapeuta e educador que cura. Assassinada pelo sobrinho, o qual havia atendido quando criança, Hermine Von Hug-Hellmuth faleceu em 1924. Embora seu nome esteja citado como uma das pioneiras da psicanálise com crianças, sua obra pode ser considerada quase desconhecida, pois a maioria dos seus artigos não foram traduzidos do alemão. Consoante Costa (2010), a partir de então se tomaram pela psicanálise de crianças Anna Freud e Melanie Klein, cujas obras diferem acentuadamente.

13 Foi no campo da psicanálise com crianças que Anna Freud foi reconhecida por seus trabalhos. Anna recebeu influências de Hermine Von Hug-Hellmuth e, tal como ela, recomendava ao analista de criança desempenhar um papel ativamente pedagógico. A discussão entre Melanie Klein e Anna Freud girava em torno da analisabilidade da criança. Estudavam se seria possível organizar uma análise com ela tal qual o adulto estabelece, e, ainda, se haveria capacidade de associar livremente, internalizar conflitos psíquicos, haver estabelecimento de uma neurose infantil e possibilidade de instituir uma neurose transferencial. Durante suas pesquisas, Anna Freud estudou o comportamento das crianças em seu ambiente escolar e observou que tipos de brinquedos eram mais utilizados em cada etapa do desenvolvimento infantil e, aplicando conceitos psicanalíticos a essas observações, forneceu uma orientação prática para as professoras. Anna Freud valorizava o aspecto pedagógico na atuação psicanalítica. Também valorizava em sua atuação a utilização dos sonhos, das fantasias diurnas e dos desenhos, e limitava o uso do jogo, não permitindo que aspectos agressivos pudessem emergir, considerando que tais impulsos agressivos deveriam ser corrigidos para melhor desenvolvimento da criança. Seria necessária uma ação pedagógica constante do analista, por ter a criança um superego imaturo. Segundo Costa (2010), Anna Freud levantou algumas questões, fazendo então uma diferenciação entre a análise de crianças e a análise de adultos. Para ela, é praticamente impossível estabelecer uma relação analítica com uma criança em virtude da sua imaturidade e dependência do meio ambiente. Conforme Anna Freud, a criança não possui consciência da sua doença ; não acredita estar doente. Isto aparece por intermédio dos pais, que estão angustiados e preocupados diante de suas dificuldades. Nesse sentido, para ela, falta algo essencial para a entrada em análise, que seria o mal-estar em relação a seu sintoma e a necessidade de tratamento. Pensando nisso, nessa falta de demanda Anna Freud propõe um período de preparação, ou seja, entrevistas preliminares que servirão para produzir na criança uma demanda artificial, conscientizá-la de que necessita de tratamento e que isso a ajudará a se livrar do sintoma. Para realizar seu trabalho analítico com crianças, Anna Freud associava medidas pedagógicas aos meios analíticos numa tentativa de conquistar sua

14 confiança, facilitando, assim, seu engajamento no processo analítico, ou seja, trabalhar sempre pelo viés da transferência positiva. Outro ponto abordado na teoria de Anna Freud sobre o tratamento psicanalítico com crianças diz respeito à associação livre, que, segundo ela, era impossível de ser realizada pela criança por esta estar ainda muito ligada aos pais da realidade. Em relação à transferência com crianças, Anna Freud acreditava que estas não teriam capacidade de estabelecer uma transferência positiva com seu analista. No seu entendimento, seria impossível haver uma reedição das relações com os pais dentro da análise, uma vez que a primeira edição ainda não estaria esgotada, sendo, então, impossível de a criança transferir fantasmaticamente a relação de amor que mantém com os pais da realidade para o analista. Segundo Zorning (2000, p. 87), para Anna Freud a fraqueza superegóica da criança, que ainda não internalizou os valores parentais, faz com que o analista tenha de exercer uma dupla função: a de analisar e a de direcionar as pulsões, exercendo uma tarefa educativa. Em 1927, Anna Freud (apud FERRO, 1995) faz a seguinte orientação: Nas crianças, as tendências negativas dirigidas contra o analista, apesar de freqüentemente reveladoras em muitos aspectos, são essencialmente inconscientes e deve-se reduzi-las a debilitá-las o mais rápido possível. É em sua relação positiva com o analista que se realizará sempre um trabalho realmente valioso. Para Marra (2005), Anna Freud, em sua teoria sobre a psicanálise de crianças, acreditava na importância dos pais no tratamento. Ela presumia que os sintomas apresentados pelas crianças estariam sendo determinados pelos conflitos inconscientes dos pais. Logo, segundo Anna Freud, na análise de crianças o que é levado em conta é o material recolhido no âmbito da família e não no da sessão. Daí, em sua teoria, a importância do trabalho constante com os pais e dessa troca contínua de informações. Por mais que a teoria psicanalítica tenha iniciado por Freud e, mais tarde, seguida por outros teóricos, sempre houveram dúvidas de que fosse possível uma análise de crianças. Cada psicanalista buscava em sua teoria dar conta desta

15 questão, trazendo elementos que confirmassem esta possibilidade tal como um adulto. Foi Melanie Klein quem formulou que com um estudo infantil era possível uma criança ser analisada. Melanie Klein utilizou como fundamento principal de sua obra a técnica lúdica, tal como Freud ensinou sobre os sonhos, concebendo o brincar como forma simbólica de expressão de desejos e fantasias. Assim como nos sonhos, os símbolos deveriam ser analisados na relação com o todo. Conforme Marra (2005, p. 29), Melanie Klein desenvolve a técnica da psicanálise infantil através do jogo, do brinquedo, do recorte, procurando preservar todos os princípios da Psicanálise de adultos, com a diferença que os meios técnicos empregados se adaptam às mentes das crianças. Critica qualquer intervenção educativa do analista e afirma que uma verdadeira situação analítica só pode ser produzida por meios analíticos. Muito diferente de Anna Freud, Klein (1970, p. 107) considerava factual a possibilidade de transferência da criança, definindo-a da seguinte maneira: Transferências são novas edições ou fac-símiles das tendências e fantasias despertadas e tornadas conscientes durante o processo de análise. Possuem, no entanto, uma peculiaridade característica de sua espécie: substituem uma pessoa anterior na pessoa do médico. Em outro termos, conjuntos completos de experiências psicológicas são revividos, não como algo que pertence ao passado, mas que se aplica ao médico no presente momento. Segundo Zorning (2000, p. 91), Melanie Klein trabalhava com a criança enfatizando o conceito de infantil como referido às fantasias inconscientes e às angústias arcaicas do bebê, descartando quase totalmente a interferência dos pais reais no percurso analítico da criança. Melanie Klein, muito diferente de Anna Freud, acreditava que a criança poderia ser analisada sem a presença dos pais. Estes não deveriam ser levados em conta durante o tratamento, pois a criança teria subsídios suficientes para sustentar uma análise. Mais tarde, no auge dos anos 70, Françoise Dolto surge trazendo articulações da teoria de Lacan na psicanálise de crianças. Contemporânea de Lacan, é considerada a iniciadora do movimento que consiste em articular na psicanálise de

16 crianças as colocações que Lacan fazia em seu retorno a Freud, e que, mais tarde, foi continuado por Maud Mannoni. Segundo Volnovich (1947, p. 24), Françoise Dolto propõe, em seu trabalho, inserir a criança na estrutura desejante da família como efeito dessa estrutura. Ou seja, a criança não seria como a criança apresentada anteriormente pela teoria de Anna Freud, aquela que escolhe ou não se tratar, produto das vicissitudes de seu Ego 1 e de seu desenvolvimento libidinal. Também não seria a criança apresentada por Melanie Klein, determinada pela quantidade de instinto de morte que se faz presente nos ciúmes e na inveja. A criança da teoria lacaniana, que Françoise Dolto apresentava, estava essencialmente inserida na estrutura da família, efeito desta do desejo do Outro. 2 Quando Lacan propõe na releitura de Freud sua fórmula o desejo inconsciente é o desejo do Outro, estabelece que não existe nenhuma possibilidade de que alguém possa ser gerado a partir de si mesmo, mas, pelo contrário, na medida em que o sujeito é efeito do desejo do Outro e retoma a determinação histórica e social do sujeito, reconhece que o inconsciente é uma experiência transindividual, social. É a partir desta posição teórica que Françoise Dolto redefine o sintoma da criança como sendo também sintoma da estrutura familiar na qual ela está inserida. Esta teoria gerou certa reviravolta entre os analistas de crianças da época, pois, de um momento para o outro, parecia ter terminado as análises de crianças, ficando unicamente a análise da estrutura desejante na família. Françoise Dolto tinha uma técnica de trabalho muito particular: fazia a primeira entrevista, tentando detectar na estrutura da família qual era a situação problemática, ou, no dizer dela, aquela que seria pervertedora ou denegatória da humanização da criança, fazendo sua intervenção em razão desta situação. Ela não tratava a criança senão por uma estratégia. Se a criança não podia falar de alguma coisa, incluída no sintoma, era porque não havia sido suficientemente falada pelo Outro, ou seja, pelos representantes familiares da cultura. Assim, a escuta e a palavra do analista podiam ser introduzidas na criança ou nos pais desta. Ela deixava entrar na sessão qualquer um que tivesse alguma coisa a dizer sobre a questão sintomática e sobre a criança, assim como não poupava 1 Ego em psicanálise o termo utilizado significa EU. 2 Em Psicanálise, emprega-se o termo Outro (com letra inicial maiúscula) para referir-se ao grande Outro materno função materna.

17 intervenções, quando necessário, para o pai, a mãe ou a criança. Esta forma de análise de crianças se diferenciava muito do modo como Melanie Klein a conduzia, posto que, na teoria kleiniana, os pais, enquanto a criança fazia tratamento com o psicanalista, deveriam fazer um acompanhamento, digamos, penoso, com outro analista. Para Françoise Dolto é o contrário. Ela estava para escutar. Para ela, nada melhor que um analista de crianças para escutar o pai e a mãe de uma criança sobre o que eles têm a dizer sobre seu filho. Esta linha de trabalho é continuada por Maud Mannoni, e o importante não era quem tratar, mas ver como estava estruturada a questão, momento em que se podia estar falando a palavra mediadora, que, neste campo, é representada pela palavra do analista. Todos estes estudos sobre a psicanálise com crianças foram muito importantes para o avanço da análise infantil e para que, hoje, se possa desenvolver um trabalho eficaz em relação ao tratamento analítico de crianças. Adiante verificaremos como a clínica com crianças se apresenta e quais são as suas principais especificidades, sempre levando em conta a real presença dos pais neste trabalho clínico.

18 2 O ABANDONO DO TRATAMENTO NA CLÍNICA INFANTIL: COMO PODEMOS PENSÁ-LO? Desde o princípio da análise de crianças o lugar dos pais no tratamento psicanalítico de crianças é algo que sempre foi ponto de interrogação. Muitos foram os teóricos que estudaram o tema, mas, como já mencionado, os que se destacam são Anna Freud, Melanie Klein, Françoise Dolto e Maud Mannoni, com teorias diferentes. Para Klein (1970), como vimos, os pais deveriam manter-se fora da sala de análise, ficando, assim, uma relação exclusiva entre criança e analista. Qualquer encontro com eles poderia ser percebido como uma invasão do espaço de escuta da criança ou até contaminar a escuta do analista, vindo, deste modo, a atrapalhar o curso do tratamento. Segundo Marra (2005), Klein compreendia que as dificuldades ou sintomas das crianças eram fruto de seu mundo fantasmático, movimento intrínseco à criança. O que dizia respeito aos pais era somente o contrato a ser feito, tal como os honorários e o dia das sessões, ficando, assim, os encontros com eles ou reduzidos ou dispensáveis. Não trabalhava as transferências que eram estabelecidas entre analista e pais por ser objeto de investigação a mente da criança em sua dimensão intrapsíquica. Conforme já mencionamos, mais tarde, com Françoise Dolto, o papel dos pais vai tomando importância e se tornando essencial. Passa a ser visto como um fator importante a ser considerado no tratamento analítico de crianças. Os pais passam, então, a ser incluídos na análise de crianças. Segundo Barbosa (2014), o ser humano, enquanto um ser de linguagem, inscreve-se como sujeito desejante a partir do Outro que dará sentido ao seu apelo, identificando-o como demanda. É desde o seu nascimento que a criança é marcada pela constante presença do Outro, pois ela nasce sem condições de se autossustentar biologicamente e, por isso, a estrutura familiar, ou seja, as funções materna e paterna são imprescindíveis. Durante todo o seu desenvolvimento a criança conta com recursos psíquicos advindos do Outro, na maioria das vezes da mãe. Entre o bebê e a mãe circula um saber inconsciente, e, se este saber vacila, obstáculos se interpõem na constituição do sujeito. Esses obstáculos podem ser oriundos da história de vida da mãe ou também de uma dificuldade do bebê, cujo

19 aparato orgânico não esteja em condições de interagir e se deixar marcar pelo desejo do Outro, ou, ainda, pela sensibilidade do bebê, que não se deixa enganar pelo que o carinho materno visa a ocultar. Diante dessas circunstâncias, podemos nos defrontar com uma mãe impotente, destituída e desautorizada e um bebê em sofrimento psíquico, que apela, mais tarde, durante sua infância, para um sintoma no corpo, do qual ele não poderá fazer cargo. A partir daí, os pais podem procurar tratamento psicológico para seu filho, supondo um saber que não estaria do lado deles. É a partir deste pressuposto que surge o pedido de análise de crianças. O tratamento psicanalítico com crianças, como já mencionado, se diferencia do tratamento com adultos. A prática clínica com crianças tem especificidades e começa com a presença dos pais ou responsáveis pelo tratamento. A criança chega à clínica por intermédio de um Outro, apresentada, na maioria das vezes, pela queixa daquele que a traz. Assim, uma das características do trabalho clínico com crianças refere-se à presença dos pais no tratamento, o modo de interpretação pela via do brincar, a demanda e também a transferência. Inicialmente podemos destacar que na clínica com crianças a demanda 3 de atendimento se mostra diferente e complexa, uma vez que dificilmente a criança chega ao tratamento clínico por vontade própria. Ela é trazida porque se interpreta que algo não está bem, geralmente em razão de algum tipo de comportamento que apresentou ou apresenta. Isto é interpretado por aquele que a traz como algo que em seu desenvolvimento não vai bem. Somente é possível dar continuidade a um tratamento psicológico se a demanda vinda do paciente estiver bem-colocada. Se não houver demanda o tratamento não pode ter continuidade. Por isso, quando se trata de atendimento clínico de crianças, a demanda torna-se tão complexa, pois ela vem expressa por um Outro. Quem demanda atendimento aos filhos muitas vezes são os pais; então, é preciso reconhecer que neste trabalho seja feita uma escuta tanto dos pais quanto da criança que está em atendimento, de modo a conseguir visualizar o que eles esperam do seu filho, o que eles desejam ou gostariam de reconhecer nele e também se a criança se reconhece naquilo que a traz para o tratamento. 3 Em psicanálise o termo demanda expressa: Forma comum de expressão de um desejo, quando se quer obter alguma coisa de alguém, a partir da qual o desejo se distingue da necessidade.

20 O atendimento psicológico tem início por meio do pedido. Este, no caso do atendimento de crianças, normalmente vem expresso pela família. Neste pedido está inclusa a queixa; aquilo que diz respeito aos conteúdos manifestos e conscientes que estão relacionados ao sintoma apresentado. É por intermédio desta queixa que o paciente chega até a clínica para atendimento e, com isso, formula seu pedido de ajuda endereçado ao psicólogo. Já a demanda de atendimento nem sempre é o motivo pelo qual se busca um psicólogo. A demanda deve ficar bemclara já nos primeiros atendimentos. Ela é construída nas entrevistas preliminares e a análise somente começa quando a demanda do paciente estiver constituída. O terapeuta deve visar para além da demanda para saber precisar, mais tarde, o que se tornará o desejo. Ela geralmente é expressa nas entrevistas preliminares, as quais têm o objetivo de colher informações sobre a criança e também sobre sua família, de modo a identificar de que lado a demanda está. É também neste momento que o psicólogo percebe o lugar que a criança ocupa para os pais. A psicanálise com crianças tem como característica a não demanda de tratamento pela própria criança e sim por aqueles que a trazem para tratamento. Segundo Hamad (apud FERRARI, 2001), [...] a demanda está relacionada ao Sujeito Suposto Saber, mas, no caso da criança, esta relação está estabelecida ainda com seus pais, a criança supõe que são seus pais que sabem sobre ela. Nesse sentido, a criança se deixa levar para tratamento porque os pais não conseguem dar conta daquilo que ela apresenta, coloca-os como testemunha do seu mal-estar e os reenvia àquilo que da sua história permanece vivo no seu infantil. A transferência também é um fator que muda quando se trata do tratamento de uma criança. Na clínica com adultos a transferência é estabelecida entre analista e analisando; já no caso do atendimento clínico de crianças a transferência é múltipla e acontece entre o terapeuta e a criança e também entre este e os pais, pois a disponibilidade para o tratamento é facilitada graças ao motor da transferência: a suposição do saber. A posição do analista que trabalha com crianças não é a mesma quando o paciente é adulto. A prática clínica com crianças oferece uma particularidade que não pode ser desconsiderada, uma questão que já foi referida; trata-se de como a criança chega para o tratamento. Ela não busca sozinha. Geralmente quem a traz são os pais, que trazem também uma queixa, um quadro sintomático, algo que os

21 angustia e os faz sofrer. Sabemos, porém, que o que se configura no tratamento como uma questão para a criança pode não coincidir com a queixa dos pais. Como o analista procede em seu trabalho analítico diante de tal particularidade que é a presença dos pais? Na psicanálise com crianças, segundo Mannoni (1980, p. 97), o analista trabalha com várias transferências, de vários sujeitos, pois os pais, de certa maneira, estão sempre implicados no sintoma da criança. Assim, no trabalho clínico com crianças o analista escuta a criança, pois ela é o sujeito em análise, mas continua atento à fala dos pais, que sempre apresentam elementos importantes. Escutá-los faz parte do manejo da transferência na sustentação da análise da criança. Escutar a história que os pais contam é muito importante, pois a pré-história da criança está inserida no discurso dos pais e em como eles simbolizaram e significaram a vinda do sujeito em questão. Por isso, a importância de escutá-los. Em Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, Lacan (2009) aborda esta questão afirmando que a história de um indivíduo já começa na sua pré-história, a partir de um desejo não anônimo que irá sustentá-lo no decorrer da vida. Lacan (2009, p. 86-102) assevera que: Antes de existir em si, por si e para si, a criança existe para e por outrem: já é um polo de expectativas, projetos e atributos [...] Um polo de atributos, eis o que é o sujeito antes de seu nascimento [...] de atributos, isto é, de significantes mais ou menos ligados num discurso. Trata-se de escutar em que lugar a criança está situada na fantasia do Outro; em que lugar se situa no desejo dos pais, no seu discurso sobre ela. É a partir do manejo da transferência com os pais e com a criança e do desejo do analista, que o enigma que se apresenta no pedido de tratamento para uma criança poderá se transformar em questão de um ou mais sujeitos. Acolher uma criança na clínica psicanalítica quando ela não tem qualquer implicação com as questões que sobre ela são apresentadas pelo Outro, é mantê-la no lugar de objeto e não de sujeito. Por isso a escuta, na psicanálise, é um fator de grande relevância, pois está atenta para o tipo de demanda e se a criança em questão se reconhece na queixa apresentada.

22 Na análise de uma criança muitas vezes as intervenções analíticas visam o laço pais-criança e, para que esta traga resultados e se possam extrair as consequências, é preciso que a criança seja vista como um sujeito suposto saber do que lhe causa. Será por meio desta maneira, ora estabelecendo laços com a criança e antecipando um sujeito ora na transferência com os pais, que o analista obterá movimentos em relação à posição destes, o que se refletirá na interação com seu filho. A transferência estabelecida com os pais versa sobre o estágio em que a criança se encontra, na medida em que se trata de um sujeito em constituição. Observa-se, então, que os pais são figuras presentes no cotidiano da criança e que esta ainda não dissolveu o complexo de Édipo, e ainda que a transferência na clínica com criança se apresenta de maneira diferente e cumpre outra função. Freud (1933, p. 146) aborda a transferência no tratamento clínico com crianças da seguinte maneira: As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise e a análise como tal muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influência analítica junto aos pais. O que vem a ser essa influência analítica? Freud (1933) não deixa claro o que seria para ele o influxo analítico, mas esclarece que há um nexo estrutural entre as resistências da criança em análise e as resistências dos pais. A experiência de Freud, já em 1909 com o caso Hans, nos fornece o exemplo da influência que os pais têm sobre o funcionamento da análise de um filho. Na concepção de Marra (2005, p. 48), [...] podemos entender esta dose de influência analítica sobre os pais como a possibilidade que tem o analista de incluir dentro de sua leitura do campo analítico (de acordo com o conceito de Baranguer) os nexos existentes e em dupla direção, entre a conflitiva intrasubjetiva do paciente e a relação intersubjetiva parental. Com isso, objetiva-se desfazer a trama identificatória que existe entre os desejos da criança e o mundo desejante dos pais.

23 É importante para o trabalho do analista de crianças que se tenha em mente que a relação estabelecida entre pais-criança é uma relação dialética sempre atuante e que não somente os pais, com sua fantasmática inconsciente, entrarão na determinação da formação de sintomas, mas há uma parte, não menos importante, de responsabilidade que é da criança e que se deve trabalhar, senão corre-se o risco de tratá-la como vítima dos pais, não considerando sua individualidade e co-participação na determinação de seu sofrimento psíquico. No entendimento de Marra (2005), para Anna Freud a criança não pode ser isolada das relações com as pessoas que a circundam. O psicoterapeuta concebe a subjetividade como resultante da relação do indivíduo com o mundo externo, não se limitando ao mundo intrapsíquico, olhando o ambiente no qual o paciente encontrase inserido. Para Marra (2005, p. 49), não é no ego do paciente, mas na razão e compreensão dos pais que o tratamento terá seu início, sua continuidade e sua conclusão. Assim, a partir destes teóricos que se dedicaram ao estudo da análise de crianças, podemos perceber o quão ela é interrogativa, e como cada um trabalhou a presença dos pais junto a psicanálise de crianças transformando esta presença em um elemento essencial para o sucesso da análise infantil. Seguindo com a questão da presença dos pais a partir de Marra (2005), é possível recortar na teoria freudiana o momento em que Freud parece antever dificuldades que adviriam para aqueles que fossem trabalhar com crianças. Em 1920, no texto Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina, um dos poucos em que faz referência direta ao trabalho com crianças, expõe o seguinte: às vezes são os pais que demandam a cura de um filho que se mostra nervoso e rebelde. Para eles uma criança sadia é uma criança que não cria dificuldades e só provê satisfações. Quando o médico consegue o restabelecimento da criança, depois da cura esta segue seus próprios caminhos, mais decididamente que antes, e os pais ficam mais descontentes (FREUD, 1920, p. 144). Com isso podemos perceber que se os pais não se modificam dificilmente teremos a cura e haverá o fracasso do trabalho. Muitas vezes o abandono do tratamento de crianças se dá quando os pais não acompanham a modificação que o

24 tratamento causa nos filhos e com isso não suportam o reestabelecimento da criança, vindo, assim, a interromper o tratamento. Sobre o fracasso do tratamento infantil, Sigal (2001, p. 158) afirma: Se os pais não se modificam, verão a cura como fracasso. Portanto, nesse caso, sua inclusão é imprescindível, visando que acompanhem e compartilhem mudanças na criança e que, por sua vez, se modifiquem. Incluídos no contexto da análise, os pais se oferecem na transferência e recriam-se no encontro fantasias primitivas sobre estes pais atuais que são, e não os originários. Depois de traçarmos as principais especificidades da clínica infantil e caracterizá-las, passamos para o ponto central do presente trabalho: O que acontece na clínica com crianças para que haja tantos abandonos de tratamento? Onde poderiam estar as causas? Como já vimos anteriormente, trabalhar com crianças nos coloca ante a diversas demandas que se sobrepõem, mas, muitas vezes, não partem da própria criança. É muito mais frequente sermos procurados pelos pais, pela escola, pelos pediatras, que trazem a queixa referente à criança, do que por ela própria. Por seu estado infantil a criança necessita de adultos, muitas vezes na posição de pais, que se responsabilizem por seu tratamento, pelo pagamento das suas sessões, por sua locomoção até o consultório, etc. Por isso, cada vez mais os pais estão incluídos no tratamento dos seus filhos e cada vez mais precisamos nos haver com essa presença. A criança se constitui na estrutura familiar e parte da sua questão em análise se relaciona com o lugar que ocupa no desejo e no discurso dos pais. Se, portanto, não escutarmos a demanda que é trazida pelos pais e não acolhermos a sua transferência, a análise da criança não se torna possível. Então, a questão que surge para quem se propõe a trabalhar com crianças é: Como conciliar essa dependência estrutural aos pais, que veiculam uma demanda fundamentalmente narcísica em relação à criança e o processo psicanalítico, que teria por objetivo fazer cair a criança como significante de uma ideologia social, para aparecer um sujeito na acepção de poder construir suas próprias normas? Essas e outras interrogações fazem parte do trabalho que os analistas têm ao observar crianças. Ao receber uma criança para tratamento, analisar o sintoma é o primeiro passo para identificar a sua causa.

25 Segundo Volnovich (1947), foi a partir do sintoma que Freud descobriu o inconsciente e, por meio deste, pôde situar o sintoma como lugar da verdade do sujeito. Os sintomas são definidos por ele como manifestações do recalcado, 4 formações pelas quais o reprimido inconsciente consegue obter o acesso que lhe é recusado. Freud define então o sintoma como o retorno do recalcado, como um sinal e substituto de uma satisfação pulsional que não se realiza: seria o resultado do processo de recalque. O tratamento psicanalítico não pretende o controle nem a supressão do sintoma, e isso não ocorre de maneira diferente quando se trata de crianças. A cura psicanalítica consiste em articular o sintoma com o desejo reprimido, o que é denominado desvendar seu sentido, articulação pela qual é possível assumir a própria história. O psicanalista de crianças pode, no curso do tratamento, observar o momento no qual a criança começa a desenvolver toda sua potencialidade transformadora, achando o sentido de um passado que a amarra pelo simples fato de ser reprimido, assumindo sua própria história e, por conseguinte, sua própria palavra. Consoante Zorning (2000), a neurose dos pais tem um papel fundamental na eclosão dos sintomas na criança, pois esta fixa sua existência num lugar determinado pelos pais em seu sistema de fantasias e desejos. A criança procura responder ao enigma dos significantes obscuros propostos pelos adultos, identificando-se ao que julga ser objeto do desejo materno, tentando preencher a falta estrutural do Outro e evitar a angústia de castração (assunção da própria falta). A relação da criança com a sua estrutura familiar também aparece quando falamos em sintoma, pois existe a possibilidade de uma apropriação sintomática da criança mediante suas produções fantasmáticas, quando a criança responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar ou de um assujeitamento mortífero ao desejo do Outro quando o sintoma corresponde à subjetividade da mãe. A intervenção clínica pode privilegiar uma destas vertentes: se interessar pela questão familiar, interpretando a criança apenas como sintoma dos pais, o que justificaria uma intervenção em âmbito familiar, ou se interessar pela verdade do desejo do sujeito e se constituir numa prática de subjetivação. 4 Recalque termo empregado em psicanálise para designar o conjunto das reações de um analisando cujas manifestações, no contexto do tratamento, criam obstáculos ao desenrolar da análise.

26 Para Mannoni (1982 apud ZORNING, 2000, p. 129), o que faz mal a uma criança não é a situação real que ela vivencia, mas o que nesta situação não foi verbalizado. É o não dito que introduz o trauma na criança, que procura responder ao enigma proposto por meio de suas produções fantasmáticas. Para Balbo (1992), as demandas destinadas às crianças não partem somente dos pais, mas também da sociedade com um todo, que exige que a criança corresponda a uma imagem-modelo proposta pelas ideologias, sejam elas políticas, sociais, pedagógicas ou psicológicas. Se a criança não se integra ao gozo social, identificando-se a um sistema de valores, ela é trazida ao analista pelos pais que, por seu lado, esperam o restabelecimento de um gozo narcísico. Desta forma, a criança responde a duas demandas: à parental, de restabelecimento de um gozo narcísico e à social, de se identificar a um modelo estabelecido por um sistema de valores, como familiares, escolares, morais, etc., que reforça o comportamento desejado. Com isso, podemos observar que a singularidade do processo analítico de uma criança se dá em razão da amarração entre ela e as demandas exteriores a ela, fazendo com que o analista, ainda que privilegiando trabalhar com o fator infantil, não possa desconsiderar os fatores da transferência. Agora que já percorremos pela clínica infantil e constatamos como o trabalho analítico se estrutura neste campo, podemos trazer considerações acerca do que seriam os fatores causadores de tanta desistência/abandono na clínica infantil. Reconhecemos, ao longo do trabalho, que um dos fatores que caracterizam e questionam o trabalho clínico com crianças é a presença real dos pais ao longo do tratamento, e, como estes possuem influência sobre ela, é preciso, para que o tratamento avance, que os pais não se coloquem como fonte de resistências e, para que isso não ocorra, é necessário que o analista trabalhe em conjunto com paiscriança. Uma das possíveis causas de tantas interrupções observadas no tratamento psicológico infantil estaria ligada aos pais. De que maneira, porém, os pais seriam os causadores desta interrupção? A clínica com crianças nos aponta continuamente esta relação entre a criança e os seus pais, a qual, ao ser ignorada, resulta frequentemente na interrupção do

27 tratamento psicológico da criança. A direção do tratamento bem como o final dele, dependem do destino que o psicólogo dá à demanda que lhe foi apresentada. No caso do trabalho clínico com crianças deve-se levar em conta, além da criança, os pais, pois os mesmos podem se colocar como fonte de resistência e, então, o trabalho pode ser interrompido. A resistência é um termo empregado em psicanálise para designar o conjunto das reações de um analisando cujas manifestações, no contexto do tratamento, criam obstáculos no desenrolar da análise. Essa resistência durante o tratamento psicológico de uma criança muitas vezes vem apresentada pelos pais, o que, em muitos casos, causa a interrupção do trabalho sem que ele realmente tenha chegado ao fim. A resistência é um fator que está presente no laço transferencial que se estabelece entre analista e analisando. (ROUDINESCO, 1998). Segundo Cunha e Martins (2012), a transferência é chamada por muitos profissionais de motor da análise, pois, sem que ela seja estabelecida entre paciente e psicólogo uma análise tornar-se-ia impossível. A transferência é uma suposição de saber endereçada ao analista. O analisando, sob transferência, deposita um saber sobre si no analista, um ideal do eu e o que sabe sobre o sujeito está no próprio discurso do inconsciente, porém apresentado como falta, como não sabido. Essa é a lógica de uma análise. O analisando aponta esse lugar de saber para o analista com uma demanda de amor, mas o analista, embora acolha, não ocupa esse lugar apontado pelo analisando. O analista, em sua ausência como sujeito ausência essa que sinaliza a disponibilidade do analista para escutar o outro presencia isso o tempo todo, justamente porque, sem isso, não haveria análise. Uma análise se autoriza desde o momento posterior de entrada em análise, ou seja, quando o sujeito é encaminhado por alguém ou identificado por algo pelo analista, como seu nome, sua fisionomia, sua voz, seu jeito de falar. A transferência já se estabelece até mesmo antes do primeiro contato. É a transferência que autoriza a função do analista. O analista, antes mesmo desse lugar de semblante da falta, de semblante do objeto, fica numa posição de depositário do saber, saber este que se presentifica como discurso do inconsciente como não sabido, como não saber, mas endereçado ao analista como o representante desse saber inconsciente.