MURCHO, Desidério - Essencialismo naturalizado. Coimbra: Angelus Novus, Ltd., 2002, 100 p. I Desidério Murcho não é desconhecido no Brasil. Foi tema de comunicação apresentada no Congresso de Filosofia realizado em João Pessoa (Brasil), em 2002. Resumidamente, registre-se que obteve seu mestrado em Lisboa e prepara o doutoramento em Londres. Destaca-se como um dos Diretores da Sociedade Portuguesa de Filosofia e como fundador e diretor de Crítica, portal de maior abrangência, na área de Filosofia, (www.critica.no.sapo.pt), em nossa língua. Note-se que também em 2002 publicou A natureza da filosofia e seu ensino. === Este comentário em torno do mais recente livro de Murcho se prenuncia longo, pois várias observações complementares se fazem quase obrigatórias. Começo com o termo naturalizado que surge no título. Até onde chegam meus conhecimentos, parece que Van Orman Quine cunhou o termo, no artigo Epstemology naturalized, publicado em 1971, cujo propósito era estudar epistemologia em linhas naturalistas. Nossos dicionários registram naturalizar como conceder (ou adquirir) cidadania a estrangeiro. A idéia seria conceder cidadania (em terras
42 HEGENBERG, Leonidas: Resenhas científicas) a certas idéias estrangeiras. Em 71, houve quem apoiasse Quine, elaborando planos de naturalização de toda a filosofia, e houve quem o criticasse, optando por um retorno à metafísica tradicional. Noto, ainda, nestas preliminares, que Aristóteles havia distinguido propriedades essenciais e acidentais. A distinção, combatida nos séculos XVII e XVIII, voltou a ser foco de atenção no final do século XX. Desidério apóia-se em trabalhos de A. Plantinga (1974), H. Putnam (1975) e S. Kripke (1980), para falar do essencialismo naturalizado. Completo estas observações iniciais, registrando que Murcho, em troca de mensagens, correio eletrônico (Setembro, 2003), declarou haver abandonado idéias quineanas para defender o essencialismo. A defesa, creio eu, se não chega a ser veemente, é pelo menos calorosa. II Passemos ao livro. Breve Introdução (duas páginas), três capítulos (cada qual deles com cerca de 20 páginas) e Conclusão (duas paginas). A Introdução sublinha que O essencialismo naturalizado defende a existência de verdades necessárias a posteriori. O cap. 1 (Noções modais) contém informes consentâneos com o título. O cap. 2 (Inteligibilidade do essencialismo) focaliza o anti-essencialismo. O cap. 3 (O empírico e o necessário) examina verdades empíricas necessárias. Após a Conclusão há um
HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 43 Apêndice (10 páginas), com noções de Lógica Modal. As 60 notas de pé de página foram reunidas no final, ao lado de bibliografia (32 títulos) e de breve, mas útil índice remissivo (nomes e temas). Ponto relevante, no cap. 1, está em notar (p. 24) que Kripke mostrou existirem verdades necessárias que só conhecemos mediante inferências (nas quais uma ou mais premissas são cognoscíveis a posteriori). O capítulo 2 destina-se a apresentar e refutar argumentos contrários ao essencialismo. Nas p. 38 e 39, Murcho compara O mestre de Platão bebeu a cicuta e O filósofo que bebeu a cicuta foi mestre de Platão. Na primeira frase, Sócrates é essencialmente mestre e apenas acidentalmente bebedor de veneno. Na segunda frase, as coisas se invertem. Para afastar dúvidas (relativas ao confronto essência vs. acidente), Murcho nota que é indiscutível, no essencialismo, a existência de necessidades irreduzíveis à linguagem. O exemplo claro estaria em frases do tipo Sócrates era necessariamente um ser humano. Na mesma p. 39, Murcho lembra que João pensa que: x (x roubou a carteira) é pensamento de dicto, ou seja, o objeto do pensamento de João é uma proposição. Todavia, x [João pensa que (x roubou a carteira)] é pensamento de re, ou seja, relativo a coisas (a pessoas, ao mundo real). Isso posto, lembra que a distinção de dicto e de re também se manifesta com os operadores modais
44 HEGENBERG, Leonidas: Resenhas (, necessidade;, possibilidade). É muito diferente afirmar que se uma pessoa é boa, é necessariamente boa, e afirmar que necessariamente, se uma pessoa é boa, é boa. A diferença se põe clara com símbolos: De re: Vx(Bx Bx) De dicto: x (Bx Bx). Consideremos as seguintes frases necessárias: 2 + 2 = 4 Se Pedro é humano, é humano Todos os objetos azuis são coloridos. Para Murcho, anti-essencialistas aceitam a necessidade porque (de dicto) são analíticas as proposições que as frases exprimem. O essencialismo, porém, defende existirem necessidades de re, irreduzíveis à linguagem. Exemplo: Sócrates era necessariamente um ser humano. Esta frase exprime uma necessidade apesar de não ser nem analítica nem reduzível a uma verdade analítica. Nas páginas seguintes, Murcho considera três conhecidas maneiras usadas por Quine para recusar a necessidade de re e ressaltar que a necessidade tem caráter apenas lingüístico. O cap. 3 focaliza o essencialismo naturalizado. O Autor apresenta-nos o princípio K (de Kripke) e o modus ponens K. O princípio (p. 57) assevera que Se uma dada proposição só for primitivamente conhecível por meio de um argumento sólido a posteriori, essa proposição
HEGENBERG, Leonidas: Resenhas 45 será unicamente conhecível a posteriori. Quanto ao modus ponens de Kripke (MPK), tem a forma: p p; p; logo p onde está no lugar de necessariamente. O objetivo de Murcho se põe claro na p. 66: estabelecer a existência de condicionais essencialistas é tudo que nos resta para estabelecer o próprio essencialismo. Condicionais essencialistas [por ex., Se a água é H2O, então é necessariamente H2O ] são condicionais do tipo p p. Apoiando-se em idéias de Kripke, relativas a mundos possíveis, designadores rígidos e intuições modais, Murcho conclui sua defesa do essencialismo dizendo inaceitável a inflação da possibilidade provocada pela idéia de que é possível tudo que seja logicamente possível. Segundo o Autor, nada se ganha ao afirmar o logicamente possível é metafisicamente possível. Na Conclusão, Murcho volta a combater a idéia de que o logicamente possível é possível. Lembra que há itens logicamente possíveis, mas metafisicamente impossíveis. E dá como incoerentes quaisquer teorias que neguem existência de necessidades metafísicas. III Para encerrar, breve nota a respeito de nosso idioma. O leitor observará que Desidério escreve uma frase de quatro linhas e meia (final da p. 18) em que o
46 HEGENBERG, Leonidas: Resenhas vocábulo ser aparece dez vezes. Isso atesta que é difícil, às vezes, usar nosso querido Português para abordar questões filosóficas fato que muito autores se habituaram a acentuar, afirmando que filosofia só se faz em Inglês (alguns diriam em Alemão ). Pois minhas palavras finais registram um elogio ao prof. Murcho pelo que tem feito (como também eu mesmo) em prol da boa difusão de temas filosóficos no rico idioma de Eça e de Machado de Assis. Res. Dez. 2003. Leônidas Hegenberg