DUAS TECNOLOGIAS, UMA MENSAGEM: JOSÉ SARAMAGO E FERNANDO MEIRELLES, O OLHAR INTERSEMIÓTICO NO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA



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Transcrição:

DUAS TECNOLOGIAS, UMA MENSAGEM: JOSÉ SARAMAGO E FERNANDO MEIRELLES, O OLHAR INTERSEMIÓTICO NO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA PAVANATI, Iandra (INESA/UDESC/ PPEGC, UFSC) 1 MIRANDA, Márcio Batista de (PPEGC, UFSC) 2 PERASSI, Richard Luiz de Sousa (PPEGC, UFSC) 3 RESUMO: O presente artigo propõe um estudo da tradução intersemiótica realizada no filme Blindness traduzido em Português como Ensaio sobre a cegueira, dirigido por Fernando Meirelles a partir do romance homônimo escrito por José Saramago. Faz-se uso do aporte teórico desenvolvido por Julio Plaza (2008) acerca desta qualidade de tradução, que se caracteriza como uma interpretação de signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. Utilizam-se também os suportes teóricos de Lucia Santaella (1983) e Roman Jakobson (1999) para compreender as estratégias empreendidas pelo tradutor Fernando Meirelles na escolha dos signos imagéticos e sonoros adotados na obra cinematográfica. Com o objetivo de demonstrar que uma mesma mensagem pode ser expressa em diferentes mídias sem, contudo, alterar integralmente o seu sentido, é que se analisa a intertextualidade das obras literária e cinematográfica, onde se observa a mensagem preservada em textos diferentes. As análises do processo de tradução evidenciaram que o filme não alterou a expressividade e a temática do livro, pois manteve o nível descritivo da obra literária. Foi observado no estudo empreendido, que o caos temático elaborado e descrito no livro, é reforçado no filme pelo caos pictórico. PALAVRAS-CHAVE: Tradução Intersemiótica; intertextualidade; semiótica; imagens. 1- Introdução A construção de um texto é fundamentada num conjunto de signos que produzem sentido ou significação. Logo, o texto expressa uma linguagem e representa, ou pode representar algo, através de sinais ou de conjunto de sinais, sejam eles auditivos, visuais, táteis, olfativos, etc. Para analisar este fenômeno recorre-se ao estudo da semiótica. Considera-se para a análise semiótica não o que se deseja dizer, mas o que se diz efetivamente. A esse respeito afirma Perassi (2009, p. 13) um texto que reúne formas de expressão ou significação já conhecidas pode reeditá-las para compor uma 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento EGC. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Área de Concentração: Mídia e Conhecimento. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento EGC. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Área de Concentração: Mídia e Conhecimento. 3 Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento EGC. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

[nova] mensagem, ou ainda pode confirmar em parte ou no todo, alguns textos existentes, como no caso da tradução analisada. No vão das significações e contradições verifica-se também que, uma mesma mensagem pode ser expressa em diferentes mídias, de formas diferenciadas, buscando manter o mesmo sentido. A este fato chamamos de tradução intersemiótica ou intertextual, onde se observa uma mensagem sendo expressa em textos diferentes. A construção desta mensagem não se dá de forma isolada, mas em relação a outros textos e contextos. Com o objetivo de compreender melhor este tipo de tradução, apresenta-se uma análise da tradução intersemiótica de um trecho da obra Ensaio Sobre a Cegueira escrito por José Saramago (2008) e filmado sob a direção de Fernando Meirelles (2008). A obra narra a história de ficção, onde as pessoas de uma cidade são acometidas por uma doença que causa a cegueira, sendo que apenas uma das personagens se manteve imune. Sem negar a expressividade crítica de Saramago, o qual constrói no livro um cenário caótico em que força o leitor a revisar seus valores ao observar o sucedido aos personagens da trama, diante da destruição de suas certezas sobre um porvir cotidiano e seguro. A análise aqui empreendida se constituiu a partir de estudos e discussões realizadas na disciplina de Semiótica, Estética e Conhecimento do Programa de Pós- Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento da Universidade Federal de Santa Catarina no primeiro trimestre do ano de 2009. Neste contexto, busca-se identificar os elementos semióticos e suas ligações para a tradução intersemiótica, explorando as teorias que tratam do assunto, bem como as percepções dos participantes da referida disciplina. Aproveita-se para prestar os devidos agradecimentos ao colega Daniel Alonso Del Rio, pela colaboração na coleta de fontes e na seleção e produção das fotos do filme utilizadas neste estudo. 2- O que é tradução intersemiótica Autores como Plaza (2008) e Espíndola (2008a, 2008b) apontam Jakobson (1999) como primeiro autor a definir o que é esta categoria de tradução, dentre outras possíveis formas de interpretação de signos verbais. Em Jakobson (1999, p. 64-65) são apresentadas três formas de interpretação do signo verbal:

[...] ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não-verbais. Essas três espécies de tradução devem ser diferentemente classificadas: 1) A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. 2) A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. 3) A tradução inter-semiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos nãoverbais (grifos no original). Considerando a proposta deste artigo de analisar a obra fílmica de Fernando Meirelles (2008), a categoria de tradução intersemiótica é a mais adequada, uma vez que o filme Ensaio sobre a cegueira é uma interpretação visual (não verbal) da obra literária homônima escrita por José Saramago (2008). Segundo Julio Plaza (2008), neste tipo de tradução ocorre operações inter e intracódigos as quais necessitam de um apoio teórico para se converterem em arte. Para o autor, um importante suporte teórico vem da teoria semiótica de Charles Sanders Peirce. Para esta teoria o signo é algo que, sob certo aspecto, representa alguma coisa para alguém, dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente [...] (PLAZA, 2008, p. 21). Tais signos podem ser interpretados enquanto ícones, índices e símbolos: ÍCONES: são signos que operam pela semelhança de fato entre suas qualidades, seu objeto e seu significado. O ícone, em relação ao seu Objeto Imediato, é signo de qualidade e os significados que ele está prestes a detonar (sic!), são meros sentimentos [...]. ÍNDICES: operam antes de tudo pela contigüidade (sic!) de fato vivida. O índice é um signo determinado pelo seu Objeto Dinâmico em virtude de estar para com ele em relação real. O índice, em relação ao seu Objeto Imediato, é um signo de um existente [...]. SÍMBOLOS: operam antes de tudo, por contigüidade (sic!) institutiva, apreendida entre sua parte material e o seu significado. Determinado por seu Objeto Dinâmico apenas no sentido de ser assim interpretado, o símbolo depende portanto de uma convenção ou hábito (PLAZA, 2008, p. 21-22). Um melhor entendimento desta relação entre a teoria dos signos e a tradução intersemiótica é encontrada em Santaella (1983), pois a autora defende que para interpretar ou compreender um pensamento é necessário traduzi-lo em outro pensamento, pois

[...] o signo [...] de um lado, representa o que está fora dele, seu objeto, e de outro lado, dirige-se para alguém em cuja mente se processará sua remessa para um outro signo ou pensamento onde seu sentido se traduz. E esse sentido, para ser interpretado tem de ser traduzido em outro signo, e assim ad infinitum (SANTAELLA, 1983, p. 11). Assim compreende-se porque sempre que se realiza uma tradução, opera-se no campo dos signos. Espíndola (2008b, p. 03) define a tradução como uma ação interpretativa e criativa de um sujeito, a qual transforma a natureza dos signos e também a sua forma de representar os objetos. Contudo, tal ação, embora sendo uma atividade criativa, ela guarda sempre um espelhamento do texto fonte. Uma tradução, embora seja outra obra, é também a manutenção de algo da obra original. 3- Apresentação da cena A tradução do livro para o filme envolve uma sistemática de construção de imagens a partir de signos visuais apresentados no texto e sua performance é baseada em uma pragmática que denota o gênero dramático. A cena analisada descreve a personagem mulher do médico, guiando o grupo de cegos pela cidade abandonada em busca de abrigo seguro para deixá-los, enquanto sai em busca de comida. A cidade, um ambiente pesado, apresenta um aspecto de abandono com muito lixo espalhado. As pessoas estão cegas. No livro a cena é assim descrita: As ruas estão desertas, por ser ainda cedo, ou por causa da chuva, que cai cada vez mais forte. Há lixo por toda parte, algumas lojas têm as portas abertas, mas a maioria delas estão fechadas, não parece que haja gente dentro, nem luz (SARAMAGO, 2008, p. 214). A descrição indica o estilo literário dramático do autor. A história narra a percepção dos cegos sobre sua realidade num contexto caótico. O desafio de traduzir estes sentimentos e sensações para o filme se torna ainda maior. No filme a cena 4 referente ao texto é expressa da seguinte forma: 4 Agradecimentos a Daniel Alonso Del Rio pela colaboração na coleta de fontes e na seleção das fotografias do filme.

Figura 1: Cena do Filme Ensaio Sobre a Cegueira. Fonte: ENSAIO sobre a cegueira. Direção: Fernando Meirelles. Produção: Niv Fichman; Andrea Barata Ribeiro; Sonoko Sakai. Roteiro: Don Mckellar. 2008. Figura 2: Cena do Filme Ensaio Sobre a Cegueira. Fonte: ENSAIO sobre a cegueira. Direção: Fernando Meirelles. Produção: Niv Fichman; Andrea Barata Ribeiro; Sonoko Sakai. Roteiro: Don Mckellar. 2008. A ausência de cores vivas estabelece o padrão de falta de percepção visual (cegueira branca) e cria o clima dramático em que a história se desenrola. Em sua análise teórica da tradução intersemiótica, Plaza (2008, p. 1) apresenta uma explicação para este recurso à liberdade poética do autor da tradução:

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos. Desta feita aparecem no filme recursos diferenciados daqueles descritos na obra literária de Saramago, evidenciando também os tipos diferenciados de recepção das mensagens, posto que, na linguagem escrita, o leitor é também um cego decodificando e percebendo os índices construídos pelo escritor, os quais tendem a ser mais táteis que os construídos pelo autor do texto imagético. Contudo, a tradução mantém a temática e a emoção da obra literária, pois na imagem também é priorizada a emoção instigada no livro. No filme, o caos temático construído no romance de Saramago é reforçado pelo caos pictórico. 4- Percepções sobre a tradução Na cena apresentada, as pessoas caminham, sem um destino certo, por um ambiente agonizante. Sua busca por um porto seguro é facilitada pela presença de um guia. Todavia, o desespero em que se encontram, só não é maior do que o seu senso de sobrevivência, o que os leva a confiar inteiramente no guia. A partir do texto/imagem é observável que a cegueira poupa as pessoas de sentir a totalidade da agonia do caminho. Cada personagem cego, enquanto agente cognitivo possui percepções da realidade diferenciadas, em função de suas histórias individuais. Mas, se vê num grupo cuja ausência de recursos visuais é semelhante, por sua história coletiva. Ao mesmo tempo, pode-se inferir que o caminho transformará os caminhantes, imprimindo-lhes reações que vão além da percepção visual. O mesmo acontece com os agentes externos, aqueles que lêem os textos, em que, mesmo tendo descrições expressas de maneira diferente no texto impresso e no filme, tem sensações de envolvimento similares. Não chove na imagem, assim como no texto, ao contrário disto tem-se uma manhã nublada. Todavia, o tom acinzentado da imagem traduz uma sensação tão pesada quanto a descrição oferecida pelo texto escrito. Outro aspecto interessante de observar é a de que a experiência do momento se traduz por um caminhar, cujos efeitos tanto no caminhante quanto no leitor/espectador

são de transformação. O texto expõe a limitação da percepção dos personagens com relação ao seu entorno imediato. Passam a depender de um agente que, tendo visão do que acontece ao derredor se vê, mesmo assim, num ambiente totalmente desconhecido. A partir da visão ou da ausência dela recurso dramático utilizado por Saramago também uma reflexão crítica pode emergir. 5- A relação intertextual Com relação à tradução intertextual o uso de várias mídias complementares pode ser verificado. Neste caso especificamente pode-se verificar, na tradução do texto escrito e sua conversão para o texto cinematográfico, o uso da mídia escrita, do áudio e de imagens, algumas baseadas em obras artísticas, como uma forma de complementar a criação de um cenário tão surreal e envolvente, quanto as percepções sensoriais possibilitadas pelo texto escrito. O uso de obras de arte como base para a construção do paradigma imagético do filme assume um padrão midiático, no sentido em que traduz o estilo dramático presente no texto impresso. A esse respeito Meirelles (2007) apresenta suas referências a outros autores e obras nas imagens construídas no filme, em especial a obra que faz referência à parábola dos cegos, do pintor flamengo Pieter Bruegel: A idéia de reproduzir quadros num filme não é original mas, nesta história sobre visão, trazer referências do imaginário humano ao longo do tempo pareceu fazer algum sentido. Fora este Bruegel, quem conhece um pouco de pintura vai identificar referências a Hieronymus Bosch, Rembrandt, Malevitch, alguns dadaístas, cubistas, Francis Bacon, gravuras japonesas, e principalmente algumas telas do Lucien Freud que nem referências são, são cópias mesmo (MEIRELLES, 2007). A tradução não é um processo estanque. Trata-se de uma relação entre vários outros textos que explicitam as convenções presentes no texto a ser traduzido. Bernardo Espíndola assinala este fato ao afirmar que: [...] deve-se observar o contexto que envolve a tradução, para que se observe como outros textos interferem na semiose. Isso quer dizer que um texto nunca é traduzido isoladamente, mas em relação a outros textos muitos dos quais, frutos de outras semioses com os quais dialoga. A adaptação de um texto para o cinema, por exemplo,

incorpora leituras ou convenções interpretativas desse texto que não estão no texto, mas em seu uso (ESPÍNDOLA, 2008b, p. 3). Os elementos presentes numa tradução intersemiótica mediam não apenas o texto, mas as sensações, sentimentos e crenças dos agentes que o acessam. Por este motivo o processo intersemiótico precisa ser contextualizado. Sua tradução não se dá de forma literal, mas a partir da construção imagética. Como se pode observar, o texto era a narrativa das sensações de cegos acerca do acontecimento. O quadro Parábola dos Cegos de Bruegel expressa o drama desses sujeitos sendo guiados rumo ao desconhecido, a situação do quadro é traduzida para o filme como forma de alicerçar a tradução do texto impresso. Observa-se que a tradução para o filme buscou enfatizar as sensações do cego. Neste ponto, a narrativa de um amanhecer chuvoso para um cego, pode ser traduzida para o espectador, por um amanhecer sombrio com um dramático som de fundo. As expressões antes construídas no imaginário, a partir do sentido tátil e auditivo do cego, dão lugar a expressões audiovisuais. 6- Considerações finais Conforme Perassi (2009, p. 13), podemos observar que a cultura é acervo e campo de cultivo de todas as significações, das já existentes e das que estão por vir. Um novo texto confirma e inova parte das significações desse acervo e contradiz outras partes, confirmando, em parte ou no todo, alguns textos existentes [...]. A cada nova leitura do texto ocorre a diferenciação das impressões, que fogem a linha da ficção descrita e remetem a reflexão pessoal, política e social do agente externo. Olhando para o texto e sua tradução através de várias mídias emerge a questão: estaria o autor José Saramago falando sobre a cegueira externa e não apenas a de seus personagens? Como o próprio nome diz, trata-se de um ensaio. Como tal, expõe uma interface da realidade, onde acontecem situações similares em contextos diferenciados. Na tradução elaborada por Meirelles não escapa a reflexão presente no livro acerca de que seríamos cegos em busca de uma visão da realidade. Pode-se verificar aí uma tradução intersemiótica da realidade em arte ou vice-versa. A reflexão que ora se traduz em obra literária é expressa a partir da realidade vivida ou a realidade vivida pode ser lida a partir desta reflexão? Ou seria esta ficção uma ponte entre a realidade percebida e a não percebida?

Caso estas reflexões procedam vivemos num reino de coisas onde reconhecemos aquilo que está no raio de nossa visão, atribuindo-lhes o status de informação e ignorando aquilo que não vislumbramos, mantendo estas últimas coisas como inomináveis. Mesmo assim, a realidade continua existindo apesar da não percepção do agente. O caminho continua lá, mesmo que venhamos a desconhecer qual seja o caminho e onde seja o lá. Abordando especificamente o contexto da tradução, constata-se que o filme manteve a expressividade e a temática do livro, uma vez que a obra cinematográfica manteve o nível descritivo da obra literária, bem como o sentimento e a emoção evocados no livro. Referências ENSAIO sobre a cegueira. Direção: Fernando Meirelles. Produção: Niv Fichman; Andrea Barata Ribeiro; Sonoko Sakai. Roteiro: Don Mckellar. 2008. 1 DVD (120 min), widescreen, color. Produzido por O2 Filmes; Rhombus Media; Bee Vine Pictures. ESPÍNDOLA, Bernardo Rodrigues. A adaptação fílmica e as três dimensões da tradução intersemiósica: a representação dos Evangelhos no filme A Paixão de Cristo. 2008a, 119 p. Dissertação (Mestrado em Letras). UFMG.. Tradução, transcriação e intertextualidade: a semiose intermídia. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências, 11., 2008b, São Paulo. Anais eletrônicos. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/cong2008/anaisonline/simposios/pdf/061/bernardo_es PINDOLA.pdf >. Acesso em: 01mai. 2009. JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1999. Disponível em: < http://books.google.com.br/books?id=0vozvhk- 7tYC&pg=PA63&dq=%22Ling%C3%BC%C3%ADstica+e+comunica%C3%A7%C3 %A3o%22&source=gbs_toc_r&cad=5>. Acesso em: 05 jul. 2009.. Linguística e Comunicação. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/7244007/roman-jakobson-linguistica-e-comunicacao>. Acesso em: 02 mai. 2009, p. 30. MEIRELLES, Fernando. Post 12: sobre filmar em SP, síntese e culpa. Diário de blindness. 12 de novembro de 2007. Disponível em: <http://blogdeblindness.blogspot.com>. Acesso em: 04 jul. 2009. PERASSI, Richard L. S. Semiótica, estética e conhecimento. Apostila da disciplina Semiótica, estética e conhecimento. Florianópolis: EGC/UFSC, 2009.

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. 1. ed. 3. reimp. São Paulo: Perspectiva, 2008. SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983. Texto digitalizado. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/6918621/santaella-lucia-oque-e-semiotica>. Acesso em: 02 mai. 2009. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 49. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.