Entre bestas e feras na literatura brasileira contemporânea



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Transcrição:

Entre bestas e feras na literatura brasileira contemporânea Resumo: Eduardo Jorge de OLIVEIRA 1, UFMG Esta pesquisa propõe uma leitura de uma dada produção literária contemporânea no Brasil. O ponto de partida são os bestiários medievais e alguns bestiários elaborados por autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Os bestiários, espécie de catalogação de seres reais e imaginários que na idade média possuía uma finalidade pedagógica, dentro de uma produção autoral assumem um novo traço, isto é, desviado de uma esfera pedagógica ou moralizante. No Brasil, dentro da literatura contemporânea, um diálogo mais direto e pervertido de seu sentido original, acontece em escritores como Wilson Bueno (Manual de zoofilia, Jardim zoológico), Claudio Daniel (Figuras metálicas), Nuno Ramos (Cujo, Pão do corvo) ou Jussara Salazar (Inscritos na casa de Alice, Natália), onde encontramos alguns procedimentos que dialogam tanto com essas obras de Borges e Cortazar quanto recriam o universo fabulativo dos bestiários. Palavras-chave: Bestiários medievais, literatura brasileira contemporânea, zooliteratura, literatura e outras artes. Introdução Esta pesquisa faz um recorte de uma produção literária brasileira contemporânea em dois aspectos. O primeiro deles é a questão de uma espécie de zooliteratura, sobre a qual investigamos um diálogo com os bestiários medievais em relação a uma abordagem formal e também em seus aspectos de criação e/ou catalogação de seres reais e imaginários. O segundo aspecto está relacionado à escolha dos autores para esta análise. São eles: Claudio Daniel (SP), Jussara Salazar (PE/PR), Wilson Bueno (PR) e Nuno Ramos (SP). São autores que estão com suas respectivas obras em curso e, por isso mesmo, o território torna-se movediço. Entretanto, as obras escolhidas e direcionadas para este trabalho possuem como eixo a questão dos animais ou seres imaginários. Dessa forma, existem dois autores latino-americanos importantes para traçar esse processo: Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, especificamente dois livros nos serão importantes, O livro dos seres imaginários (escrito em parceria com Margarita Guerrero) e Bestiário, respectivamente. Sobre as obras dos autores brasileiros, trata-se de livros ou trechos, cujo enfoque também poderá ser também em um poema ou um fragmento de texto. No caso do poeta paulistano Claudio Daniel, partimos de um zoológico em miniatura intitulado Figuras metálicas em expansão, contido no livro Figuras metálicas (2005), que é uma antologia reunindo a obra do autor até o momento. Jussara Salazar, poeta pernambucana que vive em Curitiba, possui dois livros interessantes para pensarmos dentro desse contexto, Inscritos na Casa de Alice (1999) e Natália (2005), onde ela cria alguns 1 Eduardo OLIVEIRA, mestrando em Estudos Literários (Teoria da Literatura) pela Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. Bolsista da Capes. E-mail: posedu@gmail.com

seres e imagens como uma espécie de catalogação que iremos explicar no decorrer do trabalho. Wilson Bueno, escritor paranaense está mais relacionado à prosa, entretanto não é intenção nossa fazer distinções entre prosa e poesia no decorrer desta pesquisa. Dele fizemos a leitura de seus livros Manual de Zoofilia (1997), Jardim Zoológico (1999), Cachorros do céu (2005) e Os chuvosos (2007). E Nuno Ramos, escritor e artista visual, de São Paulo, onde nessa leitura incluímos seus dois livros Cujo (1993) e Pão do corvo (2001). Desta forma, a nossa leitura é pensar essa dada produção em diálogo com os livros citados de Borges e Cortázar, além de como se nutriram da existência de bestiários medievais para compor uma escrita que transita pela catalogação, pela criação de seres imaginários ou imagens povoadas deste universo. Entre Bestas e Feras, uma leitura. Analisar portanto a obra destes quatro autores (Claudio Daniel, Wilson Bueno, Jussara Salazar e Nuno Ramos) no Brasil em uma leitura a partir de bestiários direciona nosso olhar para a questão dos animais e outros seres, inclusas suas formas de classificação e organização como linguagem verbal. Partindo de uma definição mais imediata, de feição dicionarística, observamos que bestiário é um livro medieval sobre animais, sejam reais ou fabulosos. Bastante popular na idade média, o bestiário é um gênero literário, seja em prosa ou em verso, que possui um caráter moral. Por possuir uma visão poética do mundo, os bestiários foram fortes influências para o desenvolvimento da alegoria e do simbolismo na literatura e nas artes. Ou ainda nas palavras de Virginia Naughton: El bestiario constituye uno de los tópicos alegóricos fundamentales de la Edad Media, y a partir de su lectura es posible reconstruir las relaciones que el hombre medieval mantenía con la naturaleza, y al mismo tiempo nos permite localizar su posición en el esquema general de las cosas creadas. Junto a esta zoología simbólica, debe situarse también aquella medicina imaginaria, y al igual que los bestiarios, la base de su credibilidad y amplia aceptación surgía de combinar algunas observaciones empíricas con propósitos morales y religiosos, y todo ello, en el marco de una profusa y abundante imaginería 2 (NAUGHTON, 2005. p. 18). Essa forma de utilizar alegorias para povoar o imaginário também está contida, embora com outro teor, nos relatos de viajantes que povoaram os séculos XVI, XVII e XVIII. Utilizamos aqui o trecho de uma pequena nota de Monstros e monstrengos do 2 Na nossa livre tradução: O Bestiário constitui um dos tópicos alegóricos fundamentais da Idade Média e, a partir de sua leitura, é possível reconstruir as relações que o homem medievo mantinha com a natureza, e ao mesmo tempo nos permite localizar sua postura no esquema geral das coisas criadas. Junto desta zoologia simbólica, deve situar-se também aquela medicina imaginária, e idêntica aos bestiários, a base de sua credibilidade e ampla aceitação surgia de combinar observações empíricas com propósitos morais e religiosos, e tudo isto no marco de um profuso e abundante imaginário.

Brasil onde a exegese dos monstros desenvolve-se a partir do século XII na forma de bestiários ou tratados de moral. (...) Os monstros serviam, tanto nos textos como nos capitéis das igrejas medievais, para um verdadeiro exercício de pedagogia moral. (TAUNAY, 1998. p. 175-176). Isso já começa a nos preparar alguns elementos para iniciar uma proposta de leitura dentro de uma determinada produção literária brasileira contemporânea. Nosso diálogo entre um bestiário medieval e um contemporâneo propõe analisar um certo hibridismo, onde poema, prosa e outras possibilidades textuais se mesclam gerando uma outra possibilidade de pensar os limites de cada gênero. Isso porque a partir do modelo proposto pelos bestiários surge também uma questão: de como estes provocam esta escrita híbrida de alguns escritores brasileiros como, por exemplo, Wilson Bueno, um dos que mais pervertem a lógica fabulativa dos bestiários medievais. Dele se podem citar alguns livros como Manual de zoofilia (1997), Jardim zoológico (1999), Cachorros do céu (2005) e Os chuvosos (2007). Da mesma forma, o poeta Claudio Daniel parece criar um zoológico em miniatura, quando utiliza em suas Figuras metálicas em expansão poemas que envolvem formiga, traça, pulga, barata e piolho; ainda podemos citar os livros Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001) e Figuras metálicas travessia poética (2005). A poeta pernambucana Jussara Salazar, com Inscritos da Casa de Alice (1999) e Natália (2005), nos fornece elementos plásticos (visuais) por intermédio da sonoridade de seus textos, que também desenvolvem pontos de diálogos com bestiários. E o artista visual de São Paulo, também escritor, Nuno Ramos, que publicou dois livros: Cujo (1993) e Pão do corvo (2001). A inserção de Nuno Ramos nesta pesquisa que aborda três escritores, stricto sensu, tem um propósito, pensar nas possíveis contaminações de poesia, de imagens em seus textos dentro de uma linguagem que, conforme dito por Augusto Massi, é uma prosa de ateliê 3, onde o próprio ritmo da prosa oscila entre a fluidez da água e a permanência da pedra 4. Reunindo estes autores e situando-os em nossa pesquisa em torno dos bestiários, pensamos que suas produções também se nutrem de uma mescla de descrição, narrativa, poema, verbete que estão presentes nos bestiários medievais. Para pontuar melhor essa questão, Maria Esther Maciel, em sua pesquisa sobre bestiários contemporâneos, traça como um dos objetivos de análise uma ressonância a qual gostaríamos de discutir nesta trajetória da pesquisa: No caso dos bestiários, o tópico da mesclagem de gêneros será importante também para que se possam discutir as relações de afinidade e dissonância entre o hibridismo textual da zooliteratura contemporânea e o que atravessa os bestiários tradicionais (Texto inédito). E aqui, de uma outra forma, retomamos aquela discussão que não nos compete fazer distinções estritas do que seria prosa ou o que seria poesia neste trabalho, e sim pensar a questão própria do hibridismo textual. Como se traça no escopo da pesquisa, não há tão-somente uma leitura em livros fechados como uma unidade em si, mas também há alguns pontos de diálogo com os bestiários e seus hibridismos, ou seja, existe também uma proposta de concentração de leitura na potência do poema. Um desses pontos está em Figuras metálicas, do poeta Claudio Daniel. As suas Figuras metálicas em expansão, trecho do livro, que pode ser lido como um fragmento de um bestiário e remete ao próprio desvio de bestiário ao produzir algumas imagens insólitas sem uma finalidade pedagógica. Aqui neste pequeno bestiário não habitam grandes animais, e sim uma miuçalha observada com 3 Apresentação in: RAMOS, Nuno. Cujo. Rio de Janeiro: ed. 34, 1993. 4 Ibid.

atenção e imaginação, como no fragmento do poema formiga: Pequeno dragão/doméstico.//cabeça grávida/de hibisco.//rústico abdome-/cogumelo.//escava o incerto/dos dias.//para a trilha/vertical//de farelo, fúria/e folhas (DANIEL, 2005. p. 47). Além da formiga, dentro desta pequena fauna está a traça, a pulga, a barata e o piolho. Pequenos seres que possuem, inclusive, uma existência parasitária e não só pelo tamanho, são impossíveis de serem domesticados. Estes, quando habitam a área da domus, são clandestinos. Natália, de Jussara Salazar, possui um interessante trecho chamado Falbalás (brevíssima taxinomia dos sentidos e movimentos), a ser lido como uma possibilidade de catalogação de seres que habitam inclusive sentidos e movimentos. Estes seres são os sedosos, alados, açucarados, sonoros, milagrosos, ondulados, perspicazes e vegetais. Torna-se interessante aqui conhecer um deles, sonoros: O corpo dos sonoros é difícil de ser avistado, são gordos leves ao mesmo tempo podendo em poucos segundos propagar-se ao ar vibrante por infindas camadas atravessando paredes. O fogo quando incendeia o mato com suas muitas línguas de calor desdobra sonoritats inconfundíveis forrando um imenso tapete de cinzas silenciosas assim como os pianos se desdobram por oitenta e oito fólios como os dentes de uma grande boca. Às vezes a chuva derrama um som melancólico em seus véus translúcidos sendo como a flor do maracujá muito eficaz para embalar o sono (SALAZAR, 2004. p. 85). E dentro da composição desses seres, Jussara praticamente os mistura a uma idéia de paisagem, jogando também com uma materialidade difícil de ser avistada dentro dos limites óticos, compondo, como a própria autora descreve em seus sonoros, uma literatura onde a plasticidade está no som do texto, o mesmo som que se faz de lugar para suas imagens. Animais e textos híbridos. E assim, dentro da leitura de uma composição de uma tessitura cruzada com bestiários, alguns escritores, nesta maneira de compor textos, poemas, contos, ou melhor, um hibridismo textual em uma zooliteratura, trazem uma marca interessante a ser lida nessa produção. Como parênteses, vale ressaltar a observação de Haroldo de Campos sobre texto híbrido, na Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana: O hibridismo dos gêneros no contexto da revolução industrial que se inicia na Inglaterra na segunda metade do século XVIII, mas que atinge o seu auge, com o nascimento da grande indústria, na segunda metade do século XIX, passa a se confundir também com o hibridismo dos media, e a se alimentar dele. A emergência da grande imprensa desempenha um papel fundamental nos rumos da literatura (CAMPOS, 1977. p. 15-16).

Assim, não se trata, portanto, de pensar uma novidade, mas de apropriar-se dessa questão para pensarmos o ponto em comum entre uma zooliteratura e suas possibilidades híbridas de produção textual, assim como essas possibilidades não estão isoladas de seus contatos com os novos meios para hibridização: internet, vídeo, artes visuais e outros suportes que pretendemos discutir no decorrer da pesquisa e no diálogo com o material crítico de alguns autores. Bem, convém antes pensar um pouco o que seria essa hibridização, que acontece não só entre os meios como também no próprio texto. A partir daí observamos em Culturas híbridas, de Néstor Canclini, uma possibilidade de leitura: entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (CANCLINI, 2006. p. XIX). Para chegar a essa produção contemporânea que, como demarcação, será de autores que estrearam a partir dos anos oitenta, torna-se importante uma leitura da produção literária brasileira a partir de 1922 isto é, com um certo interesse passando por textos de Raul Bopp (Cobra Norato), Murilo Mendes (Setor Microzôo, de Poliedro) e Clarice Lispector (Perto do coração selvagem), Guimarães Rosa (Ave, palavra) dentre outros. Essa leitura nos ajuda a pontuar a pesquisa dentro da literatura brasileira contemporânea, necessária para que justamente sejam analisados livros de alguns escritores que traçaram um projeto estético com essa relação à zooliteratura de uns tempos para cá. Em As palavras e as coisas, Michel Foucault nos apresenta um instigante prefácio, no qual se refere a uma certa enciclopédia chinesa, de Jorge Luis Borges, que contém a seguinte classificação dos animais: os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cétera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas (FOUCAULT, 1987. p. 5). Essa vizinhança súbita das coisas sem relação nos leva a imaginar uma possibilidade de elementos sem relação que estão ligados sucessivamente por letras em ordem alfabética. E dentro desta ordem, uma desordem se monta, como se Borges ao intitular seu texto como uma certa enciclopédia tivesse consciente de um caráter ambíguo da enciclopédia 5 de tentar ordenar o que é desordenado. E pensando em códigos ordenadores direcionados para pensarmos uma zooliteratura brasileira, aqui mais uma vez aparece Foucault: Segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber, na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofias, 5 Citando aqui Maria Esther Maciel (2004, p. 6) sobre o caráter enciclopédico como uma rede de saberes, linguagens, suportes, metáforas, alegorias, intertextos, organizada a partir de determinados princípios (diga-se provisórios, arbitrários, ainda que rigorosos) de ordem para tratar de um mundo desordenado e muitas vezes absurdo.

formar-se racionalidades, para talvez se desarticularem e logo desaparecerem (FOUCAULT, 1987. p. 11). É dentro da possibilidade de desaparecimento, de rasura de uma instituição de saber que esses livros em torno de animais reais e imaginários contribuem para desmontar um discurso preparado como o fez o texto de Borges citado anteriormente. No Jardim zoológico (1999), de Wilson Bueno, uma possível combinação de seres como ivitus, êulikes, nácares, agoalumens, catoblepas, zembras, lazúlis e limosos representam de alguma maneira uma forma de pensar o homem como invenção recente que desaparecerá desde que este houver encontrado uma nova forma, como se pode ler em Michel Foucault. Então, aqui essa zooliteratura surge como uma maneira de repensar a forma homem, mesmo que os textos não se enquadrem de maneira didática, como foram os bestiários medievais. E como um autor inserido na América Latina, esses seres também se entrecruzam com outras tradições como, por exemplo, as dos índios Guarani, como estão os irús no zoológico de Bueno: Os irús, outros dos duendes do Chaco paraguaio, são incrivelmente engraçados pequeninos e quase todos meio corcundas, andam aos magotes, abraçados uns nos outros como se não houvesse outra maneira de viver. Por isso, irú que dizer abraço, em guarani, derivando daí, segundo alguns etimologistas, a palavra, e não o contrário. Descalços nos mínimos pés didáctilos só o dedão e o minguinho, os irús começam a cantar mal dê o céu a sua aguada aurora, as pequenas mãos dadas; não raro, dizem os índios, dançam a churuchuchú, uma dança que joga as duas pernas para o alto e se cai de bunda no chão (BUENO, 1999. p.81). Notamos então que a relação dos seres desconhecidos com etimologias e costumes situados na América Latina cria uma relação que não se limita apenas a explicar o ser fantástico em si, sua presença em nossos costumes, mesmo que desconheçamos a natureza destes animais. Entretanto, além da leitura dos livros dos autores estudados, a idéia de encontrar não só na unidade do livro, mas na potência do poema ou da narrativa, o texto híbrido amplia a possibilidade de diálogo com diversos autores da literatura brasileira e deixa um desafio ainda maior de leitura, de pesquisa e de análise da produção. Por isso, ler não só pelo livro, mas por um conjunto de textos torna-se um exercício de rigor ainda mais presente na eleição dos autores. Dentro desse contexto, em Os chuvosos (2007), de Wilson Bueno, Claudio Daniel pontua uma escrita marcada pela prosopopéia, assim definida pelos dicionários: Figura pela qual se dá vida e, pois, ação, movimento e voz a coisas inanimadas, e se empresta voz a pessoas ausentes e mortas e a animais. Um pouco adiante: Incluir Os chuvosos no ciclo de bestiários de Wilson Bueno (ao lado do Manual de zoofilia, Jardim zoológico e Cachorros do céu) pode parecer arbitrário, mas o autor permite essa aproximação, nas primeiras linhas do relato, onde diz: Estes animais, eu vos convido, era uma vez. Em Nuno Ramos, nos seus dois livros, publicados ambos nos anos noventa, Cujo e Pão do corvo, encontramos aproximações plásticas a bestiários, além de um

hibridismo textual com uma materialidade própria. Em Cujo, nas palavras de Augusto Massi para a orelha do livro: Entre mórbido e onírico, fértil e escatológico, desfila um verdadeiro bestiário: baleia morta, polvo sem braços, a duração de um elefante, pele da cobra, gralha clara. Toda esta zoomorfia parece se render à lógica de um camaleão que por exacerbação de seu conceito, tivesse uma única aparência. É esta aparência que Nuno Ramos explora. O artista, que parece inventar uma pele para tudo 6, nos transporta para a superfície dos animais, apenas. E o que seria uma superfície de um animal? Um animal sem o animal por dentro? É com a pele de um coelho que vamos ter o contato com esta superfície no seguinte fragmento: A pele do coelho sem o coelho dentro: seus pelos penetram o couro por pequenos poros rosados. Há diferentes cores em cada pêlo, mas não muitas: semitons entre o amarelo e o castanho escuro e alguns albinos, também. É assim sem o coelho dentro (RAMOS, 1993. p. 29). A superfície explorada por Nuno Ramos também é algo que vai transformando sua própria matéria. Nos fragmentos de Cujo, o que se inicia como pele destina-se à aniquilação: A pele do conteúdo cai. Depois de muitas peles, o próprio conteúdo cai. Depois o caído cai. Até a aniquilação (ibid. p. 59). Além de Claudio Daniel, Nuno Ramos, Wilson Bueno e Jussara Salazar, incursionamos produções de outros poetas durante a pesquisa para desta maneira, marcar uma espécie de bestiário de autores brasileiros contemporâneos que lidam com a representação/evocação de animais na literatura, dentro de uma perspectiva de catalogação destes animais reais ou imaginários. É dentro desse universo da literatura brasileira contemporânea que se pretende submergir, mergulhar em propostas e perversões de beastiários, recriados, inventados ou recombinados por alguns autores que trazem isso como traços interessantes a serem lidos em suas obras. Assim, também faz parte do nosso universo de pesquisa, elaborar dentro da linguagem dos bestiários medievais um bestiário contemporâneo de escritores brasileiros contemporâneos. Conclusão Assim como as obras destes escritores, nossa pesquisa também se encontra em curso. Ela está em fase de levantamento bibliográfico, além de uma fase embrionária de escrita. Ela está sendo desenvolvida dentro do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários, da Universidade Federal de Minas Gerais, dentro da área de Teoria da Literatura, com a linha de pesquisa Poéticas da modernidade, sob a orientação da professora Maria Esther Maciel. Trata-se uma pesquisa que envolve um trabalho de leitura crítica da literatura brasileira contemporânea e sua tessitura híbrida dentro da possibilidade de articulação com outros saberes e outras artes. Desta forma, também se estabelece, além da leitura das obras, alguns diálogos com os autores, não apenas com o propósito biográfico ou genético da criação, mas para estabelecer uma leitura com as próprias obras as quais os autores dialogam e suas relações com uma determinada leitura de uma outra produção relacionada à zooliteratura e aos bestiários. 6 RAMOS, 1993. p. 19

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