QUANDO O CORPO APAGA AS FRONTEIRAS: PERSPECTIVAS QUEER NA NARRATIVA FÍLMICA XXY

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Transcrição:

QUANDO O CORPO APAGA AS FRONTEIRAS: PERSPECTIVAS QUEER NA NARRATIVA FÍLMICA XXY Nicola Gonzaga/UFSC 1 Resumo: Este trabalho foi inspirado pela disciplina "Estudos Literários: Gênero, Identidade, Etnias e Representações", cursada com a professora Cláudia de Lima Costa. O estudo constitui uma análise a respeito da obra fílmica XXY, da diretora Lucía Puenzo, relacionado a textos sobre gênero e sexualidade. O objetivo da pesquisa é a discussão do olhar sobre o corpo que desvia da matriz reguladora e que é representado no filme como um corpo estranho, que foge ao padrão social. As bases que orientaram o estudo foram textos de teóricas feministas no que diz respeito a certos tipos de identidades de gênero e a noção de corpos abjetos Butler (2001); os dualismos em duelo e as representações de feminino e masculino Anne Fausto Sterling (2000); e a influência das práticas reguladoras das coerências de gênero Flax (2002). Os resultados apontam para uma teia complexa de valores e pré-conceitos presentes nos discursos mais normativos, que acabam por sustentar a reprodução dos binarismos e a proliferação de barreiras. Tais resultados evidenciam a necessidade em se trazer à tona discussões que possibilitem a visibilidade do tema. Palavras-chave: Identidade. Binarismos. Visibilidade. A pesquisa que apresento aborda a relação entre corpos sexuados/gendrados 2 e como esses corpos se inscrevem e são escritos pelo meio social. O corpo gendrado aponta para o que é possível e o que não é possível dentro da nossa cultura. Ou seja, alguns corpos são excluídos por não representarem o esperado socialmente: se não correspondem à influência das práticas reguladoras das coerências de gênero 3, esses corpos são considerados abjetos, estranhos, fora de lugar. Neste viés, a autora Fausto-Sterling defende que nossos corpos são demasiadamente complexos e que os sinais e as funções corporais que acabamos por definir de masculino e feminino já vêm misturados em nossas ideias sobre o gênero; que a denominação de homem ou mulher em um indivíduo que acaba de nascer é feita através de decisões sociais, critérios préestabelecidos culturalmente. A autora dirá ainda que "rotular alguém de homem ou mulher é uma decisão social". 4 (Fausto-Sterling, 2002, p.15) É neste contexto que a teoria queer serve de escopo teórico para esta pesquisa. A terminologia queer vem da língua inglesa e significa estranho/excêntrico, mas foi utilizada também para identificar de maneira pejorativa gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros. Alguns 1 Mestranda em Literatura pelo programa de Pós Graduação PPGL, UFSC, Florianópolis, Brasil. 2 O termo gendrado foi utilizado pela pesquisadora Suzana Funch na tradução de Technologies of Gender de Tereza de Lauretis, para catacterizar marcados por especificidades de gênero. 3 Termo utilizado pela teórica Jane Flax. 4 FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. Cad. Pagu, 2002, n.17-18, p.15 1

movimentos sociais do final da década de 60, nos Estados Unidos, começaram a utilizar o termo queer como forma política de protesto, apropriando-se do termo, destituindo, assim, o seu caráter ofensivo. A autora Guacira Lopes Louro escreve em seus estudos sobre o queer: Queer é o estranho, o raro, o esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante, é o excêntrico que não deseja ser somente integrado e muito menos tolerado. Queer é um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do entre-lugares, do indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda, perturba, provoca e fascina. 5 (LOPES, Guacira L, 2004, p.13). Se antes o clássico dualismo natureza x cultura implicava que a biologia era um fator natural e que o sexo masculino e o sexo feminino resultariam na construção binária de homem x mulher, a teórica Judith Butler romperá de maneira radical com a dicotomia sexo x gênero. Ela defenderá que o gênero não está para a cultura como o sexo para natureza; ele é também o meio discursivo/cultural pelo qual a natureza sexuada ou um sexo natural é produzido e estabelecido como pré-discursivo, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura. 6 (Butler, 2003, p.25). A autora Butler traz os estudos queer à tona, trabalha com a noção da performatividade, propondo o gênero como um fazer, uma performance, aquilo que o indivíduo torna-se através das construções culturais de uma determinada sociedade, inclusive reproduzindo de maneira inconsciente esse fazer. O gênero, sendo uma matriz discursiva que produz corpos, dita certas normas através de identidades coerentes. Essas identidades coerentes fazem parte da matriz heterossexista, que se apresenta homogênea, mas, não totalitária, pois não abrange todos os indivíduos: há resistentes. Há aqueles que subvertem esses padrões, admitindo outros fazeres com seus corpos. O corpo, portanto, não assume um papel neutro. É um lugar de tensão. Para discutir como o corpo se inscreve no meio social e como ele é escrito através desses discursos hegemônicos, trouxe a teoria de Pierre Bourdieu para sustentar o aporte teórico da pesquisa. O corpo para Bourdieu está relacionado ao habitus. O habitus é uma conseqüência da exposição do corpo as regularidades do mundo. Conforme Ribeiro 7, O corpo é um corpo social, informado pelas demandas do social, é solicitado pela posição que ocupa no espaço e na estrutura social, e deve responder de forma 5 LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2004. p.7-8. 6 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 7 RIBEIRO, Andressa de Freitas. O corpo na cultura e a cultura no corpo: uma breve reflexão sobre o corpo e a categoria gênero. II Seminário Nacional de Sociologia e Política, setembro 2010. 2

específica a uma determinada situação. (Ribeiro, Andressa de Freitas, 2010, p.12). XXY Para tais análises a respeito do corpo e da teoria queer é possível utilizar algumas obras fílmicas para embasar as teorias estudadas. Para isso, usarei o filme XXY, de Lucía Puenzo (2007) a fim de problematizar algumas questões citadas anteriormente. Porém, outros filmes podem ser usados para o desenvolvimento da pesquisa, como Transamérica de Duncan Tucke, Má Educação e Kika, de Pedro Almodóvar, e Meninos não choram, de Kimberly Pierce. Com base nisso, o filme XXY aborda uma questão delicada: alguém nascer com os dois sexos em uma sociedade que convive com binarismos o tempo inteiro não parece simples. A personagem Alex nos é mostrada como uma jovem arredia, desde o início da trama. Seus pais a protegem, mudando de cidade para evitar a convivência com pessoas preconceituosas e para evitar também que sua filha seja alvo de curiosidade e exposição. Com o decorrer da película fica possível perceber que a mãe opta pela cirurgia, talvez para poupar a filha dos transtornos sociais de se possuir dois sexos, enquanto seu pai é contra o método cirúrgico, preferindo que a filha escolha quando quiser o que realmente deseja ser/tornar. Alex tem 15 anos e está passando pela fase das descobertas, angústias, dúvidas; sentimentos que a maior parte dos adolescentes devem experimentar nessa fase. Se não fosse, obstante, o fator de que a garota não é somente mulher, não é somente homem, é os dois. No decorrer do filme, a garota conhece Álvaro, também adolescente. Eles se beijam e transam, e no momento do sexo, Alex penetra o garoto. Neste contexto, a história de Alex vem ao encontro do texto de Anne Fausto- Sterling (Dualismos em Duelo), quando, ao relatar o caso da atleta Patiño e da questão da ambiguidade sexual, questiona: Mas porque deveríamos nos importar se uma mulher (definida como tendo seios, vagina, útero, ovários e menstruação) tiver um clitóris suficientemente grande para penetrar a vagina de outra mulher? 8 (Fausto-Sterling, 2002, p.27) Sabemos que questões como a da interssexualidade subverte a matriz heterossexista, tão impregnada em nosso cotidiano e cultura, que acaba por ser naturalizado como permanente, como correto, como ponto de referência. O sujeito que vier ao mundo portando dois sexos, deverá sofrer correção para que seu corpo seja normalizado, e siga o fluxo das práticas reguladoras das coerências de gênero. Sobre esse contexto, Jane Flax expõe: Por meio das relações de gênero, 8 FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. Cad. Pagu, 2002, n.17-18, p.27. 3

dois tipos de pessoas são criados: homem e mulher. Homem e mulher são apresentados como categorias excludentes. Só se pode pertencer a um gênero, nunca a o outro ou a ambos. 9 (Flax, 2002, p.228). Dessa forma, corpos que não correspondam ao ideal normativo são ditos por Judith Butler como corpos abjetos. Por abjeto, Butler explica: O abjeto significa aqui precisamente aquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito. 10 (Butler, 2001, p. 155) Butler escreve também sobre as identidades subversivas, que certos tipos de identidades de gênero parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas [...], e que sua persistência e proliferação criam oportunidades críticas de expor os limites e os objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem de gênero. 11 (Butler, 2001, p.39). Neste sentido, Alex estava no entre-lugar por não corresponder às categorias dos gêneros coerentes. Quando a personagem central escolhe portar os dois sexos, escolhendo o não escolher, para a sociedade ela se torna uma afronta, por bagunçar com a ordem pré-estabelecida por essa matriz dominadora e coerente. Ao negar a cirurgia e os hormônios, Alex está performatizando o gênero, assumindo sua dupla sexualidade. O corpo será o lugar onde a história de Alex se escreve (e se inscreve, como diria Foucault), ou, como diria Bourdieu, o mundo constituirá o corpo e o corpo constituirá o mundo a partir do momento em que se torna o local que fará surgir a resistência à ordem normativa. O filme XXY traz diversas reflexões a respeito da sexualidade, das matrizes discursivas, de como podemos através de conceitos cristalizados em nossa cultura tornar um relato como o de Alex, como o de Álvaro, como o de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo afora uma história de drama, que ainda precisa ser revista, debatida, descristalizada. 9 FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: Heloísa Buarque de Hollanda. Pósmodernismo e política. RJ: Rocco, 1991, p. 250. 10 BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre limites discursivos do sexo. In: Guacira Lopes Louro. O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: autêntica, 2001. p.155. 11 BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre limites discursivos do sexo. In: Guacira Lopes Louro. O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: autêntica, 2001. p.39. 4

Referências BOURDIEU, Pierre. O conhecimento pelo corpo. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 157-198. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre limites discursivos do sexo. In: Guacira Lopes Louro. O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: autêntica, 2001. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2004. FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. Cad. Pagu, 2002, n.17-18, pp. 9-79. FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: Heloísa Buarque de Hollanda. Pós-modernismo e política. RJ: Rocco, 1991, p. 250. NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Florianópolis, 2000. Estudos Feministas, v. 8, n.2, pp. 9-41. SELLIER, Geneviève. A contribuição dos gender studies aos estudos fílmicos. Tradução de Liliane Machado. Revista eletrônica LABRYS, número 1-2, julho/dezembro 2002. Disponível em <http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/> Acesso em 10 jun 2004. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil para os estudos históricos? In: Guacira Lopes Louro. Educação e Realidade. Porto Alegre, 1990. V. 16, n. 2, p. 5-22, dez. RIBEIRO, Andressa de Freitas. O corpo na cultura e a cultura no corpo: uma breve reflexão sobre o corpo e a categoria gênero. II Seminário Nacional de Sociologia e Política, setembro 2010. Disponível em: <http://www.seminariosociologiapolitica.ufpr.br/anais/gt12/andressa%20de%20freitas%20ribeir o.pdf.>. Acesso em: 11 nov 2012. When the body erases boundaries: Queer perspective on the filmic narrative of XXY. Abstract: This paper is result of the subject "Estudos Literários: Gênero, Identidade, Etnias e Representações" presented by Claudia de Lima Costa. The present paper analyses the audiovisual production XXY, by director Lucía Puenzo, in relation to gender and sexuality. It is the main intention here to debate the understanding of the body that deviates from the normative matrix, pictured in the movie as an odd body, one that is out of social standards. Studies reference to feminist researchers of some types of gender identity and the concept of abject bodies Butler (2001); the duelling dualisms and representations of feminine and masculine Anne Fausto Sterling (2000); and the influence of regulatory practices of gender coherence Flax (2002). Findings indicate a complex web of values and prejudices present on the more normative discourses, that turn out to sustain the multiplication of binarisms and the proliferation of 5

boundaries. Such results pin out the need for highlighting the debates that allow for further visibility of the subject. Keywords: Identity. Visibility. Binarisms. 6