PROCESSO PENAL E FALSAS MEMÓRIAS: REFLEXOS NO RECONHECIMENTO DE PESSOAS 1

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PROCESSO PENAL E FALSAS MEMÓRIAS: REFLEXOS NO RECONHECIMENTO DE PESSOAS 1 Maiara Müller Vincensi 2, Patrícia Borges Moura 3. 1 Projeto de pesquisa da monografia final do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ, apresentado como requisito parcial para a aprovação no componente curricular Metodologia da Pesquisa Jurídica. DCJS - Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais. 2 Aluna do Curso de Gradução em Ciências Jurídicas e Sociais da UNIJUÍ; mai_muller@msn.com. 3 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (UFSM). Especialista em Direito Público (UNIJUÍ). Mestre em Direito (UNISINOS). Professora do Curso de Graduação em Direito da Unijuí; Orientadora; pmoura@unijui.edu.br. 1. Introdução O presente trabalho tem como tema o fenômeno das falsas memórias e sua relação com o sistema processual penal brasileiro e, em específico, o meio de prova do reconhecimento de pessoas, objetivando a análise do seu valor probatório, considerando a possível existência de falsas memórias. O estudo das falsas memórias no meio jurídico processual e penal é de grande valia em um sistema de garantias. Apesar de já ser uma área na qual a Psicologia tem se debruçado há mais de um século, o Direito ainda parece caminhar lentamente no estudo das falsas memórias e sua implicação na produção probatória. Parte-se do pressuposto de que o juiz é o destinatário da prova, e provar quer dizer convencer o magistrado quanto à veracidade ou falsidade de fatos narrados no processo. O processo penal faz uso frequente da prova oral, sem considerar sua fragilidade. Assim, este trabalho tem sua importância no fato de que é primordial alertar os operadores do direito quanto à falibilidade da prova oral, em especial o reconhecimento de pessoas, visto que pode estar contaminada com lembranças falhas ou inexistentes. E em virtude dessa possibilidade de existência das falsas memórias, é necessário questionar: como o juiz deve valorar esse meio de prova quando fundamentar uma sentença condenatória? Isso, com vistas a um exercício mais justo no âmbito do processo penal brasileiro e pautado nas garantias constitucionais. 2. Metodologia A pesquisa é do tipo exploratório, utilizando-se de fontes bibliográficas físicas e virtuais, através do método de abordagem hipotético-dedutivo. Observou-se o procedimento de seleção de bibliografia atinente à temática, além de fichamentos da mesma para reflexão crítica acerca do material e, por fim, a demonstração das respostas encontradas através da escrita do trabalho. 3. Resultados e discussão

O atual processo penal excessivamente depende da prova oral para o convencimento do magistrado, sendo que este instrumento tem como requisito a lembrança de um fato, de um rosto, de características e de circunstâncias. O reconhecimento de um suspeito por testemunha ou pela própria vítima pode definir o rumo do processo, porém, é primordial que cautelas sejam tomadas para que não se cometa injustiças. Antes de analisar a prova do reconhecimento de pessoas e a sua relação com as falsas memórias, é prudente refletir sobre algumas questões periféricas, a começar pelo entendimento acerca dos princípios processuais penais inerentes à produção probatória e sua valoração no processo. Importante nesse sentido é o princípio da presunção de inocência, segundo o qual ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. De acordo com Aury Lopes Jr. (2006, p. 190), a partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Ou seja, a carga de provar a autoria e materialidade do crime compete ao acusador. Nessa mesma linha de pensamento, o autor Guilherme de Souza Nucci (2014) retrata que o princípio da presunção de inocência se integra ao princípio da prevalência do interesse do réu, também conhecido como in dubio pro reo. Desta forma, se garante que, quando pairar dúvida, sempre deve preponderar o estado de inocência, absolvendo-se o acusado. Decorrente da presunção de inocência, o silêncio do réu ou a não obrigatoriedade de produzir prova contra si mesmo constituem o conhecido nemo tenetur se detegere, princípio este também garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, LXIII. O silêncio do réu está consagrado também no Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto n. 768/1992 (Convenção Americana de Direitos Humanos), que foi agregado ao ordenamento jurídico brasileiro. Deste princípio decorre a exigência de que não pode haver condenação sem prova suficiente. O convencimento pode até se dar de forma espontânea, porém será legítimo para fixar sanções penais apenas quando fundado em lógica expressa na decisão, ou seja, quando fundamentado de maneira coerente. (GRECO FILHO, 2013). Outrossim, o princípio do contraditório é essencial para o pátrio sistema de garantias. Uma prova produzida sem o seu crivo não pode, em nenhuma hipótese, ser utilizada como fundamento de sentença condenatória, sob pena de cerceamento de defesa. Deve-se sempre oportunizar a manifestação da defesa, visto que isto é constitucionalmente garantido. De acordo com Capez (2014, p. 75), O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido (audiatur et altera pars). O contraditório é um princípio típico do processo acusatório, e não existe no inquisitivo.

Ainda, antes de adentrar na prova do reconhecimento de pessoas, é pertinente esboçar alguns conceitos acerca da prova no processo penal e do sistema de apreciação adotado no ordenamento jurídico pátrio. Prova é aquilo que, produzido na fase processual, será utilizado para formar o convencimento do magistrado para a condenação ou absolvição do acusado. Sobre o conceito de provas, tem-se que: Do latim probatio, e o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz (CPP, arts. 156, I e II, 209 e 234) e por terceiros (p. ex., peritos), destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. Trata-se, portanto, de todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com a finalidade de comprovar a verdade de uma alegação. (CAPEZ, 2014, p. 367). São objetos de prova todas as circunstâncias, alegações ou fatos referentes à lide sobre a qual existe dúvida. Capazes de influenciar na decisão do processo, na responsabilidade penal e na fixação da pena ou, se for o caso, medida de segurança, os fatos alegados precisam ser comprovados em juízo. (CAPEZ, 2014). O ordenamento jurídico brasileiro adota, como fundamento para valoração da prova, o sistema do livre convencimento motivado. O juiz é livre para apreciar a prova como bem entender, desde que sua decisão seja fundamentada. É o que traz a primeira parte do artigo 93, IX, da Constituição Federal: Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Neste mesmo sentido, tem-se o artigo 155 do Código de Processo Penal: O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Ou seja, o magistrado não pode embasar sua motivação apenas nos atos praticados em fase preliminar, devendo, antes, levar em mais elevada consideração as provas produzidas na fase processual, onde são, verdadeiramente, provas. Provas cautelares, não repetíveis e antecipadas são uma exceção a essa regra, em virtude da sua natureza urgente e de caráter emergencial. Quanto ao reconhecimento de pessoas, é o meio de prova pelo qual uma pessoa irá, através de processo mnemônico, reconhecer alguém ou algo que seja relevante em um processo criminal. Nucci (2014, p. 436) conceitua o reconhecimento de pessoas como o ato pelo qual uma pessoa admite e afirma como certa a identidade de outra ou a qualidade de uma coisa.. Pelos estudos de Fernando da Costa Tourinho Filho (2013), o reconhecimento é a mais falha de todas as provas, apesar de haver um procedimento previamente determinado por lei para sua execução. Isso porque existe a ação do tempo, por vezes a condição de observação não é boa, o

sujeito pode estar disfarçado, pode haver erros por semelhança, enfim, inúmeras questões que tornam o reconhecimento uma prova seriamente precária. Previsto nos artigos 226 a 228 do Código de Processo Penal, o reconhecimento pode ser de pessoas ou de coisas. O procedimento para o reconhecimento pessoal está descrito nos incisos do artigo 226, ou seja, as regras para a realização do reconhecimento estão previstas na lei, portanto não é um procedimento qualquer, que se realiza pela vontade arbitrária do juiz. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer reconhecimentos informais, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado. (LOPES JR, 2014, p. 701). Reforça Lopes Jr (2014, p. 703) que os cuidados legalmente previstos não são formalidades inúteis, mas constituem condição de credibilidade do instrumento probatório, refletindo na qualidade da tutela jurisdicional prestada e na própria confiabilidade do sistema judiciário de um país. Além de todo o rol de imperfeições e vícios inerentes à prova do reconhecimento de pessoas, recentemente alguns doutrinadores do meio jurídico têm dado importante atenção a um tema sobre o qual a psicologia já tem se debruçado há mais de um século: as falsas memórias. É pertinente questionar como a possível existência de lembranças não verdadeiras pode afetar o processo penal, principalmente no que se refere ao reconhecimento pessoal. Conforme Iván Izquierdo (2011, p. 9), memória significa aquisição, formação, conservação e evocação de informações.. É aquilo que se armazena na mente acerca de momentos vividos ao longo da existência de alguém. As memórias são suscetíveis de modulação através de emoções, de acordo com o nível de consciência e o estado de ânimo. Desta forma, se torna fácil aprender ou evocar algo quando se está alerta e de bom ânimo, e de outro lado, aprender qualquer coisa quando se está cansado ou estressado é tarefa árdua. (IZQUIERDO, 2011) A memória de longo prazo abarca informações que ficam armazenadas por mais tempo, podendo perdurar por horas, dias, anos ou mesmo décadas. Esta ainda pode ser dividida em memória procedural e memória declarativa. É a memória declarativa que registra fatos, eventos ou conhecimento, e é responsável pelo armazenamento de dados passíveis de serem declarados. (IZQUIERDO, 2011). É sobre este último aspecto da memória é que se devem dirigir as implicações jurídicas, pois não é possível armazenar imagens na mente como se armazena fotografias em um computador (DAMÁSIO, 2012). Porém, não somente o esquecimento é um risco, como existe a possibilidade do surgimento de falsas memórias na mente de quem precisa recordar algo. Lilian Stein (2010, p. 20) traz que: [...] a mesma memória que e responsável pela nossa qualidade de vida, uma vez que e a partir dela que nos constituímos como indivíduos, sabemos nossa história, reconhecemos nossos amigos, apresenta erros e distorções que podem mudar o curso de nossas ações e reações, e ate mesmo ter implicações sobre a vida de outras pessoas.

No tocante a implicações jurídicas, há sérias consequências que podem decorrer do fenômeno das falsas memórias quando da produção de provas orais, tal como é o reconhecimento pessoal. As falsas memórias podem surgir e se manifestar das mais variadas formas, podendo ser espontâneas ou sugeridas. As espontâneas, de acordo com Lilian Stein (2011, p. 23), ocorrem quando a lembrança e alterada internamente, fruto do próprio funcionamento da memória, sem a interferência de uma fonte externa a pessoa. A falsa memória espontânea ocorre internamente na mente do indivíduo, sem qualquer intervenção de terceiros. As sugeridas ocorrem quando se aceita uma informação falsa após o evento, e se incorpora essa inverdade na memória original, podendo acontecer esse fenômeno de modo acidental ou propositado. Após presenciar um acontecimento, há um transcurso de tempo no qual uma informação nova é apresentada como parte do evento original, o que resulta na redução das lembranças verdadeiras e aumento das falsas. Por ser diferente de uma mentira, questiona-se quanto à (im)possibilidade de se reconhecer a existência das falsas memórias, uma vez que a pessoa sinceramente acredita que viveu aquele fato, e na mentira ela está consciente de que o narrado por ela não aconteceu, mas sustenta a história por algum motivo particular. (ALVES; LOPES, 2007, p. 46). Trazendo para o direito todos esses estudos da psicologia, é preciso que se admita a necessidade de uma avaliação sobre o modo que tem se dado a coleta das provas embasadas na memória. Gustavo Ávila e Gabriel Gauer (2009) defendem que a interdisciplinaridade deveria ser melhor trabalhada no meio jurídico. Não apenas no âmbito da academia e da doutrina, mas a interdisciplinaridade, em especial com a psicologia, se faz mais necessária a cada dia no exercício prático da ciência do direito. Faz-se importante tecer este tema tanto para a segurança do processo penal como para conscientizar os operadores do direito, de modo que deve-se estudar a relação das falsas memórias com a propensão de sua formação nos contextos em que se dão os reconhecimentos pessoais, uma vez que lembranças não verdadeiras podem se formar através de entrevistas indutivas e perguntas tendenciosas. Além de perderem detalhes pelo esquecimento, os reconhecedores podem acrescentar outros que não existiam, pois foram contaminados pela mídia, por interrogatórios indutivos ou ainda, por terem sofrido algum trauma ao presenciar o ato, e em função disso, criam em sua mente memórias sobre coisas que nunca ocorreram. (ALVES; LOPES, 2007). Ademais, há o risco da transferência inconsciente, que ocorre na ocasião em que a vítima ou testemunha indica uma pessoa que viu, simultaneamente ao momento do crime, como autor do crime. (LOPES JR, 2014). Reside aqui um sério risco ao processo penal e uma grave insegurança jurídica, dado que se pode chegar ao ponto de condenar alguém que era inocente. O autor Daniel Schacter (2003) elucida que quando se trata de atribuição errada, as implicações no meio jurídico são cada vez mais graves e frequentes.

O autor Jorge Trindade (2011) refere que deve-se adotar a máxima cautela ao judicializar uma memória-fato, isto em virtude do risco de produção de injustiças, por exemplo, ao condenar o acusado com base somente no reconhecimento de pessoas, quando a memória era, na verdade, falsa. O reconhecimento deve ter sua valoração relativizada, carecendo de cautela pela parte do magistrado ao analisar esse meio de prova. Em hipótese alguma pode servir o reconhecimento, exclusivamente, de base para uma sentença de pronúncia ou condenação, sem a corroboração de outros meios de prova, justamente por efeito da presunção de inocência, do in dubio pro reo e, obviamente, da possibilidade da existência de falsas memórias. Dessa forma, como já mencionado, é mister no âmbito do processo penal brasileiro conscientizar os operadores do direito acerca da eventual presença de memórias contaminadas na mente daqueles que procedem ao reconhecimento pessoal, para que, ao exercerem suas funções no mundo jurídico, esses profissionais possam estar informados de todas as variáveis que circundam a produção de uma só prova, e que, desta forma, a cada dia menos injustiças sejam cometidas. 4. Conclusão Nesse contexto, pensa-se que seria mais prudente ao juiz, quando da apreciação do processo-crime, ao analisar o reconhecimento pessoal, deverá fazê-lo juntamente com o restante do conjunto probatório. Temerário é imaginar a condenação de alguém que nada tem a ver com o crime, com base em um único meio de prova - o reconhecimento pessoal. Portanto, entende-se que cabe ao magistrado uma análise profunda do caso concreto e das provas contidas nos autos, para que não fundamente a condenação com base somente no reconhecimento de pessoas, quando a memória do reconhecedor pode ser, na verdade, falsa. 5. Palavras-chave Processo penal. Reconhecimento de pessoas. Falsas memórias. Livre convencimento motivado. 6. Referências ALVES, Cíntia M.; LOPES, Ederaldo J. Falsas Memórias: questões teórico-metodológicas. Ribeirão Preto: Revista Paideia, Abr. 2007, vol.17, n.36, p.45-56. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/paideia/v17n36/v17n36a05.pdf> Acesso em 10 abr. 2015. ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel J. C. Falsas Memórias e Processo Penal: (Re) discutindo o Papel da Testemunha. UNIRITTER, 2009. Disponível em: <http://www.uniritter.edu.br/eventos/sepesq/vi_sepesq/arquivospdf/27981/2405/com_identificacao /sepesq-com-identificacao.pdf> Acesso em 02 abr. 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:<http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/con1988_13.09.2000/con1988.pdf> Acesso em 28 mai. 2015.. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm> Acesso em 28 mai. 2015. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. Trad. Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Cia das Letras, 2012. GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. IZQUIERDO, Iván. Memória. 2. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2011. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. SCHACTER, Daniel L. Os sete pecados da memória: como a mente esquece e lembra. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. STEIN, Lilian Milnitsky; et al. Falsas memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: ArtMed, 2010. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.