A CAMINHADA EDUCATIVA AGOSTINIANA: REGENERAÇÃO DO CORPO SOUZA, Mariana Rossetto de (PIBIC/UEM) PEREIRA MELO, José Joaquim (UEM) O presente texto tem como finalidade apresentar o pensamento de Santo Agostinho no que se refere às concepções de corpo e alma, para então refletir sobre as implicações destes conceitos em sua proposta educacional. Para isso, ganham destaque algumas obras agostinianas, entre as quais A Verdadeira Religião, Confissões e Solilóquios, fontes nas quais serão buscadas respostas às questões levantadas. Além delas, também serão utilizadas reflexões de alguns comentadores, listados nas referências, o que possibilitará uma melhor fundamentação do tema proposto. Primeiramente, é importante contextualizar o momento no qual Santo Agostinho formulou suas propostas, pois dessa maneira se pode compreender o que o motivou na elaboração de seu pensamento e quais eram seus objetivos. O período em que viveu Santo Agostinho foi caracterizado por uma transformação social do Ocidente Europeu, e em função disso o homem encontrava-se em conflito. O cristianismo se apresentava como uma doutrina que poderia apontar caminhos para esse homem em crise. Nesse cenário papel significativo tiveram os Padres da Igreja, entre os quais Santo Agostinho ganha destaque. Aurelius Augustinus viveu entre os anos de 354 e 430 d.c., tendo nascido em Tagaste, onde foi professor. Também lecionou em Cartago, Roma e Milão. 1
Foi adepto do maniqueísmo e do ceticismo, e as experiências que viveu antes de sua conversão ele as considerou mundanas. Converteu-se ao cristianismo somente no ano de 386, após ler algumas cartas de Paulo de Tarso e ter contato com Ambrósio, bispo de Milão. Após sua conversão, tornou-se presbítero, e mais tarde bispo de Hipona (Norte da África). Ele se considera arrancado de sua vida de pecado com a ajuda da graça divina. Em sua obra, percebe-se sua insistência em mostrar seu desejo de conhecer a Deus, afirmando que nada mais é necessário para alcançar a felicidade. Pode-se constatar, a partir daí, que as experiências pessoais de Santo Agostinho exerceram influência significativa em seu pensamento. Ganha destaque a preocupação do Mestre de Hipona com o homem sofrido de seu tempo. Na verdade, estão os homens reduzidos à extrema miséria (AGOSTINHO, 1992, p. 104). Santo Agostinho preocupa-se em atender às necessidades desse homem, direcionando-o para uma formação que esteja de acordo com o que era esperado pela e da sociedade cristã: a busca por uma caminhada de purificação, pois para ele o processo de santificação do homem era o principal objetivo da educação. Em seu pensamento é dado destaque ao corpo e à alma, e a regeneração do corpo passava pelo processo educativo. Dessa forma, ele entende o corpo humano como o responsável pela fraqueza do homem, considerando necessário que a alma o domine para que o homem alcance o ideal formativo. Ao contrário de Platão, que separa a alma e o corpo, acreditando ser este um cárcere no qual a alma está presa e do qual se livra com a morte, Santo Agostinho acredita que o homem só é um homem total devido à unidade entre seu corpo e sua alma. Entretanto, Agostinho atribui à alma uma posição superior com relação ao corpo, e considera que Deus é que dá a vida à alma, a qual se encontra unida à verdade divina. Para ele, é preciso que o homem se volte para seu interior para assim ser-lhe possível visualizar essa Verdade, já que Deus comunica-se pelas vias interiores da alma (SCIACCA, 1966). 2
Para Santo Agostinho, ao contrário do corpo, que é mortal, a alma é imortal, sendo a união com Deus o que lhe garante a imortalidade. Mas isso não significa dizer que o corpo seja mau. Segundo o filósofo, o corpo é bom, tendo em vista que a matéria também foi criada por Deus, e esse corpo só passa a ser mau quando a alma se deixa levar por ele, que é frágil e está sujeito às influências negativas do mundo. Não que o corpo seja mau por natureza, mas porque é vergonhoso revolver-se no apego aos últimos bens, quando nos é permitido apegar-nos a bens mais altos e deles fruir (AGOSTINHO, 1992, p. 119). Em função disso, a alma é que deve dominar o corpo, vivendo sua vida, observando-o e protegendo-o. Na concepção agostiniana, o corpo tornou-se a prisão da alma e a fonte do mal como conseqüência do pecado original. Relativamente ao corpo humano, era ele excelente em seu gênero, antes do pecado. Depois, porém, tornou-se débil e destinado à morte (AGOSTINHO, 1992, p. 60). Portanto, é necessário que o corpo também seja cuidado, pois a salvação, no final dos tempos, atinge o homem por completo. Segundo o Mestre de Hipona, alma e corpo têm composições diferentes, e por ser superior ao corpo, a alma é independente dele. Não é o corpo que sente, mas sim a alma através do corpo. Etienne Gilson (2007) afirma que, de acordo com Santo Agostinho, quando os objetos exteriores estimulam nossos sentidos, estes sofrem suas ações, mas a alma, sendo superior, não é influenciada. As sensações, então, são ações da alma, e não paixões às quais ela esteja submetida. Sendo assim, a alma utiliza-se do corpo como se ele fosse um instrumento. A partir do momento em que ela passa a estar sujeita ao corpo, afasta-se das coisas espirituais e se volta para a matéria. Santo Agostinho afirma que, quando isso acontece, o homem não consegue sair do estado de decadência em que se encontra. Nesse sentido, Agostinho considera que a perfeição do homem é alcançada mediante uma purificação do elemento corpóreo, com a ação da alma sobre ele. Para o filósofo, o homem deve afastar-se das coisas materiais que o 3
rodeiam e voltar-se para os bens espirituais, sendo preciso que controle seu corpo para que deixe de viver segundo sua carne e possa viver segundo seu espírito, o que confirmaria sua relação com Deus e o tornaria capaz de visualizar a Verdade divina. Somente uma coisa poderá ser ordenada: Uma fuga completa das coisas sensíveis. [...] para voar das trevas à luz, esta que não se mostra aos encarcerados na prisão do corpo, a não ser quando dele nos libertamos. Desta forma, quando nada terreno o atrair, acredita-me, verás o que deseja (AGOSTINHO, S/D, p. 57). De acordo com Santo Agostinho, a Verdade divina encontra-se na alma, mas é preciso que esta esteja apta para receber a iluminação proveniente de Deus e, assim, contemplar essa Verdade. O Doutor de Hipona afirma que Deus é a fonte do conhecimento verdadeiro e que, para alcançar esse conhecimento, o homem deve estar preparado, devendo o corpo submeter-se à alma. Apesar de ter sido o livre-arbítrio o responsável pela degradação a que o homem chegou, Santo Agostinho acredita que a alma não pode salvar-se dessa situação só com as próprias forças. Não basta a vontade do homem para se livrar do pecado, pois ele é incapaz de se reerguer sem o auxílio da graça vinda de Deus. Para Santo Agostinho, a crença do homem de que possa alcançar a felicidade a partir da realidade mundana prejudica o processo educativo. Em seu entendimento, para superar essa situação o homem deve afastar-se do mundo exterior e recolher-se à sua interioridade, fazendo uma reflexão sobre a natureza de sua alma para entender sua própria identidade (PEREIRA MELO, 2002). Santo Agostinho distingue dois tipos de conhecimento, dos quais um provém dos sentidos e o outro não. Esse conhecimento não adquirido através dos sentidos são as chamadas coisas inteligíveis, que são os conhecimentos já presentes em nossa memória, como os juízos de valor. Com a auto-reflexão é 4
que o indivíduo percebe as coisas inteligíveis presentes na mente humana. Dessa maneira, os sentidos devem estimular a reflexão interior. Percebe-se aí uma aproximação com a teoria platônica da reminiscência, já que Platão também desvaloriza os conhecimentos provenientes dos sentidos. Para o filósofo grego, o verdadeiro conhecimento seria uma recordação de experiências anteriores. Entretanto, deve-se considerar que Santo Agostinho não poderia aderir completamente à teoria da reminiscência, pois ao acreditar em idéias de preexistência da alma iria contra a doutrina cristã. Para o Mestre de Hipona o conhecimento não é relembrado, mas sim, iluminado. Propõe, assim, em contraposição à teoria platônica, a teoria da Iluminação Divina. (ROSINA, 2008). De acordo com esta última teoria, o conhecimento seria alcançado mediante uma ação de Deus na produção das idéias. Dessa maneira, o homem recebe pela iluminação divina, e não pelos sentidos, o conhecimento das verdades eternas. Para Santo Agostinho, esse conhecimento é proveniente de uma fonte superior, imutável e eterna, ou seja, do próprio Deus. Não é o espírito que cria a verdade, cabendo-lhe tão-somente o papel de descobri-la, o que acontece por intermédio de Cristo. A educação, na concepção agostiniana, é caracterizada como uma busca interior do homem pela Verdade, podendo ser considerada também autoeducação. Para educar-se, o homem deve passar por uma peregrinação, a partir da qual o homem exterior dá lugar ao homem interior, de modo a tornar-se apto a contemplar as verdades divinas. O homem velho, apegado às coisas materiais, passa a negar esses bens temporais e mutáveis e a viver segundo sua alma, aproximando-se de Cristo e buscando o imutável e eterno. A auto-educação, de acordo com o Mestre de Hipona, implica a transformação do homem, de modo que ele possa encontrar em sua interioridade a essência do conhecimento; destarte ela é uma prática de purificação moral e exercitação intelectual. Nesse processo, cabe ao mestre o 5
papel de estimulador, devendo ele incentivar o aluno a buscar esse conhecimento, que só é alcançado mediante a aproximação com Deus. Para Santo Agostinho, o homem não é capaz de realizar sozinho a autoeducação, já que o próprio Deus é quem conduz esse processo. Os conhecimentos adquiridos pelos sentidos não são suficientes, o conhecimento de Deus é que representa a verdadeira sabedoria. De acordo com Santo Agostinho, a educação era resultado da insatisfação do homem consigo mesmo e de seu estado de inquietação, sendo a caminhada educativa uma busca de melhora pessoal desse homem, visando à felicidade completa, que só seria alcançada quando ele pudesse encontrar-se com Deus: [...] meu único desejo é possuí-lo; ponha-se ao meu alcance, meu Pai, e se encontrares em mim algum desejo supérfluo, me limpa para que eu possa vê-lo. [...] me converta plenamente a ti e retire todas as aversões que se oponham a isto, e ao tempo necessário para o esforço deste corpo, a fim de que se torne puro, magnânimo, justo e prudente, perfeito amante, conhecedor de tua sabedoria e digno desta habitação (AGOSTINHO, S/D, p. 29). Santo Agostinho acredita que o objetivo do homem é desfrutar do descanso no Pai, e que isso só pode ser alcançado a partir do momento que ele abre mão dos prazeres da carne e passa a viver segundo o espírito, de modo que possa confirmar sua relação com Deus. O Doutor tenta direcionar o homem de seu período, indicando-lhe uma conduta moral de purificação que deveria ser seguida para que ele pudesse contemplar a Deus e tornar-se o homem santificado. Assim, seu pensamento não se ateve ao aspecto filosófico-teológico, sendo ele também sistematizador e um dos maiores responsáveis pelas concepções educacionais e culturais não só de seu tempo, mas também do período que o sucedeu, a saber, a Idade Média. Em vista do amplo sistema educativo proposto por ele, sua influência não acabou com o fim da Medievalidade, mas continuou ao longo da história do cristianismo e chegou até os dias de hoje. 6
Esse exercício de diálogo com o passado é importante em vista da possibilidade que se abre para a compreensão das atuais discussões acerca da educação. Ao estudar as propostas educativas de Santo Agostinho, levando-se em conta o período no qual elas surgiram e as concepções que influenciaram suas formulações, pode-se identificar o que foi mantido, eliminado e alterado até hoje e compreender de maneira mais clara a educação como é vista na contemporaneidade. REFERÊNCIAS AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. 2. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).. Solilóquios. São Paulo: Escala, S/D. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal 36). BOEHNER, P.; GILSON, E. Santo Agostinho, o mestre do Ocidente. In:. História da Filosofia Cristã: Desde as origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1970. CAMBI, F. Santo Agostinho: O mestre da pedagogia cristã. In:. História da Pedagogia. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1999. CAPORALINI, J. B. Reflexões sobre O Essencial de Santo Agostinho. Maringá: Chicletec, 2007. GILSON, E. O platonismo latino do século IV. In:. A Filosofia na Idade Média. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. HAMMAN, A. Agostinho de Hipona. In:. Os padres da Igreja. 3. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980. MARROU, H. Santo Agostinho e o agostinismo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1957. PÉPIN, J. Santo Agostinho e a Patrística Ocidental. In: CHATELET, F. (Dir.). História da Filosofia: Idéias, Doutrinas. Vol. 2 A Filosofia Medieval: do século I ao século XV. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. 7
PEREIRA MELO, J. J. A educação em Santo Agostinho. In: OLIVEIRA, T. (Org.). Luzes sobre a Idade Média. Maringá: EDUEM, 2002. PEREIRA MELO, J. J.; ROSINA, D. A Teoria Agostiniana do Conhecimento ou da Iluminação Divina. Revista Unissa, v. 2, p. 41-54, 2006. ROSINA, D. Corpo e educação: o diálogo entre as concepções de Epicuro, Sêneca e Santo Agostinho. Maringá, 2008. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação Programa de Pós-Graduação em Educação) UEM, Maringá. RUBANO, D. R.; MOROZ, M. O conhecimento como ato da iluminação divina: Santo Agostinho. In: ANDERY, M. A. et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. 10. ed. Rio de Janeiro: Garamond; São Paulo: EDUC, 2001. SCIACCA, M. F. Santo Agostinho. In:. História da Filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1966. 8