Inventários post-mortem: documentos de vivências senhoriais



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Transcrição:

Inventários post-mortem: documentos de vivências senhoriais Lina Maria Marrafa de Oliveira Escola Superior de Artes Decorativas, FRESS Bolseira do Projecto: A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro, (Sécs. XVII, XVIII e XIX), Anatomia dos Interiores Introdução De acordo com o que foi estipulado enquanto bolseira do Projecto: A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro, Séculos XVII, XVIII e XIX, Anatomia dos Espaços, coube-me a realização da pesquisa documental inerente ao conteúdo temático do referido Projecto. Neste âmbito, desde o início do mesmo, que teve lugar em 1 de Agosto do ano transacto, até à data desta primeira Apresentação (Maio de 2012) coligi e efectuei a transcrição paleográfica de um total de 48 Inventários, trabalho que decorrerá até ao final de Julho, elevando substancialmente este número 1. O objectivo deste levantamento é, fundamentalmente, a constituição de um corpus documental que venha a servir de base de trabalho aos investigadores ligados ao Projecto, assim como a todos e quaisquer especialistas e interessados nesta matéria. Inventários post-mortem Constituem uma vasta colecção de documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, outrora designada por Orfanológicos, que está integrada no fundo documental dos Feitos Findos. Estes inventários são, regra geral, listas de bens móveis, imóveis, semoventes, activos, passivos e fiduciários, pertencentes a um defunto, com os respectivos valores monetários atribuídos a cada objecto por avaliadores que podiam ser oficiais ou mestres, juízes ou negociantes, louvados ou ajuramentados, especializados nas diferentes artes, ofícios, manufacturas, técnicas e/ou materiais e redigidos por escrivães ou juízes. A sua elaboração tinha como finalidade a distribuição equitativa dos bens pelos vários herdeiros, era realizada em sede do Juízo dos Órfãos ou notarial local e foi tornada obrigatória no início do século XVI por D. Manuel, conforme o teor do Artigo 3º das suas Ordenações, e estiveram em vigor até 1832, quando, em 16 de Maio, tiveram início as reformas administrativas levadas a cabo por Mouzinho da Silveira, que lançou um Decreto sobre a reforma judicial, extinguindo a Casa da Suplicação, os Juízos dos Órfãos e vários cartórios. Criou-se, então, a Comissão dos Cartórios Extintos, cuja finalidade era a recolha e tratamento da documentação daí proveniente, e, em 1836, esta apresentou um relatório e listagens dos documentos coligidos, desta feita reorganizados nos seguintes fundos: Processos Cíveis, Processos Crime e Inventários, entregues na Torre do Tombo. 203

Os Inventários Orfanológicos resultaram, assim, desta recolha forçada e dizem, sobretudo, respeito ao século XVIII e às primeiras décadas da centúria seguinte, embora com muitas falhas, sendo escassos os exemplares seiscentistas. Isto deve-se a vários motivos: nos cartórios, os processos perdiam a validade ao fim de 20 ou 30 anos, conforme fossem cíveis ou crimes, e podiam, desta feita, ser eliminados, o que acontecia com frequência dada a exiguidade de espaço físico dentro dos cartórios para conter toda a documentação emitida; alguns cartórios da baixa de Lisboa foram total ou parcialmente destruídos em consequência do terramoto de 1755, perdendo-se muita documentação anterior àquela data; malgrado a obrigatoriedade da entrega de processos à Comissão, nem sempre isso aconteceu por estarem na posse de advogados, desembargadores ou juízes, ou por alguns escrivães terem preferido vender os documentos em vez de os entregarem; após a extinção da Comissão os processos que só então deram entrada na Torre do Tombo foram dispersos por outros fundos ou colecções; há documentos registados no catálogo que foram posteriormente requisitados e enviados para instâncias judiciais e não retornaram, outros processos, ainda, apesar de figurarem nos índices, nunca chegaram, de facto, a entrar no Arquivo da Torre do Tombo. Importância documental dos Inventários Estes inventários são uma fonte primordial para o conhecimento das vivências senhoriais em vários parâmetros, dentro dos espaços que lhe são próprios, já que são documentos possuidores de um conteúdo informativo muitíssimo vasto e significativo que proporciona um alargado e multidisciplinar campo de estudo, abarcando variados aspectos de índole histórico-artística, sociológica, económica e científica. São susceptíveis de abordagens globais ou sectoriais, podendo ser estudados em conjunto, buscando padrões, correlações e diferenças ou, individualmente, de uma forma generalista, ou aplicando uma repartição em tipologias de objectos que, por seu turno, podem ainda ser analisados em termos das matérias- -primas aplicadas aos mesmos, das formas, estilos, motivos decorativos, funções, estado de conservação, etc. Todos os itens podem, igualmente, ser alvo de estudos não só qualitativos mas também quantificados no que respeita ao número de objectos por tipo e/ou por divisão da casa, e relativamente aos seus valores monetários singulares, totais ou comparados que nos oferecem, por exemplo, os vectores e graus de incidência dos investimentos dos inventariados. Os Inventários post-mortem são ainda uma importante fonte para elaboração de glossários ou léxicos específicos, dada a enorme quantidade e variedade de nomenclaturas, não só respeitantes às peças de mobiliário e objectos utilitários e decorativos, como aos espaços em que estes se inscrevem, permitindo, inclusivamente, uma abordagem cronológico-evolutiva no que respeita à aplicação e significação das terminologias, sobretudo em relação às funcionalidades das diversas divisões da casa, de acordo com a época em que foi realizado o inventário. 204

Anatomia dos espaços Esta documentação é, então, um dos mais valiosos instrumentos de trabalho relativamente ao entendimento dos espaços, sua distribuição, articulação ou mera sequência dentro da casa, oferecendo, não raras vezes, pistas directas ou indirectas sobre as funcionalidades das inúmeras divisões, dimensões das mesmas (por exemplo: através do número de portas e janelas, e dimensões das esteiras e tapetes) e, obviamente, quanto ao seu recheio. No capítulo das divisões, os Inventários até ao momento transcritos não seguem uma linha de orientação comum ou sequer uniforme, dependendo muito da sensibilidade e interesse de quem os redige. Assim sendo, há alguns inventários sem qualquer tipo de referência aos espaços ou descrição da casa; outros que não aludem aos espaços, mas contêm uma descrição no final, normalmente no capítulo referente aos bens de raiz ; outros fazem algumas referências às divisões ao longo do inventário, relacionando algumas peças com as salas a que pertencem; outros agrupam apenas parte dos objectos por salas e, a partir de certo momento, deixam de o fazer, sem qualquer aviso, voltando a surgir apenas escassas referências às mesmas, ou nem sequer isso; outros, finalmente, agrupam as peças de forma sistemática e, por vezes, também ordenada sala a sala, podendo existir ou não ainda uma descrição no final. Em quaisquer destes últimos casos, as salas podem surgir elencadas apenas de acordo com uma sequência numérica: 1ª, 2ª, 3ª 18ª; ou parcialmente em ordenação numérica e o restante com designações específicas; ou ainda cada sala perfeitamente identificada segundo uma designação própria, por vezes relacionada com a função que lhe é ou foi inerente. Verifica-se que não existe uma sequência-tipo, ou fórmula rígida. Cada Inventário começa numa determinada divisão, que pode ser central ou periférica dentro da casa, embora seja habitual iniciar pelo denominado quarto de cima, entendendo-se o termo quarto como significante de piso. Aqui tanto pode aparecer em primeiro lugar uma câmara, como a sala principal, ou qualquer outra sala ou casa, ou até a guarda-roupa, ou mais raramente a tribuna, quando há ligação a uma capela que, por vezes, também possui uma Sacristia. Depois do quarto de cima, passa-se, normalmente ao quarto de baixo, cujo número de divisões parece oscilar entre 4 e 8, e, se for o caso, às águas-furtadas, terminando, invariavelmente, com a cozinha (podiam ser 2, a de cima e a de baixo) e a copa e áreas de serviços anexas, como a adegas e cocheiras, mencionadas apenas se contivessem recheio a inventariar. Sem querer fazer generalizações, o que parece ser mais comum é a existência de uma ou mais câmaras, que podem ser antecedidas e/ou intercaladas por antecâmaras, e ter junto um ou dois camarins e uma ou mais guarda-roupas e ainda um oratório. Estas divisões determinam claramente, no seu conjunto, a zona mais íntima da casa. 205

Na área mais pública encontram-se várias salas comunicantes, ou servidas por um corredor, que desembocam na sala principal ou sala do dossel, completadas com algumas salinhas, a saleta e a sala de espera. Por vezes há alusões a patamares. Relativamente às funções das diferentes divisões, estas só surgem esporadicamente de forma directa, como é o caso da sala de jantar, casa do notário ou sala do cartório, sala das visitas, casa de vestir, casa de dormir, sala de passagem, casa do bilhar, teatro ; outras são identificadas de acordo com a sua localização, ou por algo específico que as caracteriza em termos decorativos ou pelo seu recheio, como a casa do toucador, casa do Presépio, casa da chaminé, casa da porta, casas da varanda, casa dos retratos, câmara encarnada, camarim verde, antecâmara amarela. Para além das câmaras e salas há ainda a considerar a eventual existência de um escritório e de uma livraria, que chega a adquirir grande importância a ajuizar pelos extensos róis de livros que integram alguns dos Inventários, e onde podem igualmente estar depositados objectos ligados à matemática, física, geografia, e ciências náuticas, por vezes também reunidos e expostos junto com exemplares da história natural no denominado gabinete, que faz a sua aparição no século XVIII, de acordo com um crescente gosto pelo exótico e pelo coleccionismo. Nas águas-furtadas localizavam-se casas para criados, para familiares dos proprietários e os respectivos despejos. No piso térreo, por vezes regista-se a loja onde está o guarda-portão, loja de entrada e loja de receber. A cozinha e a copa podem ser apoiadas pela casa do cobre, casa do forno, despensa e casa do tinelo, onde os criados tomavam as suas refeições. As descrições dos bens de raiz que, por vezes, rematam os Inventários, nem sempre são muito elucidativas quanto à orientação ou articulação das divisões. Normalmente iniciam-se pela planta baixa e aqui pelo pátio de entrada ou de recebimento e pelas casas que o enquadram que são, maioritariamente, as áreas de serviços (cocheiras, cavalariças, palheiro, galinheiro) e acomodações para os criados. Segue-se o quarto de baixo e o quarto de cima, com o número de casas ou salas, sem especificações ou identificação das mesmas, ambos considerados como área de casas nobres. Se apenas houver um andar sobre o piso térreo, esse será o andar nobre. Nas águas-furtadas, se existirem, é igualmente apenas mencionado o número de casas. Quer seja no exterior, quer no interior, a escada é um elemento que é quase sempre descrito com grande pormenor em termos de materiais e de decoração, a revelar que esta funciona nitidamente como a espinha-dorsal da casa que põe em comunicação os diferentes pisos e dos seus patamares partindo lateralmente para as salas. Exceptuando a escada e o espaço que esta ocupa, são escassas as alusões à decoração integrada, dada a própria natureza dos inventários (destinados a 206

partilhas de bens), contudo, encontram-se algumas referências à mesma, o que também acontece no capítulo das benfeitorias, quando estas tiveram lugar e são registadas. É assim que encontramos algumas salas com tectos de estuque, revestimentos parietais de azulejos (no exterior e no interior) e algumas paredes guarnecidas de escaiola. A cozinha é, por excelência, a divisão da casa mais frequentemente referida e, por vezes, a merecer uma descrição detalhada, dado o seu carácter eminentemente utilitário e prático, tempo de ocupação e quantidade de serviços que lhe são inerentes, no conjunto das atribuições e vivências de todas as salas que compõem a casa. O recheio das casas senhoriais: bens móveis As peças que preenchem as salas são de natureza muito variada e constituem um espólio em que confluem bens herdados, próprios e adquiridos pelo defunto e seu cônjuge, sendo que, no que respeita aos inventários femininos, entram igualmente em linha de conta os objectos trazidos em dote, que deviam tornar a casa dos progenitores em caso do falecimento ocorrer ainda em vida destes, sendo, neste caso, separado e retirado do inventário destinado às partilhas. De uma forma geral, as peças surgem elencadas por grupos, categorias ou tipologias ou de acordo com os materiais aplicados às mesmas, iniciando-se, maioritariamente, com jóias, ouro, prata e casquinhas cuja quantidade e qualidade são demonstrativos de maior ou menor sentido de riqueza e ostentação. Aqui se incluem várias peças de adorno pessoal, condecorações, objectos decorativos e do uso da casa e ainda armas, alfaias e diversos objectos de culto, ligados ao oratório ou à capela da casa. Os relógios podem estar incluídos neste grupo ou constituírem um capítulo aparte. Relativamente aos móveis e trastes de madeira, estes não são apresentados segundo uma ordenação tipológica, salvo raríssimas excepções. O rol do mobiliário parece ser maioritariamente elaborado sala a sala, mesmo não existindo a identificação destas, e sem qualquer ordenação rígida. O número e qualidade dos móveis é notoriamente variável de inventário para inventário, revelando, deste modo, o grau de interesse, investimento e gosto dos inventariados. As listas de móveis com as respectivas descrições, mais ou menos pormenorizadas, de acordo com a sensibilidade e erudição dos avaliadores e escrivães, são susceptíveis de múltiplas abordagens e oferecem um vasto campo de estudo do mobiliário e seu uso, no que respeita, por exemplo, a tipologias funcionais (móveis para sentar, comer, deitar, escrever, expor, guardar, embelezar, rezar, jogar, etc.); materiais, técnicas e sua evolução (inúmeros tipos de madeira nacionais e estrangeiras, charão e acharoados, couros, palhas e palhinhas, embutidos, pregarias e ferragens); estilos, características, influências e transformações (dos torcidos e torneados do século XVIII às pernas de coluna da centúria seguinte). 207

Aos móveis podem seguir-se as louças que, para além do seu carácter eminentemente utilitário, constituem igualmente um marco de gosto e de ostentação, implicando um investimento significativo em muitos casos. Assim, alguns inventários revelam a existência de louças de aspecto mais modesto e de uso mais comum, mas outros apontam para a existência de inúmeros aparelhos ou serviços de chá e de jantar e peças singulares de grande valor e com decoração requintada, polícroma ou monocromática, lisa ou recortada, guarnecidos de ouro, originários da China, Japão, Malabar, Inglaterra, França, Saxónia, Itália (Veneza e Génova), Holanda, e também louça nacional da Fábrica. Os móveis e louças sanitárias e de higiene diária nunca constituem um grupo específico e encontram-se distribuídas entre as madeiras e as louças e as alusões aos mesmos são bastante escassas. Normalmente estes objectos localizavam-se nas câmaras, ou em pequenas divisões interiores, próprias para o efeito, como as salas de despejos, ou então latrinas no exterior. Os objectos mais comuns são as bacias e jarros de água-às-mãos, por vezes sobre um móvel de lavatório, as bacias de barba e de sangria, as tinas de tomar banho (que atingem, por vezes grande requinte e conforto, encaixadas em cadeiras e com coberturas de carneira e almofadas) e as caixas de retrete para alívio da natureza. Mais raras são as banquinhas de bidé, os urinóis de vidro e as bacias para pés. Nas salas era normal a existência de cuspideiras ou escarradores. Os vidros são em menor número que as louças e bastante menos valiosos, não obstante os cristais, os vidros lapidados e coalhados. Para além dos objectos de uso comum, havia peças de vidro que aliavam o utilitário à decoração como os castiçais, os deser e pirâmides para colocar sobre a mesa. As roupas da casa também denominadas roupa branca, surgem muitas vezes misturadas com as de vestir e englobam todos os tipos de roupa e panos de uso da casa, como colchas, mantas, lençóis, fronhas, panos de cobrir móveis, toalhas de mesa e guardanapos, com indicação dos respectivos tecidos, cores e dimensões, incluindo rendas e passamanaria, havendo ainda peças e retalhos de tecido por confeccionar, constituindo um capítulo de grande importância para o estudo dos têxteis e da sua utilização e origem. Na categoria das roupas surgem ainda, com frequência, os paramentos de cama (sobrecéu, rodapés e cortinas) dosséis, portas de cortinas, reposteiros e sanefas, mas estes panos de adorno de móveis e salas também podem aparecer registados no capítulo das armações que, de acordo com os inventários, são amplamente usadas e têm grande valor monetário. Na maioria eram compradas mas podiam, igualmente, ser alugadas aos armadores que as confeccionavam para determinados eventos, juntamente com fatos de máscaras, dispondo de grande variedade destas armazenadas em casa. As armações transformam o espaço, constituem o que podemos apelidar como uma vestimenta das salas, conferindo um dinamismo e uma valorística de ordem fortemente estética às paredes, que se animavam em cores, perspecti- 208

vas, figuras exóticas e cenas dramáticas, patentes numa rica e variada iconografia de carácter maioritariamente profano e lúdico. Constata-se a existência de diversos tipos de armações, que podem ser de âmbito mais simples ou mais elaborado. No primeiro grupo encontram-se os forros de parede com panos de papagaio, tecidos de damasco colorido, panos encerados ou pintados, couros dourados e coloridos com figuras, pássaros e ramagens, papel pintado, tábuas e placas de madeira com figuras e ramos. As armações mais complexas eram feitas com panos de Rás amovíveis, profusamente decorados com pinturas de paisagens, fábulas, figuras chinesas, vasos de flores, histórias de imperadores, de deuses da mitologia, de cavalaria e alegorias. Há ainda a considerar as sobreportas de talha ou com pinturas de países, com ou sem os respectivos apanhados de pano. Casos há em que as armações são registadas no capítulo das tapeçarias, quando este existe. No caso do arrolamento dos bens ser feito sala a sala este costuma finalizar com a identificação das coberturas do chão, que, à partida, é assoalhado ou ladrilhado, sobre o qual podemos encontrar alcatifas e meias-alcatifas de diversas origens (Índia, Pérsia, Arraiolos) lisas ou com flores; esteiras e esteirões de junco ou de esparto, seirões, tapetes de Arraiolos, da Índia e da Berbéria; e até oleados coloridos. Pinturas e esculturas De acordo com o conteúdo dos inventários, as pinturas têm um peso considerável no recheio das casas senhoriais da época em estudo e desempenhavam um papel de relevo no adorno de determinadas salas. Normalmente são enumeradas e descritas ao longo do inventário, distribuídas pelas diferentes divisões, ou então reunidas em capítulo específico, podendo ou não aí serem agrupadas por salas. Por vezes existem apenas alguns exemplares de âmbito religioso, sobretudo ligados ao Oratório, mas, noutros casos, o número de obras e as temáticas alargam-se substancialmente e chegam a adquirir um notável ónus de coleccionismo e de grande investimento, chamando à sua avaliação grandes pintores como André Gonçalves e Vieira Lusitano, eles próprios presentes nas colecções mais importantes que reuniam largas centenas exemplares em tela, cobre e tábua que recuam à época gótica, abrangendo iconografia religiosa e profana, especificamente temas do Antigo e Novo Testamento, hagiografia, mitologia, paisagens, alegorias, animais, bambochatas ou pintura de género, retratos, naturezas-mortas, etc., de inúmeros pintores nacionais e estrangeiros, incluindo os supracitados juízes-avaliadores e, por exemplo, Diogo Pereira, escola de Grão-Vasco, Ticiano, Rafael, Dürer, Rubens, Espanholeto, Palomino e muitos outros espanhóis, italianos, ingleses, franceses e flamengos. Para além das pinturas emolduradas, os inventariados possuíam ainda telas por emoldurar e, por vezes, grandes quantidades de gravuras, lâminas, desenhos e estampas (algumas chinesas), que podiam estar expostas ou guardadas em rolos. 209

As esculturas, sobretudo em barro e madeira, são em número consideravelmente mais reduzido e localizam-se fundamentalmente no Oratório (seja este uma sala ou apenas o móvel), Ermida ou Capela do Palácio. Outros objectos de colecção e os Cabinets de História Natural As armas brancas e de fogo estão quase sempre presentes nas listas de bens, por vezes em número considerável, a atestar uma actividade relacionada com o seu manejo ou um mero gosto de posse. No primeiro grupo surgem espadas, espadins, alfanges, floretes, facas-de-mato, catanas e languinhatas da Índia, com os respectivos vestidos de armas brancas, e do segundo fazem parte espingardas, pistolas, clavinas e bacamartes. Um objecto utilitário que, por vezes, surge em quantidade tal que aponta para uma hipotética colecção é o leque, feito de diversos materiais, com diferentes feitios, recortes e adornos ou simplesmente pintado com temáticas variadas. Verdadeiro coleccionismo, tão em voga no século das luzes, é a propositada reunião e exposição de objectos científicos numa sala específica que começou por ser a Livraria, onde se guardavam mapas e cartas militares, globos terrestres e celestes, instrumentos náuticos, matemáticos e de óptica. Estas colecções foram alargando o seu âmbito à história, às ciências naturais e a tudo o que era exótico e para a exposição das mesmas criaram-se então outros espaços dentro das casas senhoriais, os denominados Gabinetes, que se constituíram como génese dos museus, onde se podiam observar todo o tipo de fósseis, minerais, sementes, bolbos e raízes de plantas de vários países, mostruários de madeiras, mecanismos automáticos, esqueletos humanos e de animais, ninhos e ovos de pássaros, peles de répteis, animais embalsamados, embriões, búzios e conchas, corais, lavas de vulcões, pedras preciosas, modelos de navios, moedas antigas, armaduras, etc. Os objectos da copa e cozinha As listas dos bens móveis que constituem o recheio das cozinhas oferecem uma visão bastante elucidativa do grau de abastança das casas senhoriais. Aqui é normal os utensílios aparecerem elencados de acordo com os materiais que os constituem, como é o caso do arame, estanho, latão, ferro e cobre. Para além dos inúmeros tachos, bacias, escalfadores, caldeiras de aquentar água, colheres, conchas, cutelos, marmitas, púcaros, caçoilas e caçarolas, chocolateiras e cafeteiras, surgem os espetos e engenhos de assar, fogões e fogareiros, fornos e fornalhas com grades, sobretudo nas casas mais ricas, alguns destes especialmente referenciados nos casos em que existem descrições mais detalhadas das cozinhas integradas no registo dos bens de raiz, no final dos inventários. Carruagens e seus complementos Surgem apenas em alguns dos inventários já transcritos, pois implicavam um investimento e dispêndio contínuo muito avultado, que nem todos podiam 210

suportar, uma vez que supunha a existência de cocheiras, cavalariças, dependências para guardar os arreios, selas e todos os demais pertences das carruagens, vários cavalos e/ou machos e os alimentos para os mesmos e criados específicos para o seu serviço. Constata-se a existência de uma grande variedade destes meios-de- transporte, desde os mais ricos e complexos, aos mais simples, para diversos fins. Deste modo, registam-se coches de vários tipos, como castelhanos e romanos, berlindas, pacabotes ou sacabotes, caleças, seges, traquitanas, liteiras, cadeirinhas, estufas, carros e carrinhas, muitas vezes descritos com grande pormenor técnico, mecânico e decorativo, incluindo as ferragens, tecidos, estofos, pinturas e até mesmo a forma como a caixa se articula com os jogos das rodas. O estar na moda : Para além de referências sistemáticas ao estado de conservação dos objectos inventariados, deste o novo ou em folha, ao velho e com muito uso, passando pelo usado, pouco usado e em bom uso, por diversas vezes os bens móveis são ainda adjectivados com termos alusivos à sua modernidade ou antiguidade em termos estilísticos, reveladores do tipo de investimento ou de aproveitamento do mobiliário, mas também de certas atitudes que têm a ver com uma maior ou menor preocupação de requinte ou com um sentido mais ou menos prático e utilitário dos possuidores, o mesmo se passando relativamente às questões da moda e ao que vinha de fora. Daí as alusões a móveis da moda e outros que se não costumam já, assim como a vários objectos que se consideram à moderna, à francesa e à inglesa. Considerações finais Esta investigação, transcrição e compilação documental em curso vai, indubitavelmente, proporcionar um vasto campo para investigação a ser explorado em âmbitos muito diversificados, que documentarão de forma ímpar certos aspectos das vivências senhoriais numa espacialidade adequada, e que foi evoluindo em termos estruturais, decorativos e funcionais. A mesma irá prosseguir, procurando granjear o maior número possível de testemunhos e alargando o seu campo de acção a outro tipo de documentos, como descrições de festas, registos de obras, memórias, descrições de casas, na maioria existentes em Arquivos Particulares e outros fundos documentais, pois só assim se garantirá uma abordagem fidedigna da temática em estudo. Notas e referências 1. Até ao final da referida bolsa (31 de Julho de 2012) foram transcritos 76 Inventários. 211