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Revista Direito e Práxis E-ISSN: 2179-8966 direitoepraxis@gmail.com Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil Hillani, Allan M. Entre o medo e o ódio: uma resenha de O ódio à democracia de Jacques Rancière. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014. Revista Direito e Práxis, vol. 6, núm. 12, 2015, pp. 683-687 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350944514021 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

683 RESENHA Entre o medo e o ódio: uma resenha de O ódio à democracia de Jacques Rancière Mestrando em Teoria e Filosofia do Direito pelo Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Título: RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014. Artigo recebido em 26 de maio de 2015 e aceito em 26 de maio de 2015.

684 A repressão estatal aos protestos de Junho de 2013, a barbárie elitista após as últimas eleições, ou os pedidos de volta da ditadura militar têm uma coisa em comum: a ideia de que somos democráticos demais. A sociedade democrática, que prega o individualismo egoísta ilimitado, se converte no seu oposto, o mais puro totalitarismo popular, afinal, a democracia se caracteriza por representação, leis e instituições fortes, e não pelo abuso do poder do povo. É precisamente sobre essa forma de enxergar o mundo e a política, sobre o que é a democracia e como ela é condenada contemporaneamente, que trata O ódio à democracia, o último livro de Jacques Rancière publicado no Brasil. Jacques Rancière é um dos principais nomes da filosofia política contemporânea. O pensador, que já foi um dos principais discípulos de Louis Althusser (e que rompeu com seu mestre depois de Maio de 68), hoje desenvolve uma teoria polêmica baseada em um igualitarismo radical e em uma releitura do marxismo e da filosofia política clássica de Platão e Aristóteles. Sua conclusão é bastante incomum: tudo o que geralmente conhecemos por política de política não tem nada. A política se dá, justamente, na discussão sobre os seus termos, na discussão sobre o que é ou não político. Geralmente consideramos a política como sendo as instituições, os processos de governo, a representação, o exercício do poder, etc. A isso Rancière dá o nome de polícia. Não se deve confundir, no entanto, essa polícia com o que ele chama de baixa polícia, as instituições policiais, os aparelhos repressivos do Estado: deve- se recuperar o conceito ampliado original de polícia que Michel Foucault desenvolveu no final dos anos 70, a ideia de polícia como ordenação, como ordem policial. Ela é a constituição simbólica do social e sua essência reside na definição de um sistema de coordenadas que determina a lei que divide a comunidade em grupos,

685 posições sociais, hierarquias, funções, que delimita o que é visível e audível, o que é tolerável e aceitável. A lógica da polícia é a lógica de divisão do próprio e do impróprio dos lugares, a visão subjacente a toda hierarquia. Uma das premissas do pensamento de Rancière é, inclusive, a afirmação da contingência inerente a toda hierarquia e a toda a ordem, uma recusa fundamental à existência de qualquer embasamento para essas disposições. Rancière parte de uma compreensão de igualdade intelectual radical entre as pessoas que ele apropria da pedagogia de Joseph Jacotot. Ele trata a igualdade como um pressuposto, o que não significa a cegueira liberal do todos são iguais perante a lei (que não se confirma na prática), mas sim uma igualdade subjacente a toda hierarquia imposta, uma igualdade que deve ser constantemente declarada, verificada e reivindicada nos momentos em que se percebe uma desigualdade. Nunca haverá, portanto, um único princípio da comunidade que legitime um governo baseado em leis supostamente inerentes ao estar junto das comunidades humanas (seja a capacidade física, intelectual, econômica ou a ligação com um divindade). Essa ideia é fundamentada no que ele chama de mentira de Platão, a ideia de que as pessoas são como os metais e a depender do seu material constitutivo haveria determinada disposição para alguma tarefa, a (única) forma pela qual Platão justifica as funções da República. A lógica da igualdade se opõe à lógica da polícia. Enquanto esta afirma que há lugares próprios e modos- de- ser próprios àqueles que estão nestes lugares, a igualdade afirma que toda essa construção é arbitrária, que toda essa ordenação poderia ser de outra forma. A declaração de igualdade, a afirmação de existência política daqueles excluídos do espaço público, é, para Rancière, a essência da própria democracia, a forma de exercício da política por excelência. A democracia é a expressão da lógica da igualdade pois ela se caracteriza

686 classicamente por ser o governo do demos, uma ordem fundada na característica inerente ao povo como a aristocracia se funda na aptidão dos melhores e a oligarquia na riqueza de alguns. Mas o título próprio da democracia (sendo o da oligarquia a riqueza e o da aristocracia a virtude) é não ter título algum, é ser indistinto e indiferenciado. A democracia como regime lida com o fato paradoxal de que o seu fundamento de governo, sua lei organizativa, é justamente não ter fundamento. Por isso, portanto, a democracia nunca é propriamente um regime de governo, ela é o elemento desestabilizador subjacente a todo regime de governo, ela denuncia em ato que o fundamento em que ele baseia sua legitimidade é uma ficção. O escândalo democrático consiste simplesmente em revelar isto: nunca haverá, sob o nome de política, um único princípio do qual se deriva o governo da comunidade. A democracia é sempre o que está aquém e além do governo: aquém, porque somente a partir da percepção de que todas as pessoas são efetivamente iguais e que todos os títulos e hierarquias (contingentes e provisórios por essência) se fundam nessa igualdade; além, porque a democracia é o constante questionamento desses títulos, o elemento desestabilizador e perturbador da ordem posta. Um governo que se propõe democrático tem de se basear na igualdade de todos e na indistinção dos governados para se legitimar como tal, mas o exercício radical dessa igualdade é o que, justamente, desestabiliza esse governo. O povo que ousa exercer sua soberania sempre foi um dos maiores medos dos governos ditos democráticos. Essa é, aliás, a razão principal de um ódio, de uma inconformidade raivosa que surge da constatação de que pessoas comuns possam reivindicar o poder decisório sobre o rumo de suas próprias histórias, que analfabetos e nordestinos tenham direito ao voto ou que professores e estudantes saibam melhor do que o governo sobre o a precarização da educação e

687 de suas condições de trabalho. Nesse sentido, o ódio também revela um medo: o medo de que as pessoas percebam que são efetivamente iguais e que não precisam de uma elite para governar. A democracia que conhecemos hoje é o produto histórico dessa constante tentativa de despolitização e dos conflitos gerados pelo povo organizado que se percebeu como igual, como legítimo e como capaz. Assim como a história da democracia é a história de sua restrição, também a história de sua imposição, de sua exigência e de suas conquistas, a suor e sangue das pessoas comuns que decidiram que podiam decidir, que tiveram a audácia de acreditar no lema da igualdade e da liberdade. A questão que fica em aberto após o nocaute teórico- político que O ódio à democracia e outras obras de Rancière nos apresenta é a velha e fantasmagórica questão leninista: o que fazer? Se a democracia é ingovernável, se não podemos sedimentá- la institucionalmente (ainda que, como o próprio admite, esta não seja indiferente a todos os governos, sendo alguns mais ou menos compatíveis com ela), o que nos resta fazer em termos político- institucionais? Se sonhamos com uma sociedade mais igualitária, em que o nascimento ou a riqueza não sejam os princípios determinantes da ordem, como colocá- la em prática? São questões em aberto deixadas pelo autor. No entanto, se assim não fosse, seria uma contradição performativa: a política não é o espaço dos reis- filósofos de Platão; a política é o espaço democrático do povo e só no conflito e na abertura para esse conflito que poderemos avançar nesse sentido. A resposta para a política nunca esteve nem nunca estará nos textos acadêmicos.