O Princípio de Hume é um princípio de abstração e os princípios de abstração têm a seguinte forma:

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1 - INTRODUÇÃO O objeto de análise e discussão da presente dissertação é o agora conhecido Princípio de Hume. Talvez, o leitor não esteja familiarizado com tal nomenclatura filosófica, mas certamente, pelo menos se conhece Frege e, principalmente, leu Die Grundlagen der Arithmetik (1884), reconhecerá tal princípio. Trata-se da segunda definição de número cardinal que Frege apresenta e rejeita em Die Grundlagen der Arithmetik, 62-7. O Princípio de Hume tem a seguinte forma 1 : F G(Nx Fx=Nx Gx F1-1G), onde Nx Fx significa o número que pertence ao conceito F ou, resumindo, o número de Fs e F1-1G significa que existe uma correlação 1-1 entre os Fs e os Gs (ou, como Frege diz, F e G são equinuméricos) 2. A leitura total do Princípio de Hume seria então: Para quaisquer conceitos F e G, o número de Fs é igual ao número de Gs se e somente se os Fs estão em uma correspondência 1-1 com os Gs. O Princípio de Hume é um princípio de abstração e os princípios de abstração têm a seguinte forma: α β(σα=σβ α β) onde Σ...x... é um operador formador de termos (termos singulares), α e β são as entidades do domínio original ou primitivo (α e β podem ser objetos, conceitos de primeira ordem, conceitos de segunda ordem, e assim por diante) 3 e é uma relação de equivalência (ou seja, uma relação transitiva, simétrica e reflexiva) sobre as entidades do domínio original ou primitivo. Note que a relação de equinumerosidade é uma relação de equivalência 4. 1 Até onde sabemos, foi Boolos (1990) que cunhou o nome Princípio de Hume. 2 Veja 2, seção 2.5.3. 3 No caso do Princípio de Hume, α e β são conceitos de primeira ordem. 4 Se F é equinumérico a G, ou seja, se existe uma relação R que coordena 1-1 os Fs e os Gs, e se G é equinumérico a H, ou seja, se existe uma relação S que coordena 1-1 os Gs e os Hs, então podemos construir, em geral, uma relação T que coordena os Fs e os Hs, a saber, a relação composta SoR. Aqui é claro precisamos provar: SoR é uma função e a inversa de SoR é também uma função. A prova não é difícil, mas não a executaremos aqui. Apenas indicaremos que ela é dada por redução ao absurdo. Assuma que SoR não é uma função, ou seja, existe pelo menos dois pares ordenados <x,y>, <x,z> SoR (y diferente de z). Veremos então que ou R ou S não é função, contrariando a hipótese inicial. O mesmo tipo de argumento pode ser usado para mostrar que a inversa de SoR é uma função; e também que SoR é uma injeção dos Fs nos Hs e a inversa de SoR é uma injeção dos Hs nos Fs. Com isso, mostramos que a relação de equinumerosidade é transitiva (simbolicamente F1-1G & G1-1H F1-1H). Se F é equinumérico a G, ou seja, se existe uma relação R que coordena 1-1 os Fs e os Gs, então podemos construir uma relação S que coordena os Gs e os Fs, a saber, a inversa de R. E, é claro, podemos construir uma relação R que coordena 1-1 os Fs e

9 Frege, em Die Grundlagen der Arithmetik 5, formula várias instâncias de princípios de abstração. Uma delas é o Princípio de Hume apresentado acima, mas há também o Princípio de Direção Para quaisquer retas a e b, a direção da reta a = a direção da reta b se e somente se a é paralela ou igual a b 6 (em símbolos: a b(d a=d b a*b)) 7, e o Princípio da Forma Para quaisquer figuras a e b, a forma da figura a = a forma da figura b se e somente se a é congruente ou igual a b 8 (em símbolos, a b(form a=form b a b)). Mais tarde, em Grundgesetze der Arithmetik (1 o volume 1893; 2 o volume - 1903), Frege apresenta um outro princípio de abstração a Lei Básica V para quaisquer conceitos F e G, a extensão do conceito F = a extensão do conceito G se e somente se os conceitos F e G são coextensionais (em símbolos, F G [{x:fx} = {x:gx} x (Fx Gx)]). O papel dos princípios de abstração é introduzir novos objetos (objetos abstratos) no domínio dos objetos. Vale enfatizar a seguinte questão: a relação de equivalência que ocorre no lado direito dos princípios de abstração divide o domínio original das entidades (as entidades relevantes à relação de equivalência) em classes de equivalências, de maneira que se duas entidades pertencem à mesma classe de equivalência, então será associado a estas entidades o mesmo novo objeto (objeto abstrato). É também interessante mencionar que o operador formador de termos Σ...x... pode ser entendido como uma função 1-1 entre as classes de e- quivalências e os objetos (abstratos). Os princípios de abstração implicam que esteja associado a toda entidade do domínio original (relevante à relação de equivalência) um objeto abstrato. Tome, por exemplo, o Princípio de Direção. Como toda reta (dado que tais retas existem) é paralela ou igual a si mesma, ocorrerá então a seguinte situação: (Da=Da a*a) (uma instância do Princípio de Direção) e a*a. Por lógica proposicional, segue-se, portanto, que Da=Da 9. E, por lógica de predicados, obtemos x(x=da). os Fs, a saber, a relação de identidade (aqui, outras relações poderiam ser escolhidas, mas a mais natural, parece, é a relação de identidade). 5 63-67. 6 Aqui as entidades do domínio original são retas (no caso, objetos). 7 A relação x é paralela ou igual a y é uma relação de equivalência (sobre as entidades indicadas - retas). 8 A relação x é congruente ou igual a y também é uma relação de equivalência (sobre as entidades indicadas figura).

10 Em última análise, o Princípio de Direção implica que toda reta tem uma direção (o objeto abstrato intimamente relacionado à reta). O mesmo ocorre com o Princípio de Hume, o Princípio da Forma e a Lei Básica V, ou seja, estes princípios implicam que todo conceito tem um número cardinal, toda figura tem uma forma e todo conceito tem uma extensão, respectivamente 10. Mas, é justamente neste ponto que alguns princípios de abstração falham. O caso clássico é a Lei Básica V. Como é bem conhecido, o sistema formal de Grundgesetze der Arithmetik é inconsistente 11 e a responsável pela derivação da contradição é a Lei Básica V 12. Em última análise, no caso da Lei Básica V, não é verdadeiro afirmar, por causa da contradição, que todo conceito tem um objeto (abstrato) intimamente relacionado a ele, sua extensão. Uma outra maneira de ver a contradição derivada da Lei Básica V é a seguinte: a relação de equivalência no lado direito dos princípios de abstração, como já dissemos, separa o domínio original das entidades em classes de equivalência. No caso da Lei Básica V, a relação de equivalência é a coextensionalidade. Na Lei Básica V, as entidades do domínio original são, como no Princípio de Hume, conceitos de primeira ordem, ou seja, conceitos sob os quais caem objetos. Para facilitar nosso argumento, vamos admitir que os conceitos de primeira ordem sejam conjuntos de objetos. Se o domínio dos objetos tem cardinalidade n (n finito ou infinito), então o domínio dos 9 Como afirmamos acima, o operador D...x... é um operador formador de termos (singulares), portanto Da é um nome de um objeto, no caso, um objeto abstrato. Na verdade, Da é referencial devido ao princípio do contexto. Veja 3. 10 Uma vez que a relação de equivalência é reflexiva, teremos, em geral, que α α e, portanto, Σα=Σα. E, assim, x(x=σα). 11 No dia 16 de junho de 1902, Frege recebera uma carta enviada por Russell na qual este lhe informara que uma contradição era derivada do seu sistema formal de Grundgesetze der Arithmetik. 12 Para derivar a contradição, considere o conceito Russelliano não ser membro de si mesmo, isto é, G(ξ={x:Gx}&5Gξ). Abrevie este conceito por Fξ. Portanto, o conceito não ser membro de si mesmo tem de ter, pela Lei Básica V, uma extensão, a saber, {w: G(w={x:Gx}&5Gw)}. Denote {w: G(w={x:Gx}&5Gw)} de j. E abrevie {w: G(w={x:Gx}&5Gw)} por {x:fx}. Então j={x:fx}. Agora suponha que j satisfaz a condição de não ser membro de si mesmo, isto é, Fj. Pela Lei Básica V, obtemos que {x:gx}={x:fx} (Gj Fj), para algum conceito Gξ. Mas, como j = {x:fx}, então temos {x:gx} = j (Gj Fj). Por lógica proposicional, temos ({x:gx} = j) Fj Gj. Novamente, por lógica proposicional, Fj (({x:gx}=j) Gj). Generalize universalmente, Fj H [({x:hx}=j) Hj]. Fj 5 H[({x:Hx}=j) & 5Hj], por lógica de predicados. Mas, 5 H[({x:Hx}=ξ) & 5Hξ] é a negação do conceito não ser membro de si mesmo, ou seja, 5Fξ. Portanto, Fj 5Fj. Suponha agora que j não satisfaz a condição de não ser membro de si mesmo, isto é, 5Fj. Uma vez que 5Fj é 5 H[({x:Hx}=j) & 5Hj] e este, por sua vez, é equivalente a H [({x:hx}=j) Hj]. Como 5Fj 5Fj, então temos 5Fj H [({x:hx}=j) Hj]. Instancie universalmente, então 5Fj [({x:fx}=j) Fj]. Como j={x:fx}, segue-se que 5Fj Fj. Contradição.

11 conceitos é o conjunto de subconjuntos do domínio dos objetos e, segundo o teorema de Cantor, este domínio terá a cardinalidade 2 n >n. O problema central da Lei Básica V é que as classes de equivalência produzidas pela relação de coextensionalidade têm a mesma cardinalidade que o domínio dos conceitos, ou seja, 2 n. Exemplificarei, para tornar mais claro o raciocínio: Seja o domínio dos objetos D={1,2,3}. Portanto, o domínio dos conceitos é D={Ø,{1},{2},{3},{1,2},{1,3},{2,3},{1,2,3}}. A relação de coextensividade dividirá o domínio D nas seguintes classes de equivalência, a saber, CD={[Ø], [{1}], [{2}], [{3}], [{1,2}], [{1,3}], [{2,3}], [{1,2,3}]}. Note que D e CD são conjuntos equinuméricos e, portanto, têm a mesma cardinalidade, 2 n. Uma vez que o domínio dos objetos (seja finito, seja infinito) é menor que o domínio dos conceitos de primeira ordem, então não existirá nenhuma função 1-1 das classes de equivalências formadas pela relação de coextensividade nos objetos. Isto significa que alguns termos formados através do operador {x:...x...} (quando este é anexado a um conceito (1 a ordem)), nem sempre terão uma denotação ou referência 13. A derivação da contradição em Grundgesetze der Arithmetik pôs fim à tentativa de Frege provar as verdades da aritmética a partir das leis da lógica e definições matemáticas adequadas 14 - esta tese é conhecida por logicismo 15. Em última análise, o objetivo de Frege era mostrar que as verdades da aritmética são analíticas, verdades que respeitariam o princípio de não-contradição. E qual era o papel da Lei Básica V? Existe uma série de interpretações com respeito a esta questão na literatura secundária sobre Frege. Uma dessas interpretações defende que as extensões de conceito são os objetos proeminentemente lógicos, uma vez que as extensões de conceito têm uma íntima relação com os conceitos que são os 13 Uma questão que poderia surgir aqui é a seguinte: uma vez que, para Frege, o papel dos princípios de abstração é introduzir novos objetos no domínio dos objetos, então a conclusão que nem sempre os termos formados a partir do operador {x:...x} têm denotação parece ser falsa. Isto porque a conclusão acima foi tirada sobre o domínio original dos objetos e não sobre o domínio estendido. Entretanto, mesmo se admitirmos isto, segue-se que o domínio dos conceitos de primeira ordem seria também estendido, de maneira que se o domínio estendido dos objetos tem a cardinalidade n, então o domínio estendido dos conceitos tem a cardinalidade 2 n. Isto se deve, é claro, ao caráter impredicativo da Lei Básica V. 14 É uma questão difícil saber o que Frege entendia por definição matemática adequada. Não deveremos tratar minuciosamente dessa questão na presente dissertação, mas, em 2, apresentaremos e comentaremos algumas definições matemáticas dadas por Frege na Begriffsschrift (1879). 15 Em 2, discutiremos o projeto logicista de Frege.

12 objetos 16 de estudo da lógica. Esta interpretação parece ser plausível, porque Frege, tentando executar o projeto logicista, tem de provar a existência de infinitos objetos (os números naturais), mas se estes objetos não fossem lógicos, então a tentativa fracassaria 17. O problema é que a noção lógica de extensão de conceito é problemática, devido à contradição derivada da Lei Básica V, o princípio de abstração que governava a introdução de novos objetos no domínio as extensões. Mas, Frege realmente precisaria abandonar o projeto logicista? Segundo Crispin Wright (1983), é possível defender a tese logicista, em termos análogos aos de Frege, em relação à aritmética. Em Die Grundlagen der Arithmetik, depois de apresentar e rejeitar o Princípio de Hume como uma possível definição de número cardinal, Frege o prova imediatamente da sua terceira e última definição de número cardinal (a definição explícita). Como Wright muito bem observou, os demais teoremas em Die Grundlagen der Arithmetik são derivados (na verdade, Frege dá esboços das provas) do Princípio de Hume. Wright então propõe adicionar o Princípio de Hume como um axioma a uma lógica de segunda ordem adequada (ou seja, uma lógica de segunda ordem com o esquema de axioma da compreensão impredicativo). É possível derivar da teoria resultante mais as definições Fregeanas de Zero, Número Natural e Sucessor, como Wright mostra, os axiomas da aritmética de segunda ordem de Dedekind-Peano (PA2) 18 19. Wright sustenta que existem boas razões para defender que a prova de PA2 da teoria resultante da adição do Princípio de Hume à lógica de segunda ordem (mais 16 Para Frege, objetos e conceitos são entidades de naturezas diferentes, por isso, na passagem os conceitos que são os objetos de estudo da lógica, colocamos as aspas na palavra objeto. Objeto, nessa passagem, deve ser entendido como a(s) entidade(s) que é (são) estudada(s) por uma determinada ciência. As entidades primordiais que a lógica estuda (para Frege, lógica é uma ciência) são os conceitos. 17 A Lei Básica V implica a existência de infinitas extensões de conceito que são os objetos intimamente ligados aos conceitos e, portanto, segundo Frege, elas seriam lógicas. Os números naturais (e também os reais) são definidos como sendo certas extensões de conceito. Assim, é possível provar a existência de infinitos números naturais que são objetos lógicos. Para uma maior discussão, veja Ruffino (1996; 2000). 18 Parsons (1964) fizera esta mesma observação. 19 Os axiomas da aritmética de Peano de segunda ordem são: (1) ù0, ou seja, zero é um número natural; (2) (x) (ùx ùsx), ou seja, todo sucessor de um número natural é também um número natural (a relação de sucessor é fechada sobre os números naturais); (3) (x) (y) (ùx & ùy & x y sx sy), ou seja, dois números naturais diferentes têm sucessores diferentes; (4) (x) (ùx 0 sx), ou seja, zero não é o sucessor de nenhum número natural; (5) (F) (((F0) & (x) (Fx Fsx))) (y) (ùy Fy), ou seja, a indução matemática. A aritmética resultante do Princípio de Hume + lógica de 2 a ordem + definições Fregeanas é chamada de Aritmética de Frege (FA). E a prova dos axiomas de PA2 a partir do Princípio de Hume é conhecida por Teorema de Frege.

13 definições Fregeanas de Zero, Número Natural e Sucessor) estabelece uma espécie de logicismo. Para defender o logicismo proposto acima, Wright teria de mostrar que (1) o Princípio de Hume é verdadeiro ou, pelo menos, consistente; (2) a lógica de segunda ordem é realmente lógica e, portanto, analítica 20 ; (3) o Princípio de Hume é analítico. Como dissemos na abertura do primeiro parágrafo dessa introdução, o objeto de análise e discussão da presente dissertação é o Princípio de Hume. Assim, não discutiremos (2) aqui. (1) já foi estabelecida por John Burgess (1984) e Boolos (1987b) 21. Assim a questão central da presente dissertação é analisar e discutir os principais argumentos que Wright oferece para mostrar que o Princípio de Hume é analítico, bem como apresentar e discutir as principais objeções que alguns filósofos (por exemplo, Boolos, Dummett, Shapiro e Weir) colocam sobre a analiticidade do Princípio de Hume. Em 2, apresentaremos alguns elementos centrais da filosofia da matemática de Frege que serão necessários para uma comparação com as idéias propostas por Wright. Em 3, discutiremos a proposta de logicismo defendida por Crispin Wright em 1983. E, por fim, 4 tratará de algumas objeções levantadas por Boolos, Dummett, Shapiro, Weir, entre outros, ao projeto logicista e das respostas de Wright a estas objeções. 20 Cf. Quine (1970). 21 Apresentaremos informalmente uma prova da consistência do Princípio de Hume. Como vimos acima, a relação de equivalência no lado direito dos princípios de abstração divide o domínio das entidades relevantes em classes de equivalência. Como na Lei Básica V, as entidades relevantes do Princípio de Hume são conceitos de primeira ordem. Tome o domínio dos conceitos de primeira ordem como sendo o conjunto de subconjuntos de objetos. Assim se o domínio dos objetos (finito ou infinito) tem cardinalidade n, então o domínio dos conceitos de primeira ordem terá cardinalidade 2 n >n. Porém, diferente da Lei Básica V, a relação de equinumerosidade divide o domínio dos conceitos de primeira ordem em n+1 classes de equivalência. Exemplificaremos: seja o domínio dos objetos D = {1,2,3}, portanto o domínio dos conceitos é D = {Ø, {1}, {2}, {3}, {1,2}, {1,3},{2,3}, {1,2,3}}. Contudo, as classes de equivalência sobre equinumerosidade serão CD={[Ø], [{1},{2}, {3}], [{1,2}, {1,3}, {2,3}], [{1,2,3}]}. Assim, o Princípio de Hume será falso em domínios finitos de objetos, mas será verdadeiro em domínios infinitos de objetos.