Paul Tillich e Martin Buber: um diálogo Gerson Tenório dos Santos A importância de Paul Tillich e Martin Buber há muito tem extravasado o campo em que suas idéias foram geradas. Muito mais que considerações meramente religiosas, seus estudos são essenciais para vários campos de estudo que têm o homem como centro. Não se tratam, porém, de estudos somente humanistas, no sentido que as ciências sociais têm dado ao termo, pois seus trabalhos têm conseqüências bem amplas que afetam também o estudo da natureza, do mundo, apontando para a necessidade de se tomar a totalidade do fenômeno da existência como inter-relacionado. Existir na concepção de Tillich e Buber significa estar-no-mundo, com o mundo, diante dos absurdos e paroxismos que este nos oferece. Porém, ao contrário do existencialismo de Heidegger e Sartre, isso não representa um niilismo, um afundamento resignado no nada como resposta filosófica à inexorabilidade da finitude humana. O existencialismo de Tillich e Buber reconhece os dados da realidade, a angústia e o sofrimento humano que estão presentes no existencialismo emergente do início do século, porém em seus sistemas filosóficos este termo ganha uma dimensão bem mais ampla, pois diz respeito à existência humana como um todo, em todos os tempos. Nesse sentido, o existencialismo do século XX é um caso especial da existência humana. Assim, para estes estudiosos a existência constitui-se numa ontologia que busca desvelar a essência mesma do homem não entregue a sua própria sorte, não dividida entre realismo e idealismo, mas como um ser que pela própria experiência e uso de suas faculdades conscientes sente que a explicação filosófica e científica é insuficiente para dar conta da ameaça constante do não-ser. Ou seja, no fundamento de toda existência humana encontra-se um aspecto religioso que afeta a todos, independente de serem ou não crentes em alguma religião. É esse fundamento que dá coerência à existência, independe dos percalços que a realidade nos coloca e os sistemas filosófico-científicos afirmam.
Paul Tillich e Martin Buber: um diálogo 55 A ontologia de Paul Tillich Analisemos primeiro a ontologia tillichiana a fim de entendermos como esta articula a existência. Para Tillich, ser homem implica uma coragem básica de ser. Coragem, neste sentido, é um conceito ontológico, pois Tillich afirma que a coragem de ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a respeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com sua auto-afirmação essencial (1991:3). Essencialmente existir implica, assim, uma coragem de ser por meio da qual o homem se afirma a despeito de tudo que possa impedir sua realização. Tillich reconhece que tais impedimentos (prazer, felicidade e mesmo a própria existência) também fazem parte do ser, mas ressalta que o ato de coragem como parte mais essencial de nosso ser prevalece sobre a menos essencial (1991:4). A coragem de ser nos impulsiona, portanto, para além dos obstáculos, dos sofrimentos que a existência nos coloca. Assumir esta coragem de ser é enfrentar a ameaça à auto-afirmação do homem. É enfrentar o vazio, o nada, que é a oposição do ser. É enfrentar, assim, o não-ser. A consciência de si enquanto ser traz para o homem também a consciência de sua contingência, de sua finitude e, portanto, há aí mesmo nesta raiz ontológica uma angústia vital que se entrelaça com a coragem de ser. Em seu livro A coragem de ser, Tillich identifica duas formas básicas que se configuram enquanto ameaça ao ser. Uma delas é o medo e a outra é a angústia. Com relação ao medo, Tillich ressalta que, mesmo tendo a mesma raiz ontológica que a angústia, na realidade não é a mesma que aquela. O medo tem objeto definido que pode ser enfrentado, analisado, atacado, tolerado. Portanto, pode-se agir sobre ele, e ao fazer assim o homem participa dele e pode torná-lo auto-afirmação. Já a angústia não tem objeto e portanto qualquer investimento contra ela é impossível. Tillich afirma, numa frase paradoxal, que o objeto da angústia é a negação de todo objeto. De acordo com as direções nas quais o não-ser ameaça o ser, Tillich distingue três tipos de angústia. A primeira ameaça do não-ser é contra a auto-afirmação ôntica, sendo relativa em termos de destino e absoluta em termos de morte. A segunda é contra a auto-afirmação
56 Gerson Tenório dos Santos espiritual do homem, sendo relativa em termos de vacuidade e absoluta em termos de insignificação. A terceira e última é contra a auto-afirmação moral, sendo relativa em termos de culpa e absoluta em termos de condenação. A distinção desses três tipos de angústia é confirmada, segundo Tillich, pela história da civilização ocidental. Ao final da civilização antiga, a angústia ôntica, ou seja, a angústia da morte, é predominante; ao final da Idade Média, a angústia moral e ao final do período moderno, a angústia espiritual. A despeito da predominância de um tipo de angústia, os demais estão presentes e são atuantes. Tillich ainda destaca que há duas formas de se afirmar a coragem de ser contra a ameaça do não-ser. Uma delas é a coragem de ser como uma parte que é a afirmação do indivíduo como uma parte da comunidade da qual participa. Sua auto-afirmação é uma parte da auto-afirmação dos grupos sociais aos quais pertence. A outra forma de afirmação é a coragem de ser como si próprio, que é a auto-afirmação do eu individual enquanto tal apesar de todos os elementos de não-ser que ameaçam sua existência. Porém é necessário que estas formas de afirmação, para ir além da múltipla ameaça do ser, adquiram uma potência de ser. Ao experimentar a tripla ameaça do não-ser, a coragem precisa estar arraigada numa potência que ultrapassa a potência de um eu (a coragem de ser como si próprio) e a potência do seu mundo (a coragem de ser como uma parte). Para Tillich, o fundamento ontológico da coragem daqueles que buscam transcender o mundo em que vivem, a fim de encontrarem a potência de serem eles mesmos e a coragem de serem o que está além da ameaça do não-ser, é religioso, uma vez que religião é o estado do ser apoderado pela potência do ser-em-si. Isso pode estar claro ou oculto, pode ser afirmado ou negado, mas fundamentalmente a raiz religiosa nunca está ausente por completo, porque tudo que é participa do ser-em-si, e todo mundo tem alguma consciência desta participação, em especial nos momentos em que experimenta a ameaça do não-ser (Tillich, 1991:122). É no contexto desta participação que, para Tillich, ocorre a fé. A fé, para ele, é o estado de ser apoderado pela potência do ser-em-si. Ao experimentar a potência de transcender por meio da coragem de ser, o que se experimenta é a fé. Em outras palavras, Tillich diz que ela é a
Paul Tillich e Martin Buber: um diálogo 57 aceitação existencial de algo incerto; é a aceitação existencial de algo que transcende a experiência ordinária (Tillich, 1991:134). A ontologia tillichiana deixa bem claro que toda relação existencial, prática do homem com o mundo e com outros homens é pautada pelo sagrado, na existência de uma força que de dentro da própria existência transcende o ego, impelindo o homem para a totalidade do ser-em-si. A ontologia de Martin Buber O ponto de partida de Buber também é a existência no sentido que tem para Tillich. Ou seja, o homem no seu aqui/agora buscando transcender a ameaça do não-ser por meio de uma potência divina. O fundamento da existência para Buber está na relação dialógica. Numa relação entre um Eu e Tu que se manifesta pela palavra, que, longe de ser mera representante de outros objetos, é o espaço ontológico da relação mais ampla entre o homem e o divino. Buber identifica na palavra o locus privilegiado em que o ser do homem se torna efetivo e atualizado. A palavra, neste sentido, não é conceito abstrato, mas experiência existencial em que o ser se instaura como revelação. Dentro desse escopo, Buber distingue duas palavras-princípio que traduzem duas atitudes bastante distintas do homem diante do mundo ou do ser. A primeira é a palavra-princípio Eu-Tu, e a segunda, a palavra-princípio Eu-Isso. A primeira diz respeito a uma atitude essencial do homem, um encontro, uma relação com um outro presente e direta em que se confirma a existência de ambos e o sentido maior desta existência (atitude ontológica). A segunda atitude se dirige ao mundo, à experiência prática no mundo como objetos passíveis de serem conhecidos objetivamente (atitude cogniscitiva). Buber afirma que o estatuto ontológico do Eu-Tu precede a palavra Eu-Isso, pois a contemplação, a intuição do ser é anterior ao conhecimento conceitual que trabalha com dados da realidade e os organiza em conceitos. Embora Buber reconheça a primazia da relação Eu-Tu como reveladora da existência do humano, isso não significa que a atitude Eu-Isso seja negativa ou inferior. Ela é também uma atitude fundamental, pois devido a ela o homem pode conhecer, interferir na realidade e constituir-se enquanto homem. É também uma atitude autenticamente humana. Em si ela não é um mal. Ela só se transforma em um malefício
58 Gerson Tenório dos Santos quando se torna absoluta para o homem, quando o homem é tomado por ela e pauta seus valores por seus ditames. Ao converter-se aos valores do Isso, o homem perde sua humanidade, seu fundamento ontológico de onde brota a vitalidade de sua existência. A esse respeito, diz Buber: Se o homem não pode viver sem o Isso, não se pode esquecer que aquele que vive só com o Isso não é homem. O Eu, segundo Buber, é relacional e não uma realidade em si. O Eu se define em relação a um Tu ou a um isso. Assim, para Buber, não existe um eu enquanto substância, um eu solipsista como o engendrado pelo cartesianismo. O Eu assume uma postura ontológica perante as palavras-princípio que ele pronuncia. Essa dualidade é fundamental para o homem para se explicitar sua divisão, o paradoxo de ser finito e infinito ao mesmo tempo. São pois as atitudes do homem frente às palavras-princípio que dão a dimensão da sua finitude ou infinitude. Em nossa experiência cotidiana no domínio da palavra Eu-Isso experenciamos, conhecemos, percebemos, ou seja, vivemos naquilo que Buber chama de âmbito dos verbos transitivos, no mundo das atividades que têm algo por objeto. Nessa relação o experimentar não participa do mundo, o mundo não se deixa experenciar. No domínio do cogniscitivo a palavra não tem a força do diálogo, do estabelecimento de uma relação verdadeira, que só é possível na pronúncia da palavraprincípio Eu-Tu. O reino do Tu não se reduz a coisas, a entes. Não se experencia o Tu. O Tu é totalidade, é horizonte sem limites. A este respeito diz Buber: Eu não experencio o homem a quem digo TU. Eu entro em relação com ele no santuário da palavra-princípio. Somente quando saio daí posso experenciá-lo novamente. A experiência é distanciamento do TU (1979:10). Buber enfatiza que o encontro com Tu dá-se por graça e não por meio de uma procura e na imediatez do instante sem qualquer mediação conceitual. A relação Eu-Tu é presentidade pura numa totalidade sem fragmentos. Na relação Eu-Isso, ao contrário, o Eu que vive na experiência, cercado de conteúdos, só conhece o passado, que é o mundo dos objetos. Embora reconheça que o homem não pode deixar de viver na objetividade do Eu-Isso, Buber destaca que o que é verdadeiramente essencial só pode se dar no eterno presente do Eu-Tu.
Paul Tillich e Martin Buber: um diálogo 59 Ao enfatizar a importância do diálogo, do poder da palavra como aparição da graça do Tu, Buber está trazendo à baila uma questão essencial para o homem contemporâneo. Nossa época é caracterizada por aquilo que ele chamou de o eclipse de Deus (título de um de seus livros), ou seja, é aquele período em que Tillich afirma ser predominante a angústia espiritual que leva ao sentimento de vacuidade e insignificação tão próprios do mundo em que vivemos. O homem moderno ciente da certeza da razão, do seu poder demiúrgico, da força dos instrumentos lógico-matemáticos que construiu para dominar a natureza, não vendo nenhum sustentáculo que pudesse comprovar a existência divina, decretou a morte de Deus e revestiu-se de poderes de um super-homem. Ao dar conta da existência humana por meio da dualidade fundamental que consiste dos pares opostos, mas complementares, Eu-Tu, Eu-Isso, Buber destaca que o fundamento ontológico desta existência centrada no eixo Eu-Tu, que é o antídoto para a vacuidade e a insignificação, só é possível porque o Tu, na sua totalidade, imediatez, inobjetivação, se realiza no homem, no outro da relação, como atualização de um Tu eterno. Não é necessário que saibamos quem é, como é o Tu eterno. Nem tampouco saber os diversos nomes que recebe em todas as culturas. Nem é necessário nele acreditar. Na realização da relação Eu-Tu, o que se revela na reciprocidade é presença do Tu eterno, fonte de todos os encontros e condição ontológica básica para a existência do homem. Na esfera do humano, o Tu pode tornar-se um Isso, porém o Tu eterno não pode como alteridade absoluta, o eternamente outro da relação, tornar-se um Isso. Na perspectiva buberiana, no face-a-face com outro homem, na força atualizante do diálogo, há uma comunhão entre Deus, o homem e o mundo. Ao enfatizar o caráter presentificante, indivisível, total e gratuito do encontro homem-mundo-deus, Buber rompe com as concepções imanentistas e transcendentalistas, realistas e idealistas que determinam a existência humana, visto que o fundamental é romper com o encanto da separação de um mundo que nos revela duplo. Essencialmente isso só é possível na aceitação do convite para o diálogo eternizante que o Tu eterno por meio do Tu nos dirige.
60 Gerson Tenório dos Santos A coragem de dialogar No diálogo dessas duas ontologias ficam evidentes alguns pontos de contato bastante importantes. Para ambos, o sagrado se manifesta no e com o mundo tal como ele é. A existência do homem como dual, num mundo de natureza dual é condição para a revelação do sagrado. Nesse sentido, a realidade não se constitui em ilusão ou o absoluto em mundo das idéias. Imanência e transcendência não são coisas isoladas. Deus não está no céu ou no interior do homem. É na inter-relação, no encontro, no diálogo, na entrega que se pode viver essa integração. Para ambos, assim, o fundamento do humano, a verdadeira humanidade do homem está numa ontologia do sagrado, num encontro com Deus. Sem isso, nada seria possível, nenhum conhecimento de si ou do outro, nenhuma perscrutação do mundo. A coragem de ser a despeito de qualquer obstáculo só pode se dar na aceitação do diálogo com o Tu eterno. As conseqüências dessas colocações dizem respeito ao homem como um todo e não só àquele interessado em religião ou teologia, pois na sua essência, esteja onde estiver, faça o que fizer, o homem se depara com o obscuro, com o mistério insondável que reveste os fenômenos básicos de sua existência como o nascimento, a morte, o sofrimento, a angústia. E ele buscará de uma ou outra maneira uma potência para transcender sua condição de ser dual, a tripla angústia de que nos fala Tillich. Este é o momento oportuno para aceitar do Tu o convite para o diálogo que sempre esteve aberto. BIBLIOGRAFIA BUBER, Martim. Eu e Tu. São Paulo, Cortez & Moraes, 1979.. Eclipse de Dios; Estudios sobre las relaciones entre religión y filosofía. México, Fondo de Cultura Económica. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 1994. DOURLEY, John. A psique como sacramento. São Paulo, Paulinas, 1985. HICK, John. Filosofia da religião. Rio de Janeiro, Zahar, 1970. MONDIN, Battista. Curso de filosofia. São Paulo, paulinas, 1987, v. 3. PADOVANI, Umberto & CASTAGNOLA, Luís. História da filosofia. São Paulo, Melhoramentos, 1994.
Paul Tillich e Martin Buber: um diálogo 61 TILLICH, Paul. A coragem de ser. São Paulo, Paz e Terra, 1991. NOTA Gerson Tenório dos Santos é doutor em semiótica pela PUCSP.