Fontes Orais e a Construção da Memória: O caso do município de Caarapó/MS Vânia Vieira Lopes 1 A partir de meados do século XX, mais especificamente a partir da década de 70, a Nova História possibilitou a emergência de novas metodologias, novos objetos e conceitos, as quais mostraram um leque de outras temáticas e métodos resultando em leituras subjetivas das fontes usuais do historiador vindo de forma crescente desde os anos 50 em diálogo com outras áreas de conhecimento acadêmico, dentro do campo historiográfico. Indo de encontro com estes apontamentos, uma discussão atual é a utilização da metodologia da História Oral (fontes orais) sendo o debate norteado a partir da confiabilidade desta fonte. Neste sentido, um dos grandes questionamentos é a sua estreita relação com o uso da memória. A memória sendo resultado de uma reconstrução psíquica/intelectual, dada a partir de uma seleção do passado em questão, é orientada a partir de um fio condutor, no caso das fontes orais, a entrevista dirigida a partir de um objeto de pesquisa. Contudo, esta seleção do passado (do depoente) envolve não somente as suas lembranças, mas também o contexto social, familiar em que o mesmo está ou estava inserido, podendo então, esta memória ser individual e/ou coletiva 2, sofrendo alterações constantes. Para Halbwachs 3 (1900), a memória individual não pode ser distanciada das memórias coletivas, pois o individuo não possui sozinho o controle do resgate sobre o 1 Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados; Mestranda; CAPES; vaniacpo@hotmail.com. 2 Pollak, parte da premissa de que a memória pode e deve ser entendida como um fenômeno coletivo e social, que está sujeito a constantes transformações. Sendo assim, tanto na memória individual quanto na coletiva, podem ocorrer marcos ou pontos invariantes, imutáveis, ou seja, elementos irredutíveis, onde a solidificação da memória impossibilitou a ocorrência de mudanças. São acontecimentos vividos pessoalmente, e/ou acontecimentos vividos por tabela, ou seja, vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer (POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5.n. 10, 1992, p. 200-212). 3 Para ele, a memória é um fenômeno social que se manifesta nos seguintes tipos: coletiva, individual, histórica. A primeira, que se poderia chamar de memória social, está relacionada a uma história vivida, na qual o passado permanece vivo na consciência de um grupo social. Esta noção é contraposta à história (memória histórica), que seria uma forma de conhecimento do passado, exterior ao domínio do vivido. Por seu turno, a memória individual será sempre um ponto de vista sobre a memória coletiva. (ibid, p.53-89).
passado, ela é constituída por indivíduos em interação, por grupos sociais, sendo as lembranças individuais resultado desse processo. Assim, a memória da pessoa, está vinculada à memória do grupo e a do grupo, a esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade, tendo como instrumento socializador a linguagem, assim ela torna-se importante para a transmissão da cultura local herdada, sendo constituída por acontecimentos vividos socialmente. Grande parte dos saberes da cultura popular são transmitidos através da oralidade, uma vez que não há registros escritos dos mesmos. Esses processos ocorrem de pessoa a pessoa, de pai para filho, de um grupo para outro, de geração a geração. Nessa forma de comunicação, a memória social exerce um papel fundamental, pois a preservação e a continuidade das tradições dos grupos dependem das lembranças dos seus membros. A transmissão dos valores culturais e da tradição ocorre através da memória social dos grupos que compartilham um mesmo tempo e um mesmo espaço geográfico (MORIGI, 2012, p.5). E mais, a memória é construída e organizada inconscientemente e/ou consciente, tendo uma relação direta com a identidade do sujeito, ou seja, pela representação que têm de si, ou que expõe aos outros, observando os padrões de aceitabilidade e credibilidade social, em que o mesmo esteja inserido, assim, a subjetividade está presente em seu discurso, pois a sua memória reagirá de acordo com os fatores sociais do presente que estão agindo sobre ele, trazendo a sua verdade, a sua visão do fato ocorrido, considerando o seu lugar ocupado no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios sociais, ainda que encubra o que realmente aconteceu. Segundo Pollak, há uma estreita ligação entre a memória e o sentimento de identidade, no qual é o sentido da imagem de si, para si e para os outros, sendo a memória um dos aspectos que fazem parte do sentimento de identidade individual ou coletivo, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (1992, p. 5). A pessoa que entrevistamos é ao mesmo tempo produto e produtora de toda uma rede em torno dela, e mesmo que o nosso objetivo de pesquisa seja apenas investigar um aspecto, toda essa rede de tensões e representações da realidade está presente, e vai atuar na dinâmica da entrevista. Além disso, cada um de nós vive constantemente negociando a autoimagem, com os outros e em função dos outros, em função daquilo que estão esperando, que estão pressionando. A entrevista não ocorre fora, mas dentro dessa
situação. Toma lugar entre os processos de negociação e renegociação da própria imagem. Oferece uma oportunidade para dar forma à memória pessoal. O entrevistado acreditava que pensava determinada coisa e, de repente, vai se descobrir dizendo algo novo, e isso obviamente vai modificar a maneira como ele se vê e até mesmo o seu comportamento (AUGRAS, 1997, p. 30). Todavia, esta subjetividade pode e deve ser entendida como parte da entrevista, sendo respeitada em sua especificidade, é preciso assimilar as distintas pluralidades de determinado evento, contexto histórico e social, que permita conhecer as relações sociais e as dinâmicas que se inserem ao objeto de estudo, e que fornece múltiplas verdades do mesmo objeto. Igualmente, [...] busca-se versões dos fatos, pressupondo a existência de lacunas espaciais e temporais, aceitando a subjetividade implícita no relato, tanto da parte do narrador, quanto do pesquisador que procede a sua coleta (LANG, 1996, p. 45). Neste sentido, ao pesquisar sobre o processo de povoamento da cidade de Caarapó (que teve seu inicio em meados da década de 1920, do século XX), deparei-me com relatos que apresentavam distinção e semelhanças entre si. Distinção pelo fato de que cada depoente traz entrelaçado em seu relato sua visão de mundo, realidade de vida, dentro do contexto social do período em questão; semelhante por apresentarem em seus discursos a noção de verdade coletiva, ou seja, consenso, em especial quando perguntado sobre um dos pioneiros, à figura do paraguaio Nazário de Léon, assim pode-se dizer que existe um trabalho de manutenção de coerência, unidade, continuidade e organização dentro da memória individual que reflete na memória social e/ou coletiva. Observa-se então o peso da tradição oral nestes discursos, tendo em vista que os depoentes representam em sua maioria a segunda, ou terceira geração dos primeiros moradores da localidade. Não obstante, é através destes depoimentos que se têm acesso a uma realidade definida pelas vivências de cada entrevistado. Sendo manifestado na seleção das experiências e dos espaços envolvidos nas lembranças narradas, que só podem ser interpretadas se relacionadas à vida do indivíduo entrevistado. Assim, os depoimentos devem considerados de acordo com a trajetória de suas vidas, quais papéis sociais desempenharam (e continuam desempenhando) dentro do contexto em que está inserido. Importante observar que, a memória enquanto construção social e outrora seleta nos apresenta com os relatos de seus depoentes, elementos
carregados de espontaneidade que pode estar impregnado de aspectos para o futuro. Segundo Smith, as fontes orais tornam visíveis as formas de vida coletiva que são difíceis (embora não sejam impossíveis) de documentar de outras maneiras. Hoje, como no passado, as pessoas criam e mantêm uma vida compartilhada imaginativa quando se reúnem e conversam, seja na mesa da cozinha, no restaurante ou no botequim, ou mesmo nos corredores da universidade. Elas compartilham suas histórias e seus relatos a fim de desenvolver um entendimento comum sobre quem elas são. Esses entendimentos informais e coletivos permeiam todas as decisões e também formam o pano de fundo de cada entrevista. Contos, pessoais e sociais ao mesmo tempo, fornecem evidências para a reconstrução das comunidades, das suas preocupações anteriores e dos conflitos do passado. A história oral permite a recuperação das ideias que foram importantes, mas não bem documentadas em papel ou fontes literárias (2010, p. 29). Uma contribuição das fontes orais é a multiplicidade de signos, sentimentos e significados, expressados pelo depoente ao pesquisador, o qual nem sempre são expostos no ato da escrita, elementos que propiciam ao pesquisador uma interação social e pessoal do objeto pesquisado. Por esse fato, muitos pesquisadores discordam da confiabilidade e cientificidade dos significados conferidos ao objeto da pesquisa com o uso da metodologia da História Oral, exatamente pelo uso de tais elementos mutáveis. Além disso, estas pluralidades servem como base, para o cruzamento de informações com fontes de outra natureza. É preciso ter em mente, que embora a opção do trabalho esteja nas fontes orais, não é possível fazê-la sozinha, é imprescindível a conversa com fontes de naturezas distintas. Um dos aspectos mais interessantes do uso de fontes orais é que não apenas se chega a um conhecimento dos fatos, mas também à forma como o grupo os vivenciou e percebeu. É de importância capital resgatar a subjetividade, mas é um grave erro passar a confundila com fatos objetivos. Esta aproximação critica ao testemunho oral consegue-se mediante dois procedimentos de caráter interativo: um, com a documentação escrita existente, e outro, com o resto do corpus de documentos orais. [...] O registro oral, de uma forma mais direta do que o escrito por aquilo que tem de involuntário no sentido de não selecionado para a posteridade, pode oferecer, eventualmente, estruturas de compreensão alternativas às elaboradas a partir do trabalho exclusivo com fontes escritas. O que parece evidente é que, pelo menos, podemos aceitar que pode e deve haver um diálogo, uma relação/inteiração dialética entre os dois (GARRIDO, 1992, p. 40). Esta relação dialética entre as fontes é pautada no fato de que para a pesquisa histórica, as fontes históricas não devem ser entendidas como superiores ou inferiores, independente de
sua tipologia. Alessandro Portelli adverte que a escrita e as narrativas orais não são fontes excludentes entre si, todavia complementam-se mutuamente, contendo particularidades e funções específicas, o que diferem na escolha de instrumentos interpretativos adequados. Da mesma maneira, as fontes escritas devem ser entendidas como seletivas também, resultado de um determinado período, em função da escolha do que ficaria registrado. Importante observar que, todo documento é uma escolha do pesquisador. Não existe produção inocente, toda produção tem a sua intencionalidade, desde o objeto de pesquisa, até a seleção das fontes, não existe neutralidade por parte do pesquisador, o objeto histórico é sempre resultado de uma construção. Referências Bibliográficas ALBERTI, Verena. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: CPDOC, 1989. AUGRAS, Monique. História oral e subjetividade. In: (org.) SIMSON, O. R. M. V. Os desafios contemporâneos da História Oral. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997. CEDRO, Marcelo. Pesquisa social e fontes orais: particularidades da entrevista como procedimento metodológico qualitativo. In: Revista Perspectivas Sociais Pelotas. Pelotas, Ano 1, N. 1, p. 125-135, março/2011. Desafios à História Oral do Século XXI. In: ALBERTI, Verena et al. (Orgs.). História Oral: desafios do século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz /CPDOC FGV, 2000. FERREIRA, Marieta de M.; AMADO, Janaína (Coords.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996. GARRIDO, Loan del Alcazar I. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate. In: Revista Brasileira de História Memória, História, Historiografia: Dossiê Ensino de História. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, vol. 13, n. 25/26, 09/1992 08/1993. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Cia das Letras, 1991. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. História Oral: muitas dúvidas, poucas certezas e uma proposta. In: MEIHY, José Carlos Sebe (Org.). (Re) Introduzindo História Oral no Brasil. Série Eventos. São Paulo: Xamã, 1996. LATIF, A. Cassab. História Oral: Miúdas considerações para a pesquisa em Serviço Social. In: Revista de Serviço Social. Universidade Estadual de Londrina. v. 5,n. 2,Jan/Jun 2000. Disponível em http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c-v5n2.htm: Acesso em 27/07/2013. LE GOFF, Jacques. Memória e História. São Paulo: Unicamp, 1994. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. PORTELLI, Alessandro. O Que Faz A História Oral Diferente. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduação em História, n.º 14, São Paulo, p. 25-39, 1997. SELAU, Mauricio da Silva. História Oral: uma metodologia para o trabalho com fontes orais. In: Esboços Revista de Pós - Graduação em História da UFSC: Dossiê Cidade e Memória. Santa Catarina: v. 11, n. 11, p. 217-228, 2004. SMITH, Richard. C. História oral na historiografia: autoria na história. In: História Oral, v. 13, n. 1, p. 23-32, jan.-jun. 2010. MEIHY. José Carlos S. Bom. Manual da história oral. São Paulo: Loyola, 1996. MORIGI, Valdir José; ROCHA, Carla Pires Vieira; SEMENSATTO, Simone. Memória, representações sociais e cultura imaterial. In: Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas - Ano 09, número 14, p. 182-191, 2012. ISSN 1676-2924.