COOPERAR PARA FORTALECER: OS OBSTÁCULOS AO ARRANJO PRODUTIVO LOCAL DA CACHAÇA NA BAHIA

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COOPERAR PARA FORTALECER: OS OBSTÁCULOS AO ARRANJO PRODUTIVO LOCAL DA CACHAÇA NA BAHIA andrepomponet@hotmail.com Apresentação Oral-Agricultura Familiar e Ruralidade ANDRE POMPONET. SECRETARIA DO PLANEJAMENTO DA BAHIA, FEIRA DE SANTANA - BA - BRASIL. COOPERAR PARA FORTALECER: OS OBSTÁCULOS AO ARRANJO PRODUTIVO LOCAL DA CACHAÇA NA BAHIA André Silva Pomponet 1 RESUMO A cooperação entre os pequenos produtores de cachaça de alambique da Bahia é a forma mais adequada de superação de obstáculos históricos à atividade, como o uso de tecnologia defasada, a baixa produtividade e a dificuldade de acesso a mercados urbanos maiores. Contudo, atingir esse objetivo exige esforços árduos e prolongados de articulação e de cooperação entre os produtores, mas significa elevação dos níveis de renda e de qualidade de vida e o desenvolvimento de regiões economicamente pouco dinâmicas. Apontar os desafios e as virtudes da ação cooperativa na produção de cachaça de alambique é o objetivo do presente trabalho. Palavras-Chave: Cooperação, Cachaça, Bahia, Desenvolvimento, Articulação. ABSTRACT The cooperation between small producers of cachaça from the Bahia is still the most appropriate way of overcoming obstacles to the historical activity, such as the use of technology low, the low productivity and difficulty of access to major urban markets. However, achieving that goal requires strenuous efforts and long-term relationship between producers, but means raising the levels of income and quality of life and development of areas of low economic dynamics. Pointing out the challenges and the benefits of cooperative action in the production of rum from the goal still is to this work. Key words: Cooperation, Cachaça, Bahia, Development, Articulation. INTRODUÇÃO 1 Economista e Especialista em Políticas Públicas da Secretaria do Planejamento da Bahia 1

Situada na região Nordeste, a Bahia pouco compartilhou do processo de desenvolvimento econômico que beneficiou outras partes do país, como o Sudeste e o Sul. Quando iniciativas governamentais buscaram desenvolver a região, o crescimento econômico sempre esteve concentrado em alguns poucos municípios, dispersando-se pouco pelo território do Estado. Assim, o imenso hinterland particularmente o semi-árido, sempre enfrentou baixo dinamismo econômico e indicadores sociais desfavoráveis. Contudo, apesar das dificuldades e das restrições edafo-climáticas, o Semi-Árido apresenta potencial de crescimento em algumas atividades que podem gerar emprego e renda e reduzir a pobreza da região. É o caso da produção de cachaça de alambique, cujo potencial é visível, mas que enfrenta obstáculos que impedem o desenvolvimento pleno do seu potencial. Para tanto, porém, os produtores dispersos, pouco capitalizados e com baixa produtividade precisam recorrer ao cooperativismo e à associação como forma de se fortalecer e se inserir no mercado de forma competitiva. Esse é o principal desafio a ser enfrentado, cuja superação vai implicar na resolução de uma série de outros desafios. O objetivo do presente trabalho é justamente demonstrar que sem cooperação entre os pequenos produtores, a indústria da cachaça de alambique permanecerá enfrentando as mesmas dificuldades atuais. O texto está estruturado da seguinte forma: na primeira seção, discute-se a origem e a evolução da cooperação sob uma perspectiva mais teórica. No item posterior aborda-se o surgimento do cooperativismo moderno à luz das restrições do sistema capitalista. Em seguida, apresenta-se um panorama da produção de cachaça de alambique na Bahia e, logo a seguir, a contribuição que o sistema cooperativo pode oferecer aos produtores baianos, inclusive com exemplos locais de sucesso. Por fim, arremata-se com algumas considerações. ORIGENS E EVOLUÇÃO DO COOPERATIVISMO Embora o cooperativismo moderno tenha suas características fundamentais definidas a partir de meados do século XIX, como decorrência e reação ao desenvolvimento capitalista de então, suas origens são muito mais remotas. Gide (Apud SINDICATO E ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS DO ESTADO DE GOIÁS, 2004) situa o surgimento do cooperativismo na própria origem da humanidade, no seu modo de ser, de viver e de agir diante das necessidades vitais (SINDICATO E ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS DO ESTADO DE GOIÁS, 2004). Pistas mais evidentes são oferecidas ao se visualizar a evolução da humanidade sob formas de organização tribal, quando as atividades comunitárias migram da mera divisão de funções distribuídas entre homens e mulheres e vão mais além, dividindo-se as tarefas do grupo entre indivíduos do mesmo gênero, como os homens que se dedicavam à caça e os que se empenhavam nas ocupações rotineiras ou industriais (VEBLEN, 1988). Depois essa divisão se acentuou, com a consolidação de uma classe ociosa constituída por sacerdotes, monarcas, militares e administradores dos bens coletivos. Nesse estágio, a cooperação é um fenômeno já bastante visível. A divisão do trabalho e a coordenação das ações cooperativas estiveram presentes nas sociedades mais complexas que sucederam as formas de organização tribal. É o caso da Sociedade Romana, em que predominava um regime comunal na utilização das pastagens, dos recursos florestais e da criação de gado; Antes, os babilônios empregavam modelos de arrendamento da terra semelhantes aos atuais e os povos germânicos conservaram formas de cooperativismo que subsistiram por séculos (SINDICATO E ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS DO ESTADO DE GOIÁS, 2004). 2

Todavia, o desenvolvimento das forças produtivas forjou a emergência do sistema capitalista, que varreu todas as formas de organização da produção precedentes. O que não foi destruído pela força do Capital foi transformado e incorporado à engrenagem do sistema, colaborando para a sua expansão. Assim, o campo submeteu-se à cidade, a dispersão dos meios de produção, propriedade e população foram suprimidas e províncias vinculadas por débeis laços federativos tornaram-se nações com um só interesse social de classe, o da burguesia (Marx, s/d, p. 25). A cooperação entre os indivíduos, que antes os movia em busca de um bem coletivo, subordinou-se à lógica do capital de forma sutil: A atividade de um número maior de trabalhadores, ao mesmo tempo, no mesmo lugar, (ou, se se quiser, no mesmo campo de trabalho), para produzir a mesma espécie de mercadoria, sob o comando do mesmo capitalista, constitui histórica e conceitualmente o ponto de partida da produção capitalista. Com respeito ao próprio modo de produção, a manufatura, por exemplo, mal se distingue, nos seus começos, da indústria artesanal das corporações a não ser pelo maior número de trabalhadores ocupados simultaneamente pelo mesmo capital. A oficina do mestre-artesão é apenas ampliada. De início portanto, a diferença é meramente quantitativa (MARX, 1988a, p. 244). A organização da produção sob esses moldes, todavia, implicou na consolidação de um conjunto de pressupostos que primeiro se materializou na Inglaterra. Smith aponta o primeiro deles: a divisão do trabalho. O maior aprimoramento das forças produtivas do trabalho, e a maior parte de sua habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é em toda parte dirigido e executado, parecem ter sido resultado da divisão do trabalho. (1997, p. 65) Adiante o economista escocês demonstra que a concentração do operário em um número limitado de tarefas desenvolve-lhe habilidades e permite a redução do tempo gasto na transição entre atividades distintas. Outra vantagem apontada é a introdução de máquinas que permitiram a execução de determinadas tarefas com maior rapidez (SMITH, 1997, p. 68). O autor, todavia, subordina a divisão do trabalho e a elevação da produtividade a um fator prévio: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra. (SMITH, 1997, p. 73). Essa inclinação tem raízes na cooperação, pois Numa sociedade civilizada, o homem a todo momento necessita da ajuda e cooperação de grandes multidões (SMITH, 1997, p. 74). Os pressupostos da divisão do trabalho e a vigência dos princípios do livre intercâmbio, porém, esbarram numa restrição: a extensão do mercado. Nas palavras do próprio autor, Quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir-se estimulado a dedicar-se inteiramente a uma ocupação, porque não poderá permutar toda a parcela excedente de sua produção. (SMITH, 1997, p. 77). O desenvolvimento dos mercados dependerá de dois fatores fundamentais: a densidade demográfica de uma determinada região e a riqueza acumulada. Esses obstáculos, para Adam Smith, são mais facilmente superáveis quando existe a proximidade de rios navegáveis ou portos marítimos, o que reduz os custos do comércio e estimula o intercâmbio. Para Smith, os países mediterrâneos são exemplos clássicos dessas possibilidades de desenvolvimento. Cumpridos esses pressupostos para a consolidação do capitalismo, a concentração dos meios de produção e a submissão dos trabalhadores à seleta burguesia que sucedeu os mestresartesãos e suas corporações se encarregaram de impulsionar a acumulação do capital. A escala de utilização dos meios de produção logo reduziu a competitividade dos pequenos produtores, conforme registra o próprio Marx: Meios de produção utilizados em comum cedem parte menor do seu valor ao produto individual, seja porque o valor global que transferem se reparte simultaneamente por uma massa maior de produtos, seja 3

porque, comparados com meios de produção isolados, entram no processo de produção com um valor que, embora seja absolutamente maior, considerando sua escala de ação, é relativamente menor (MARX, 1988a, p. 246). Reforçando o exemplo de Smith (1997, p.66) acerca de produção de alfinetes e a divisão das atividades envolvidas, Marx reconhece que a ação de um conjunto de trabalhadores, atuando em um mesmo espaço, produz resultados maiores que o somatório das atividades de trabalhadores individuais. Assim, os resultados alcançados por um conjunto de trabalhadores dispersos tende a ser igual ao de um número inferior de operários reunidos numa única fábrica. A obtenção de um volume de trabalho social médio depende da massa de capitais (fixo e variável) que o capitalista é capaz de mobilizar. A elevação da produtividade marginal média, portanto, depende de volumes crescentes de capital fixo, o que tende a excluir do mercado os capitalistas menos competitivos. É o que afirma Karl Marx: A concentração de grandes quantidades de meios de produção em mãos de capitalistas individuais é, portanto, a condição material para a cooperação de trabalhadores assalariados e a extensão da cooperação, ou a escala da produção, depende do grau dessa concentração (MARX, 1988a, p. 249). Nesse estágio de evolução do sistema, a cooperação entendida como meta para o alcance de um objetivo comum está totalmente desvirtuada. O protagonismo do processo migrou dos interesses da coletividade para as decisões individuais do capitalista que, por sua vez, se move em sincronia com os mecanismos que impulsionam o capitalismo. O próprio Marx esclarece: Com a cooperação de muitos trabalhadores assalariados, o comando do capital converte-se numa exigência para a execução do próprio processo de trabalho, numa verdadeira condição de produção. As ordens do capitalista no campo de produção tornam-se agora tão indispensáveis quanto as ordens do general no campo de batalha (MARX, 1988a, p. 250). A acelerada urbanização inglesa provocada pelo êxodo forçado dos camponeses que reforçaram o exército industrial de reserva nas cidades, o desenvolvimento da maquinaria e da grande indústria, que produziu a migração de um sistema de cooperação entre trabalhadores para um sistema de cooperação entre máquinas (MARX, 1988b, p. 10), além do desenvolvimento do comércio internacional que assegurou mercados para os produtos ingleses e impulsionou o desenvolvimento tecnológico, logo se refletiram sobre a situação da classe trabalhadora. Entre esses efeitos está a incorporação da mão-de-obra feminina e infantil ao mercado de trabalho (a maquinaria tornou a força muscular dispensável), prolongamento da jornada de trabalho, que com freqüência se estendia a 16 horas diárias, intensificação do trabalho, produzida pelo aumento da velocidade de funcionamento das máquinas, remuneração regulada pelos limites da subsistência e condições insalubres de trabalho (MARX, 1988b). Essa realidade constituía a situação dos trabalhadores que conseguiam ser absorvidos pelo sistema. Havia, porém, um número crescente que ia sendo expurgado do processo os desempregados à medida que o capitalismo se expandia e incorporava escalas crescentes: Por um lado, o capital adicionado no decurso da acumulação atrai, portanto, em proporção a seu tamanho, menos e menos trabalhadores. Por outro lado, o velho capital, reproduzido periodicamente em nova composição, repele mais e mais trabalhadores anteriormente ocupados por ele (MARX, 1988b, p. 189). É essa realidade, que vigora na Inglaterra em meados do século XIX, que vai fazer germinar as raízes de um cooperativismo cujos principais teóricos foram Robert Owen, Charles Fourier e Louis Blanc, que os marxistas consideravam socialistas utópicos pela ambição de 4

transformar a sociedade mantendo inalteradas suas contradições fundamentais: a luta de classes e a apropriação da riqueza social pelos capitalistas (ETGETO et al., 2005, p. 9). O principal expoente do cooperativismo, porém, foi Charles Gide, francês que contribuiu para a produção e difusão de conhecimentos ainda em meados do século XIX. A primeira cooperativa de trabalhadores, porém, é muito anterior: surgiu em 1844, reunindo 28 tecelões ingleses na Rochdale Society of Equitable Pioneers. A trajetória do cooperativismo nos turbulentos anos de consolidação do capitalismo, no século XIX, guarda um conjunto de ironias. A mais cruel é que o Capital apropriou-se de um sistema de organização da produção retirando o protagonismo da coletividade e legando-o ao empresário capitalista que assumiu a função de regular o processo, conforme as necessidades do mercado. Assim, as ações cooperativas deixaram de atender aos interesses de diversos indivíduos e reorganizaram-se conforme as necessidades do sistema capitalista. A reação cooperativa pós-consolidação capitalista, por sua vez, incorporou as transformações que o novo sistema provocou na sociedade: ao invés de circunscrita a comunidades cujos laços comerciais eram debilmente articulados com outras regiões, ganhou dimensões nacionais em sua concepção, pois era uma reação ao desemprego que atingia amplos contingentes da mãode-obra fabril. E, o que é mais grave, impunha a necessidade de providências para atender trabalhadores totalmente apartados dos meios de produção, recursos de que dispunham na fase anterior ao capitalismo. Mas, mesmo enfrentando esses obstáculos, o cooperativismo subsistiu, expandiu-se e se constitui nos dias atuais em alternativa de geração de emprego e renda para pelo menos 760 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. É o que será discutido na seção seguinte. COOPERATIVISMO MODERNO Os princípios cooperativos dos Pioneiros de Rochdale, conforme ficaram conhecidos os 28 tecelões que iniciaram a reação à apropriação que o capitalismo fazia dos antigos métodos de trabalho, é uma clara proposta de resistência à lógica do Capital que produzia multidões de desempregados na Inglaterra: i) A Sociedade seria governada democraticamente, com cada sócio dispondo de um voto; ii) A Sociedade seria aberta a quem dela quisesse participar, desde que integrasse uma cota de capital mínima e comum a todos; iii) Qualquer dinheiro investido a mais na Sociedade seria remunerado por uma taxa de juro, mas não daria direito ao possuidor qualquer direito adicional de decisão; iv) Tudo que sobrasse da receita, deduzidas todas as despesas, inclusive juros, seria distribuída entre os sócios em proporção às compras que fizessem da cooperativa; v) Todas as vendas seriam à vista; vi) Os produtos vendidos seriam sempre puros e de boa qualidade; vii) A Sociedade deveria promover a educação dos sócios nos princípios do cooperativismo e viii) A Sociedade conservaria neutralidade política e religiosa (ETGETO, 2005, p. 10). Esses princípios, posteriormente, foram incorporados à Aliança Cooperativa Internacional (ACI) e, mais tarde, sofreram algumas modificações nos congressos realizados em 1937 e em 1966. Por fim, em 1995, aconteceu em Manchester, na Inglaterra, o congresso do centenário da ACI, em que ficaram estabelecidos os atuais princípios do cooperativismo: i) Adesão voluntária e livre, sem discriminação de sexo, classe social, política e religiosa; ii) Gestão democrática pelos membros, com participação ativa na tomada de decisões; iii) Participação econômica dos membros, com destinação do excedente para ações como o desenvolvimento da cooperativa, benefício aos associados e apoio a atividades aprovadas em assembléia; iv) Autonomia e independência, inclusive na realização de operações que envolvam instituições 5

públicas ou capital externo; v) Educação, formação e informação, com a disseminação entre membros e a comunidade sobre as vantagens da cooperação; vi) Intercooperação, com a realização e trabalhos conjuntos com outras cooperativas; e vii) Preocupação com a comunidade, já que as cooperativas trabalham para o desenvolvimento sustentado das respectivas comunidades. (SINDICATO E ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS DO ESTADO DE GOIÁS, 2004 p. 11). Em mais de um século, as cooperativas promoveram realizações em várias partes do mundo. O cooperativismo, todavia, contribuiu mais efetivamente para o desenvolvimento de atividades agrícolas ou delas derivadas. É o caso do desenvolvimento rural promovido no Japão; A eletrificação rural nos Estados Unidos; A produção açucareira na Índia, cuja metade provém da ação de cooperativas; No Canadá, mais de 75% da produção de trigo passa pelas cooperativas de comercialização ou de crédito; Na Finlândia, na Suiça e em vários países da Europa a distribuição de alimentos depende dessas entidades e nos países escandinavos, em alguns casos as cooperativas respondem por 90% da oferta de produtos (SINDICATO E ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS DO ESTADO DE GOIÁS, 2004, p.8). Essa situação parece confirmar a hipótese de Adam Smith de que, por não comportar tantas divisões do trabalho quanto a manufatura, a atividade agrícola não experimentou o mesmo desenvolvimento do setor fabril. O próprio autor esclarece: A natureza da agricultura não comporta tantas subdivisões do trabalho, nem uma diferenciação tão grande de uma atividade para outra, quanto ocorre nas manufaturas. É impossível separar com tanta nitidez a atividade do pastoreador da do cultivador de trigo quanto a atividade do carpinteiro geralmente se diferencia da do ferreiro. Quase sempre o fiandeiro é uma pessoa, o tecelão, outra, ao passo que o arador, o gradador, o semeador e o que faz a colheita do trigo muitas vezes são a mesma pessoa. Já que as oportunidades para esses diversos tipos de trabalho só retornam com as diferentes estações do ano, é impossível empregar constantemente um único homem em cada uma delas. (SMITH, 1997, p. 67). Embora posteriormente o Capital também tenha avançado de forma voraz sobre a atividade agrícola, reproduzindo o processo de uso intensivo de capital fixo e, portanto, inviabilizando a atividades dos pequenos produtores, esse avanço não ocorreu com a mesma homogeneidade das atividades manufatureiras, urbanas e com mercados mais amplos assegurados. Mais adiante, o cooperativismo mostrou-se também eficaz nos países subdesenvolvidos, cujos mercados mais restritos constituíam alternativa pouco atraente para os grandes capitalistas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconheceu a capacidade do cooperativismo em promover melhorias nos países pobres, conforme a Recomendação 127/66. No documento, o organismo assinala as contribuições do cooperativismo, como a melhoria da situação econômica, social e cultural de comunidades com recursos e possibilidades limitadas, elevação da renda e do capital nacional mediante poupança e uso sadio do crédito, controle democrático da atividade econômica e da distribuição de renda e colaboração para elevar o nível de conhecimento geral e técnico dos sócios (ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS DE GOIÁS..., 2008, p.7). O cooperativismo moderno foi uma atitude reativa dos trabalhadores às contradições endógenas do capitalismo e às suas seqüelas, como o desemprego, as desigualdades sociais e a alienação do trabalhador. Sua fórmula se irradiou pelo mundo e alcançou sucesso notável justamente nas regiões mais atrasadas do planeta, desprezadas pela exploração capitalista. No Brasil de tantos contrastes econômicos, a industrialização e o desenvolvimento do eixo Sul/Sudeste convivem com um litoral nordestino urbanizado, com enclaves industriais ao longo da faixa litorânea, mas profundamente pobre e desigual no interior. 6

Nessa região, as oportunidades econômicas são escassas e as possibilidades de desenvolvimento das atividades mais promissoras são freadas pela ausência de uma cultura cooperativa. É o caso da aguardente de cana artesanal, ou cachaça de alambique, em algumas regiões da Bahia, que será objeto de discussão na seção seguinte. O PANORAMA DA CACHAÇA NA BAHIA Estima-se que a cachaça de alambique surgiu nos engenhos de açúcar pertencentes a Martim Afonso de Souza, entre 1533 e 1534, na região de São Vicente, no atual estado de São Paulo (CÂMARA, 2008). A origem se deve a um acaso: o processo de preparação da rapadura, que servia para adoçar bebidas, consistia na moagem da cana-de-açúcar, fervendo-se em seguida o caldo obtido, que era depositado em formas para esfriar. Às vezes o caldo desandava e fermentava, originando um produto que não servia para adoçar e que inicialmente era descartado (ORIGEM..., 2008). Chamava-se esse produto de cagaça mas a partir do século XVII, conforme Cascudo (1986), ganhou o nome de cachaça, tornando-se sinônimo de aguardente, embora essa última possa ser obtida a partir de outras matérias-primas. Esses vocábulos, como observa Câmara (2008, p. 02), serviam para designar algo desprezível: Observe-se que a palavra cachaça, antes de denominar nossa emblemática bebida, um símbolo nacional, serviu para chamar o lixo, o resto, a sobra. Inicialmente, a cachaça era oferecida aos escravos como uma espécie de energético, contribuindo para atenuar o drama da escravidão (CARVALHO; SILVA, 2004). Posteriormente, o consumo se popularizou entre as classes mais baixas da sociedade colonial, conforme notou o viajante francês Pyrard Laval, em 1610, quando passava por Salvador: Faz-se vinho com o suco da cana, mas só para os escravos e para os filhos da terra (CASCUDO, 1986, p. 15). Esse é o século da exaltação da aguardente, que se incorporou à sabedoria popular como uma espécie de remédio para todos os males, panacéia que conserva adeptos até os dias atuais. Mesmo com as ressalvas da Coroa Portuguesa, que chegou a proibir a produção da cachaça em território brasileiro, o fato é que nos séculos posteriores a bebida se tornou referência para os estratos sociais mais baixos, incorporando-se à rotina dos cabras, conforme eram conhecidos os filhos da terra aludidos por Laval. Não demorou para a cachaça transpor o território nacional. No século XVIII, a bebida já figurava entre os principais produtos exportados pela Bahia, ao lado do açúcar, do fumo e do algodão (TAVARES, 1979, p. 99). Cascudo (1986) registra que parte da produção servia como moeda de troca no tráfico de escravos, já que o produto era desconhecido no continente africano e a outra parte alcançou os mercados europeus e também a América do Norte. A expansão do consumo e da produção, porém, não colaborou para tornar a bebida símbolo de brasilidade. Ao contrário, o uso disseminado entre os pobres e os escravos colaborou para o surgimento de uma resistência cultural entre os mais abastados e que constitui obstáculo para a consolidação da indústria da cachaça de alambique até os dias atuais (POMPONET, 2008). Essa situação se perpetua mesmo com a aguardente figurando como a segunda bebida mais popular no país até os dias atuais, perdendo apenas para a cerveja e com um consumo anual estimado em mais de um bilhão de litros, embora a contabilidade inclua também a aguardente industrial, cujo processo produtivo difere do produto obtido nos alambiques. Na Bahia, essas dificuldades são ainda mais notáveis. O estado é o segundo maior produtor no Brasil, com 60 milhões de litros anuais, perdendo apenas para Minas Gerais. Há facilidades na obtenção da matéria-prima, já que pelo menos 120 municípios baianos cultivam a cana-deaçúcar, o que em 2005 representou 5,592 milhões de toneladas colhidas. Mapeamento recente 7

da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI) indica que existem mais de sete mil estabelecimentos espalhados em 13 pólos produtivos (BAHIA, 2007, P. 02). Há, todavia, enorme dispersão de produtores, em função da grande extensão do território baiano, que supera os 567 mil quilômetros quadrados. O Arranjo Produtivo de derivados da cana-de-açúcar gera 35 mil empregos diretos, mas somente 1% dos estabelecimentos estão formalizados por meio de micro-empresas, associações e cooperativas, oferecendo cerca de 550 empregos diretos. O Litoral Sul, a Chapada Diamantina, o Recôncavo e o Sudoeste são os pólos mais organizados, responsáveis pelas 24 marcas de cachaça de alambique formalizadas (BAHIA, 2007, p. 03). Os demais produtores enfrentam uma série de obstáculos que impedem o estabelecimento de um ciclo virtuoso que combine a produção de cachaça de alambique com qualidade, o escoamento do produto para centros urbanos maiores e mais distantes, a fidelização de consumidores com maior poder aquisitivo, com a conseqüente valorização do produto, a melhor remuneração dos produtores que permita maior renda e novas inversões no empreendimento, com geração de novos postos de trabalho e, por fim, a consolidação de uma tradição de qualidade que permita se alcançar mercados maiores e consumidores mais exigentes, principalmente no exterior. O mapeamento da SECTI permite compreender as dificuldades para se atingir esse ciclo virtuoso: Na sua maior parte, os produtores são informais, com baixo nível de renda e de escolaridade, caracterizados por uma organização familiar, perpetuada por sua tradição. A produção de cachaça informal é vendida na sede do município onde (é) produzida, para municípios vizinhos e eventualmente para fora do Estado. A produção é vendida pelos produtores, no próprio alambique, para os intermediários. Ainda não há comercialização de cachaça por intermédio das associações (BAHIA, 2007, p. 03) Adiante, há um maior detalhamento sobre o processo de elaboração da cachaça entre esses produtores: Sua estrutura de produção é de baixo nível tecnológico, utilizam a tração animal para a movimentação de moendas, as máquinas e equipamentos estão sucateados e em péssima condição de conservação pela depreciação e manutenção inadequada e a produção a céu aberto. (BAHIA, 2007, p.04). Os dois parágrafos transcritos retratam uma cadeia retrógrada, unida por elos perversos. A informalidade e a baixa escolaridade se desdobram de forma natural em um baixo nível de renda. Informalidade entre empreendedores de pequeno porte representa dificuldades ou ausência de acesso a crédito e também restrições no acesso ao conhecimento técnico e às novas tecnologias; A estrutura familiar, embora não constitua um mal em si, muitas vezes, todavia, implica em métodos de gestão pouco profissionais, o que também vai se traduzir em externalidades negativas, efeito que a tradição perpetua. Se a informalidade se combina a baixos níveis de escolaridade, os obstáculos se potencializam, já que a superação de métodos tradicionais e arcaicos encontra uma barreira adicional. Se o processo de produção é deficiente, a circulação não oferece perspectivas mais animadoras. Essa etapa, que exige articulação e escala, se esgota no próprio alambique: sem meios de vender a mercadoria, o produtor recorre aos serviços do intermediário ou atravessador, que se encarrega de constituir a ponte entre produtor e consumidor. Mas, como o próprio mapeamento indica que apenas eventualmente a cachaça alcança outras regiões e estados, percebe-se também que o intermediário não dispõe de articulação comercial, 8

disputando com o proprietário do alambique a renda que poderia ser muito maior, caso produção e circulação se encadeassem através de associações ou cooperativas. É a fragilidade desse elo que alimenta o ciclo vicioso que a indústria da cachaça de alambique não consegue romper. O ciclo vicioso é fechado pelo próprio processo de produção, conforme descrito pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação. A baixa escolaridade, a informalidade que precariza até mesmo o acesso a informações relevantes sobre produção e comercialização as formas de organização e de gestão pouco profissionais e a venda do produto a intermediários que pagam preços ínfimos porque, eles mesmos, não dispõem de meios eficientes para otimizar o escoamento do produto, comprimem os rendimentos dos produtores, que permanecem impossibilitados de investir em equipamentos mais modernos, na adoção de novos métodos de gestão e organização e permanecem, portanto, à margem da competição nos mercados mais qualificados. Assim, a cachaça da maioria dos alambiques baianos é consumida nas feiras-livres dos municípios próximos aos locais de produção, em bares e restaurantes dessas localidades e, eventualmente, em supermercados. Os consumidores tendem a ter baixo poder aquisitivo e a residir nos próprios municípios onde existem os alambiques ou outras cidades próximas. Em suma, a atuação individual dos produtores tende a perpetuar o ciclo vicioso da indústria da cachaça de alambique na Bahia, mantendo baixos os rendimentos da cadeia produtiva, o que contribui para a perpetuação da pobreza e do baixo desenvolvimento econômico nas regiões. Alternativas à situação são apresentadas na seção seguinte. CACHAÇA E COOPERAÇÃO: REALIDADE E PERSPECTIVAS Os esforços para fortalecer a produção de cachaça de alambique na Bahia começaram apenas na década de 1990. Inicialmente, a então Secretaria de Indústria, Comércio e Turismo incentivou a criação de associações de produtores no interior do estado, como em Abaíra e Itarantim. Posteriormente, já em 1997, o governo estadual criou o Procana Programa de Aproveitamento Integral da Cana-de-Açúcar com o objetivo de desenvolver o segmento (BAHIA, 2007, p. 04). Cinco anos depois em 2002 surgiu a Associação Baiana dos Produtores de Cachaça de Qualidade (ABCQ), congregando produtores de diversas regiões baianas, embora representem apenas 1% do total, conforme estimativa da SECTI. A mobilização desses produtores em busca de uma maior organização e desenvolvimento de ações cooperativas, apesar de incipiente, já produz os primeiros resultados. É o que se pode observar: Os produtores profissionais, cooperados e associados, avançaram bastante na questão de infra-estrutura e no emprego de tecnologias. Possuem uma maior integração com outras atividades agrícolas, mantêm uma relação mais aproximada com as organizações, recebem consultoria especializada em produção, gestão e posicionamento no mercado. (BAHIA, 2007, p. 04) O impulso inicial à produção da cachaça de alambique, porém, deveu-se à ação do Estado como articulador dos produtores, mas também atuando diretamente na prestação de serviços. Para tanto, secretarias como as de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária (SEAGRI), Indústria, Comércio e Serviços (SICM) e de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI) concorreram em suas áreas específicas, orientando os produtores e colaborando para a consolidação da atividade. Numa etapa posterior, quando a bebida já apresentava um grau de qualidade que a credenciava junto a paladares mais exigentes, o Instituto Baiano de Metrologia (Ibametro) foi mobilizado, para certificar a cachaça baiana. 9

O fortalecimento posterior da ABCQ reforçou a sinergia entre o Estado e os produtores, que começaram a dedicar-se à atividade de forma mais independente e a buscar aprofundar as articulações com os envolvidos na cadeia produtiva. Foi essa maior independência que permitiu à associação se movimentar com desenvoltura, desenvolvendo ações como as citadas a seguir: Destaca-se, ainda, a relação entre os diversos polos de produção na Bahia através da ABCQ, englobando produtores que representam as principais marcas de cachaça do Estado, localizadas nas regiões Sudoeste, Recôncavo Sul e Chapada Diamantina. Essa cooperação desenvolveu ações para fortalecer o setor como: processo de certificação Inmetro da Cachaça na Bahia; ações promocionais para difundir a marca âncora CACHAÇA DA BAHIA ; participações dos produtores da ABCQ nos principais eventos no estado e fora dele; parceria com distribuidor para as marcas associadas à ABCQ; processo de criação de uma central de negócios (BAHIA, 2007, p. 04). A dedicação à produção de cachaça de alambique aplicando métodos profissionais e empregando o cooperativismo como instrumento para facilitar a inserção competitiva no mercado, num cenário de concorrência com empreendedores de grande porte, tem se mostrado o caminho mais adequado para desenvolver o Arranjo Produtivo da Cana-de- Açúcar, particularmente a produção de cachaça de alambique. Ocorre, todavia, que esses resultados só têm favorecido os produtores mais mobilizados e que se articularam para a produção através de polos regionais. Como o número é ainda muito reduzido, o papel do Estado no processo permanece sendo imprescindível. Uma evidência é o Plano de Desenvolvimento do Arranjo Produtivo da Cana-de-Açúcar, que mantém o Estado como agente ativo. Embora se reconheça que o papel protagonista da ABCQ tem sido constante, o segmento ainda não apresenta a devida maturidade e grau de mobilização para, sem o suporte governamental, articular isoladamente os produtores. O detalhe adicional é que, embora o segmento também integre produtores mais capitalizados e com perfil mais empresarial, majoritariamente são os pequenos produtores, com baixa escolaridade, nível tecnológico rudimentar e ausência de vinculação com os mercados que constituem o público-alvo do arranjo produtivo e, portanto, devem contar com o suporte contínuo do Estado, até que a consolidação da cultura cooperativa e a capitalização lhes permitam trilhar o caminho da autogestão. Assim, a governança traçada no Plano de Desenvolvimento envolve secretarias cujas atividades se vinculam ao segmento (SECTI, SEAGRI, SICM e Ibametro), além do Centro Internacional de Negócios (Promo), do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e Associação Comercial da Bahia (ACB), além, evidentemente, da ABCQ, que desempenha o papel de liderança representativa. No plano, há a preocupação de reverter o panorama hegemônico na produção de cachaça de alambique na Bahia, conforme se pode visualizar no Quadro 1, abaixo: 10

QUADRO 1 Principais Propostas do Plano de Desenvolvimento do APL de Derivados da Cana-de- Açúcar Organização da Produção Pesquisa Políticas Públicas Linha Publicitária Ações Promocionais Ações de Venda Articulação Fonte: SECTI, com elaboração do autor. Estruturação de associações regionais e locais; Capacitação Tecnológica; Mercado; Máquinas e Equipamentos; Tecnologia da Produção; Laboratórios de Ensaios; Questões Burocráticas; Carga Tributária; Informalidade; Carta de Cachaças da Bahia; Peças Publicitárias; Divulgação da Qualidade dos Produtos Derivados da Canade-Açúcar; Diferenciação e Conceituação do Produto; Representante das Cachaças da Bahia; Organização de Eventos na Bahia e Participação em Eventos de Interesse; Exposição da Cachaça em Estandes Oficiais em Eventos Internacionais; Selo Cachaça da Bahia Qualidade Superior; Definição de Distribuidores nos Demais Estados; Necessidade de Promotores da Cachaça da Bahia; Apresentação dos Planos de Ação aos Parceiros; Reuniões com entidades vinculadas ao PROCANA; O Plano de Desenvolvimento apresenta a virtude de buscar a aproximação com os produtores que se encontram nos estágios mais atrasados de atuação, incorporando-os à esfera mais profissional da indústria de cachaça de alambique. Outra virtude é a apropriação da noção de que as ações devem ser empreendidas de forma coletiva, estabelecendo objetivos comuns e buscando o compartilhamento de meios para atingi-los. O plano, portanto, retrata a filosofia cooperativa, maneira mais adequada de promover o desenvolvimento do segmento, que apresenta evidentes dificuldades frente à maior organização e maior volume de capital aplicado pelos grandes empreendedores. 11

Ressalte-se, todavia, que existe significativa dispersão dos produtores pelo território baiano, baixa escolaridade e dificuldades de acesso à informação, além da inexistir uma tradição cooperativa em boa parte dos casos. Assim, para além de se buscar o desenvolvimento da produção, a consolidação do APL dos Derivados de Cana-de-Açúcar exige um notável esforço de articulação política que é papel dos produtores e de suas associações representativas, como a ABCQ. O Plano de Desenvolvimento implicou também na fixação de metas que devem ser atingidas até 2010. Alguns dos resultados projetados estão listados no Quadro 2: QUADRO 2 Resultados Projetados para o APL até 2010 Consolidar Associações e Cooperativas de produtores de derivados de cana-de-açúcar; Exportar marcas de Cachaça para o Exterior; Elevar a renda do pequeno produtor associado Capacitar técnicos em tecnologia da produção de derivados da cana-de-açúcar; Inserir as marcas das cachaças Baianas no mercado de alambiques devidamente registrados; Obter o Selo de Certificação de Qualidade Inmetro para as marcas de Cachaça; Capacitar produtores de derivados de cana-de-açúcar em práticas competitivas; Implantar o Selo Promocional Cachaça da Bahia; Fonte: SECTI, com elaboração do autor. As metas combinam a padronização da produção, com a conseqüente qualificação da cachaça produzida na Bahia com o fortalecimento das associações, cooperativas e a elevação da renda dos pequenos produtores, assim como ações de suporte ao crescimento da produtividade, como a capacitação técnica dos produtores e a disponibilidade de assistência técnica com vistas ao aprimoramento do produto. Diagnósticos adequados e planos de ação focados nos problemas levantados não implicam, necessariamente, em sucesso nas iniciativas adotadas. Porém, representam importantes passos iniciais quando se pretende alcançar o desenvolvimento de uma atividade. As dificuldades são ainda maiores quando o objetivo é colaborar para promover o desenvolvimento regional, reforçar a renda dos pequenos produtores e, sobretudo, consolidar uma cultura cooperativa que historicamente nunca fez parte dos hábitos da sociedade baiana. CONSIDERAÇÕES FINAIS As atividades cooperativas com objetivos econômicos foram uma reação da classe trabalhadora alijada do processo produtivo nos primórdios do capitalismo. Com o desenvolvimento das forças produtivas, o crescimento do número de desempregados fortaleceu o papel do cooperativismo como alternativa de geração de emprego e renda em todo o planeta, mas particularmente nos países pobres. Hoje, 760 milhões de pessoas no mundo estão vinculadas ao cooperativismo. Ao contrário do que se possa imaginar, o cooperativismo não é uma alternativa ao modo de produção capitalista, mas uma forma complementar de inserção de centenas de milhões de trabalhadores nesse sistema cuja tendência secular é a absorção decrescente de mão-de-obra. 12

Assim, antes de se pensar em sistema de relações de produção, deve-se pensar em meio de acesso à geração de emprego e renda, dentro de uma perspectiva capitalista. No interior da Bahia a economia é pouco dinâmica e não apresenta atrativos à absorção de grandes volumes de capitais. Porém, alguns segmentos como a indústria da cachaça de alambique apresentam potencial de expansão e de elevação da renda dos produtores envolvidos, mas somente mediante a articulação que resulte em ações cooperativas, com a finalidade de assegurar a competitividade e a inserção nos mercados mais atraentes. Considerando-se as tradições produtivas da Bahia, percebe-se que a jornada será árdua. Todavia, não existe outro caminho. Cooperar para fortalecer é o grande desafio do APL de Derivados de Cana-de-Açúcar na Bahia. REFERÊNCIAS BAHIA. Secretaria de Ciência Tecnologia e Inovação. Plano de Desenvolvimento do APL de derivados de cana-de-açúcar. Salvador: SECTI, 2007. 27 p. CARVALHO, Maria Auxiliadora; SILVA, César Roberto Leite. Aprecie sem moderação: perspectivas do comércio internacional da cachaça. Informações Econômicas. São Paulo, v. 34, n.1, jan. 2004. CÂMARA, Marcelo. Fantasia não eliminada. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 33, jun. 2008. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1720> Acesso em: 15 jul. 2008. CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio da Cachaça. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. 82p. ETGETO, Anderson; ET ali; Os Princípios do Cooperativismo e as Cooperativas de Crédito no Brasil. Maringá Manengement: Revista de Ciências Empresariais, v. 2, n.1, p. 7-19, jan/jun. 2005. MARX, Karl. O Capital. Volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1988a. Os Economistas. ------------------ O Capital. Volume II. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. Os Economistas. ------------------ Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d. Obras Escolhidas, volume I. 13

ORIGEM da cachaça. Mini Mundo da Cachaça. Matozinhos-MG: 2008. Disponível em: <http://www.minimundodacachaca.com/cachaça> Acesso em: 24 jul. 2008. POMPONET, André. Resistência cultural como obstáculo à consolidação do APL da Cachaça na Bahia. Conjuntura & Planejamento. Salvador, n. 160. jul/set. 2008. SINDICATO E ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS BRASILEIRAS EM GOIÁS. Cooperativismo passo a passo. Goiânia: Departamento de Educação Cooperativista, 2004. Disponível em: <http://www.seplan.go.gov.br/down/cartilha_cooperativismo.pdf> Acesso em: 05 Nov. 2008. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1997. Os Economistas. TAVARES, Luís Henrique. História da Bahia. São Paulo: Ática, 1979. 206p. VEBLEN, Thorstein. Teoria da Classe Ociosa. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Os Economistas. 14