A UMBANDA E O CANDOMBLÉ NO CENÁRIO NACIONAL: ALGUNS DESAFIOS. Palavras-chave: Religiões de matrizes africanas. Intolerância. Desafios.

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Transcrição:

A UMBANDA E O CANDOMBLÉ NO CENÁRIO NACIONAL: ALGUNS DESAFIOS Francisco Rangel dos Santos Sá Lima 1 Resumo: O presente artigo tem por objetivo fazer um breve histórico do surgimento das mais importantes religiões afro-brasileiras, a saber, Candomblé e Umbanda, bem como discutir a respeito das práticas de intolerância conta elas, erroneamente vinculadas à origem africana e à suposta superioridade cristã/europeia. A intolerância religiosa verificada no Brasil revela uma enorme contradição no que tange a sua essência como país democrático, que, em tese, assume o estatuto jurídico da liberdade religiosa, de consciência e de expressão, como assegura a Constituição de 1988. Embora o Brasil muito deva aos africanos que aqui chegaram e fizeram parte da formação de nosso país, a assunção da identidade negra ainda enfrenta enormes obstáculos, principalmente no que tange à religião. (ORO; BEM, 2008, p.315). Para desvelarmos algumas das razões pelas quais vigora esta intolerância, embasamo-nos, principalmente, em estudos que se debruçam sobre a religiosidade afro-brasileira, que nortearam nosso olhar nessa discussão preliminar. Para configurar nossa revisão bibliográfica, desse modo, nos valemos de Regiane A. Mattos (2007), Ari Pedro Oro & Daniel F. de Bem (2008), Reginaldo Prandi (2003,2004) e de José G. Rocha (2011). Os resultados da nossa pesquisa indicam que ainda são grandes os desafios a serem enfrentados pelos praticantes de religiões afro-brasileiras no que dizem respeito a sua liberdade religiosa, considerando que, no caso das religiões afro-brasileiras, a discriminação/demonização tem razão racial. Palavras-chave: Religiões de matrizes africanas. Intolerância. Desafios. INTRODUÇÃO A intolerância religiosa verificada no Brasil desvela uma enorme contradição no que tange a sua essência como país democrático, que, em tese, assume o estatuto jurídico da liberdade religiosa, de consciência e de expressão, como assegura a Constituição de 1988. Embora o Brasil muito deva aos africanos que aqui chegaram e fizeram parte da formação de nosso país, a assunção da identidade negra ainda enfrenta enormes obstáculos, principalmente no que tange à religião. (ORO; BEM, 2008, p.315). Desde o início da colonização dos países africanos, a demonização dos rituais autóctones foi utilizada como forte arma de dominação, que, aliada à errônea ideia de primitivismo de suas expressões religiosas, reforçava uma deturpada justificação da exploração imposta do branco sobre o negro. No século XIX, legitimaram-se as teorias acerca desse espúrio primitivismo, com a emergência da concepção evolucionista da religião, que, em detrimento da África, deu azo a sua partilha entre as nações europeias (CANTARELA, 2013, p.89). 1 Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Instituto de Humanidades e Letras, Bolsista do Programa de Educação Tutorial de Humanidades e Letras, e-mail: rangelzynho@hotmail.com

Sobrevivendo à contemporaneidade, tal intolerância religiosa acarreta forte estigmatização dos praticantes de cultos afro-brasileiros, influenciando na sua autoestima, na assunção da identidade étnica e do seu pertencimento religioso, por conta do medo de serem vítimas de preconceito. Como revela o estudo de José Geraldo da Rocha (2011), a intolerância religiosa provoca traumas emocionais profundos nos indivíduos de que são vítimas, sendo desumanizadora para o indivíduo que a sofre, como o é para quem a pratica (ROCHA, 2001, p.4). Assim, o presente artigo tem por objetivo fazer um breve histórico do surgimento das mais importantes religiões afro-brasileiras, a saber, Candomblé e Umbanda, discutir a razão dos preconceitos que vigoram contra elas ao longo da história e assumir sua resistência intrínseca. Dessa forma, nos interessa levantar a questão da demonização dessas religiões, uma vez que o critério determinante da discriminação se assenta, antes de tudo, na origem africana. METODOLOGIA Embasamo-nos, principalmente, em estudiosos que se debruçam sobre a religiosidade afro-brasileira e nortearão nosso olhar nessa discussão preliminar. Para configurar nossa revisão de literatura dessa forma, nos valeremos de Regiane A. Mattos (2007), Ari Pedro Oro & Daniel F. de Bem (2008), Reginaldo Prandi (2003,2004) e de José Geraldo Rocha (2011). RESULTADOS E DISCUSSÃO Antes de iniciarmos um breve percurso histórico, é mister asseverarmos o caráter eminentemente sincrético das religiões de matrizes afro-brasileiras. Ao chegarem ao Brasil, os diversos grupos étnicos originários da África tiveram de ser convertidos ao credo católico. Suas práticas religiosas, consideradas arcaicas pelos dominadores, eram, sob prescrições do Estado e da Igreja, reprimidas. A conversão à religião do senhor era obrigatória, de forma que o surgimento das primeiras manifestações religiosas de matrizes africanas que surgiram no Brasil coincidiu com o período em que o catolicismo era a única religião tolerada no país, a oficial. Em tentativa de manter sua religiosidade, os praticantes engendraram uma ressignificação desta por meio da assimilação com os santos católicos (NASCIMENTO, 2010, p.926), uma vez que o sincretismo ao qual nos referimos provém de um confronto de valores luso e afro-brasileiros e não como uma fusão de elementos diferenciados. É uma criação, uma construção do novo (SIQUEIRA, 2009 apud CAMPOS, 2013, p.20).

O sincretismo, por meio do qual houve a possibilidade do desenvolvimento das religiões de matrizes africanas, emergiu do contínuo processo de negociação entre os participantes e de aproximações existentes nas relações entre negros, brancos e índios, de modo que havia semelhanças entre as religiões, tais como a devoção a entidades intercessoras, aspectos mágicos que envolvem essa devoção e outros (NASCIMENTO, 2010, p. 939-940). Além disso, conforme atestam os registros históricos divulgados por Oro & Bem (2008), foi bastante forte o papel da Inquisição no período colonial. Os calundus, tidas como manifestações prenunciadoras das religiões afro-brasileiras, foram fortemente estigmatizadas em razão de seu vínculo negro-africano, de seu suposto caráter primitivo e de sua posição desafiadora a um catolicismo considerado hegemônico. Dessa forma, apoiadas pelas autoridades coloniais, diversas investigações incidiram na aplicação de castigos físicos, multas e de pena capital àqueles que representassem uma ameaça à religião dominante (ORO; BEM, 2008, p.307). Segundo Mattos (2007), o Candomblé originou-se na Bahia no século XIX, quando houve uma grande chegada de tradições africanas ocidentais, em especial, a jeje ou daomeana, dos cultos voduns, e a ioruba ou nagô, dos cultos dos orixás (MATTOS,2007, p.161). Os cultos se baseiam na prática de oferendas aos ancestrais e no processo de iniciação dos participantes no ritual de possessão (MATOS, 2007,160). Orixás ou voduns referem-se aos ancestrais fundadores das mais importantes linhagens africanas. Prandi (2004) destaca que o surgimento do Candomblé representou uma espécie de instituição de resistência cultural, primeiramente dos africanos, e, depois, dos afrodescendentes à dominação cristã e branca, de maneira que significou uma forma de preservação do patrimônio étnico dos descendentes dos antigos escravos (PRANDI, 2004, p.223). Por sua vez, a Umbanda surgiu nas primeiras décadas do século XX, no Sudeste, por meio da transplantação do antigo candomblé da Bahia, aglutinando-o com o espiritismo kardecista, chegado da França no final do século XIX (PRANDI, 2003, p.17). Enquanto que o Candomblé, nesse período, tinha se circunscrito a áreas urbanas do Nordeste, em razão da concentração de populações negras, a Umbanda, pelo contrário, já nasceu num processo de branqueamento e ruptura com símbolos e características africanas, propondo- se como uma religião para todos (PRANDI, 2003, p.19-20).

Assim, a Umbanda, em sua formação, é tão sincrética quanto o Candomblé, propondo-se como religião nacional, representativa das três raças nacionais, uma vez que o espiritismo também abarca os caboclos cultuados pelos indígenas. No entanto, segundo Prandi, a Umbanda cria uma armadilha para si mesma: enquanto que, para o Candomblé, mais próximo do pensamento africano, há uma indissolubilidade entre o bem e o mal, na Umbanda, tal qual a moda ocidental e cristã, há a distinção. Atrelados à caridade e ao bem, por exemplo, temos os caboclos, os pretos-velhos e demais espíritos bons, e vinculados à malignidade, temos um panteão de exus-espíritos e pombagiras, entidades que não se acanham em trabalhar para o mal quando este é considerado necessário (PRANDI, 2003, p.23). Essa dicotomia caiu como uma luva para ideologias intolerantes nas quais predominam a demonização das religiões de matrizes africanas. Não esqueçamos de que a intolerância religiosa, na verdade, é também reflexo da marginalização e discriminação reservada ao negro em nossa sociedade, haja vista que a demonização das religiões dos orixás ocorrem, sobretudo, por serem de origem africana, como podemos ver no discurso do pastor fluminense Samuel Gonçalves, da Assembleia de Deus, divulgado em um dos maiores jornais do Brasil, no ano de 2002, no qual afirmou, em apoio ao candidato Antony Garotinho à presidência, que uma das três maldições do Brasil é a religião africana (PRANDI, 2003, p.23-24). Essa intolerância reflete nos dados levantados pelos censos do IBGE. O censo do ano 2000 atestou que as religiões de matrizes africanas representavam 0,3% da população brasileira, ou seja, cerca de 571.329 pessoas. No entanto, o que Prandi (2003) e Rocha (2011) dizem é justamente a possiblidade desses dados não poderem ser totalmente confiáveis, considerando que, sob rótulos de espíritas ou católicas, na verdade, há adeptos de religiões de matrizes africanas. Isso se deve ao fato de que se declarar como fiel de determinada religião afrodescendente é colocar-se numa esfera de não reconhecimento e aceitabilidade social (ROCHA, 2011, p.7). CONCLUSÕES Vale ressaltar que os afrodescendentes, a despeito de terem de ocultar, muitas vezes, a sua afirmação religiosa, para não sofrerem represálias, sempre resistiram às práticas de desqualificação de seus credos, encontrando estratégias para praticá-los. Além disso, há, atualmente, fortes eventos nacionais promovidos por militantes e intelectuais que realizam manifestações, protestos, caminhadas em prol da liberdade de religião, bem como promovem

fóruns de debates sobre intolerância religiosa e organização de seminários que discutem a relação entre Estado e religião (ROCHA, 2011, p.4). A própria promulgação da Lei nº 10639/2003 revela a preocupação, de nível federal, com o reconhecimento, valorização da Cultura e História africana e afro-brasileira, de modo que sejam recuperadas as contribuições do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (BRASIL, 2003), representando uma forte conquista para os movimentos intelectuais e sociais em prol do negro. Assim, principalmente na educação básica das escolas públicas e privadas de todo o país, devem ser promovidas atitudes de respeito e convívio em relação às religiões de matrizes africanas, uma vez que constituem as heranças de um povo que bastante ajudou para a construção de nosso país e são genuinamente nacionais. AGRADECIMENTOS Agradeço ao Programa de Educação Tutorial, a minha tutora, Profa. Dra. Léia Cruz de Menezes, por seus esforços pelo progresso dos bolsistas do PET de Humanidades e Letras, e à Profa. Dra. Sueli Saraiva, por ter me ajudado nesta humilde pesquisa. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº. 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Inclui a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino. Diário Oficial da União, CANTARELA, Antonio Geraldo. Traços do proprium cultural africano e sua relação com o sagrado. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 29, p. 88-108, jan./mar, 2013. MATTOS, Regiane Augusto. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto,2007. ORO, Ari Pedro; BEM, Daniel F. A discriminação contra as religiões afro-brasileiras: ontem e hoje. Ciências e Letras, n.44, p.301-318, 2008. PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. Civitas, Porto Alegre, v.3, n.1, jun. 2003. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, n.18, n. 52, 2004. ROCHA, José Geraldo da. A intolerância religiosa e religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro. Revista África e Africanidades, n. 14/15, 2011. Disponível em: http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/14152011-05.pdf. Acesso em: 30/03/2016.