O QUE É PESQUISA QUALITATIVA?

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Transcrição:

1 O QUE É PESQUISA QUALITATIVA? objetivos do capítulo Após a leitura deste capítulo, você deverá: identificar as características comuns da pesquisa qualitativa e sua proliferação ao mesmo tempo; conhecer as perspectivas de pesquisa e o papel da teoria na pesquisa qualitativa; entender que a pesquisa qualitativa está situada na tensão entre métodos e atitudes.

16 Uwe Flick definindo A pesquisa QuAlitAtivA O termo pesquisa qualitativa foi usado, durante muito tempo, de forma diferenciada, para descrever uma alternativa à pesquisa quantitativa, e foi cunhado no contexto de uma crítica à segunda, especialmente seus desdobramentos nos anos de 1960 e 1970. Entretanto, a pesquisa qualitativa tem uma longa história em muitas disciplinas, onde a pesquisa social como um todo começou com abordagens que agora seriam resumidas sob o título de pesquisa qualitativa. Quanto mais esse desdobramento avançava, mais claro foi ficando um perfil daquilo que o termo significava. Esse perfil não é mais definido por eliminação a pesquisa qualitativa é a pesquisa não quantitativa ou não padronizada, ou algo assim, e sim dispõe de várias características próprias. Sendo assim, a pesquisa qualitativa usa o texto como material empírico (em vez de números), parte da noção da construção social das realidades em estudo, está interessada nas perspectivas dos participantes, em suas práticas do dia a dia e em seu conhecimento cotidiano relativo à questão em estudo. Os métodos devem ser adequados àquela questão e devem ser abertos o suficiente para permitir um entendimento de um processo ou relação (ver Flick, 2006, para mais detalhes). Isso significa que se pode identificar um entendimento comum do que é a pesquisa qualitativa? Na última edição de seu livro, Denzin e Lincoln (2005a, p. 3) apresentam uma definição inicial e genérica : A pesquisa qualitativa é uma atividade situada que posiciona o observador no mundo. Ela consiste em um conjunto de práticas interpretativas e materiais que tornam o mundo visível. Essas práticas transformam o mundo, fazendo dele uma série de representações, incluindo notas de campo, entrevistas, conversas, fotografias, gravações e anotações pessoais. Nesse nível, a pesquisa qualitativa envolve uma postura interpretativa e naturalística diante do mundo. Isso significa que os pesquisadores desse campo estudam as coisas em seus contextos naturais, tentando entender ou interpretar os fenômenos em termos dos sentidos que as pessoas lhes atribuem. Essa parece ser uma boa definição sobre o que é a pesquisa qualitativa. Contudo, se tomarmos como exemplo a análise de conversação (ver Rapley, 2007; Ten Have, 1999), os pesquisadores estão interessados na organização formal do falar sobre algo e não no sentido que as pessoas atribuem ao fenômeno. Porém, a análise de conversação é um exemplo destacado da pesquisa qualitativa. Uma parcela considerável da pesquisa qualitativa parte de uma abordagem naturalística em relação ao mundo e outra assume uma postura interpretativa em relação ao mundo. Aliás, em vários contextos, ambas são consideradas como diferentes em níveis de epistemologia e de metodologia,

Desenho da pesquisa qualitativa 17 o que torna difícil simplesmente combinar naturalístico interpretativo em uma só abordagem. Essas observações não se fazem tanto como uma crítica à definição de Denzin e Lincoln, e sim para demonstrar as dificuldades de se formular essa definição de forma genérica. A proliferação da pesquisa QuAlitAtivA Já faz um bom tempo que a pesquisa qualitativa vem se desenvolvendo. O nome pesquisa qualitativa é usado como um guarda-chuva para incluir uma série de enfoques à pesquisa nas ciências sociais. Elas também são conhecidas como abordagens hermenêuticas, reconstrutivas ou interpretativas (ver Flick, 2006, e Flick et al., 2004a, para revisões recentes). Além disso, às vezes o termo investigação é preferido em detrimento de pesquisa, ou ambos são substituídos para se chamar o empreendimento como um todo de etnografia. Contudo, sob o rótulo de pesquisa qualitativa, essas abordagens e esses métodos, bem como os resultados obtidos com o seu uso, estão chamando cada vez mais atenção, não apenas na sociologia, mas também na educação, na psicologia, nas ciências sociais e afins. Em algumas dessas áreas, são publicados manuais especiais de pesquisa qualitativa (na psicologia, por exemplo), ao mesmo tempo em que quase não se publica um livro em outras (como reabilitação, enfermagem e saúde pública) que não tenha um capítulo sobre métodos de pesquisa qualitativa. Sem entrar em detalhes de um histórico da pesquisa qualitativa aqui, pode-se identificar uma trajetória de sucesso. Os indicadores disso são os números crescentes de revistas acadêmicas sobre o tema ou de revistas estabelecidas que se abrem à sua publicação. O número de livros-texto, manuais, monografias e coletâneas está aumentando constantemente e, em muitas áreas, aumenta muito a pesquisa qualitativa dentro da pesquisa subsidiada. O número de cursos e currículos dedicados à pesquisa qualitativa está crescendo. Por fim, um número cada vez maior de jovens pesquisadores faz suas dissertações e teses no âmbito de estudos que usam métodos qualitativos ou uma combinação de qualitativos e quantitativos. Todos esses indicadores de uma trajetória bem-sucedida da pesquisa qualitativa podem ser diferentes nas várias disciplinas relacionadas e em países distintos, mas descrevem uma tendência geral a estabelecer a pesquisa qualitativa como uma abordagem levada a sério em um número cada vez maior de contextos. Ao mesmo tempo, não se vê essa tendência de estabelecer a pesquisa qualitativa acompanhada do desenvolvimento de algo como um núcleo paradigmático do que ela representa. Embora se possam identificar alguns princípios gerais já citados, defrontamo-nos com uma proliferação permanente de pesquisa qualitativa em, pelo menos, quatro níveis:

18 Uwe Flick Antes de mais nada, há diferentes programas de pesquisa em pesquisa qualitativa, que têm diferentes questões de pesquisa, métodos específicos e contextos teóricos. Entre os exemplos, podem estar a pesquisa em teoria fundamentada * ou análise do discurso, que têm interesses e princípios metodológicos diferentes, mas são, ambas, importantes na pesquisa qualitativa. Em segundo lugar, podem-se ver diferenças naquilo que se entende por pesquisa qualitativa nos Estados Unidos, no Reino Unido ou, por exemplo, na Alemanha (ver Knoblauch et al., 2005, para uma visão comparativa da pesquisa qualitativa em diferentes países). A primeira proliferação, é claro, também é relevante dentro de cada uma dessas tradições nacionais. A definição de Denzin e Lincoln em seu livro, por exemplo, representa basicamente a discussão feita nos Estados Unidos. Terceiro, encontramos discursos diferenciados sobre pesquisa qualitativa em diferentes disciplinas. Os pesquisadores desse campo na psicologia têm interesses e problemas específicos, assim como seus colegas na sociologia, por exemplo, mas eles não são necessariamente os mesmos. Quarto, há uma diversidade cada vez maior de discursos específicos de determinadas áreas em relação à pesquisa qualitativa. Os exemplos são a pesquisa qualitativa contratada nos campos das ciências da saúde, da gestão ou da avaliação. Essas áreas têm limitações e necessidades especiais, que são diferentes, por exemplo, da pesquisa universitária no âmbito de dissertações e de teses, ou no contexto da pesquisa básica. Alguém que espera o desenvolvimento de padrões para pesquisa qualitativa a partir de uma longa história de pesquisa e discussão metodológica pode ficar perplexo ou decepcionado com essa proliferação. Em alguns momentos, isso pode gerar problemas na aceitação da pesquisa qualitativa e fragilizar sua posição na concorrência com os pesquisadores quantitativos, quando se trata de alocar recursos de financiamento. Entretanto, essa proliferação também pode ser considerada típica da pesquisa qualitativa em função de suas características principais ou dos princípios orientadores de todos os tipos de pesquisa qualitativa. A AdeQuAção Como princípio orientador O desenvolvimento da pesquisa qualitativa está ligado ao princípio da adequação de três formas. Originalmente, no início da pesquisa empírica em várias disciplinas, havia mais questões a serem estudadas do que métodos *N. de R.T. Neste livro, o termo em inglês Grounded theory foi traduzido como teoria fun damentada.

Desenho da pesquisa qualitativa 19 para usar. Podemos ver como os métodos usados nos primeiros estudos da pesquisa qualitativa foram desenvolvidos a partir de um interesse de conhecimento específico, por um lado, e das características do que deveria ser estudado, por outro. Vidich e Lyman (2000) mostram como os métodos dos primórdios da etnografia eram informados pelos interesses dos pesquisadores no Outro, o que, naquela época, significava entender a diferença entre as culturas não ocidentais e os antecedentes ocidentais dos próprios pesquisadores. Depois, isso foi ampliado a abordagens comparativas que descreviam diferentes visões de culturas de um ponto de vista evolutivo e, mais tarde, aplicado à compreensão e descrição de partes específicas da própria cultura de quem descreve, nos estudos da Escola de Chicago, por exemplo. Outro exemplo é o desenvolvimento dos métodos de pesquisa de Piaget, a partir de seu interesse em entender o desenvolvimento e o pensamento infantis em diversas etapas. Nessa fase do desenvolvimento, a necessidade de adequação nos métodos da pesquisa (que mais tarde se chamou de) qualitativa resultou das características das questões que foram descobertas para pesquisa e da falta de uma metodologia desenvolvida que estivesse pronta para ser aplicada nesses estudos (ver também Flick, 2006, Capítulo 1, para uma breve história da pesquisa qualitativa). Um segundo vínculo com a adequação como princípio pode ser identificado muito mais tarde no renascimento da pesquisa qualitativa nas décadas de 1960 e 1970. Neste caso, encontramos uma situação diferente: as metodologias tinham sido desenvolvidas, estabelecidas e refinadas. As disciplinas tinham vinculado seu próprio desenvolvimento e consolidação a um método específico, o experimento na psicologia, o uso de pesquisa de levantamento * na sociologia, por exemplo. Neste último caso, isso foi complementado pelo desenvolvimento das grandes teorias (como as de Talcott Parsons, por exemplo) para descrever como as sociedades funcionam em geral e em termos de detalhes específicos. Ao mesmo tempo, métodos e teorias deixavam escapar uma grande quantidade de questões que eram relevantes em termos práticos, mas de menor porte e difícil compreensão. Como resultado desses desdobramentos, uma carência de métodos (e teorias) prontos para descrever e explicar fenômenos relevantes levou a uma redescoberta da pesquisa qualitativa. Exemplos de como a falta de métodos adequados levou à criação de novos métodos e programas de pesquisa para desenvolver teorias fundamentadas empiricamente são os estudos de Erving Goffman (1959) ou Howard Becker, Anselm Strauss e Barney Glaser * N. de R.T. Neste livro, o termo em inglês Survey foi traduzido como pesquisa de levantamento.

20 Uwe Flick (Becker et al., 1961). Esses autores estavam interessados no uso da pesquisa empírica para descobrir e desenvolver teorias de fenômenos que sejam relevantes em termos práticos, que não poderiam ser tratados por pesquisa de levantamento e grandes teorias. Nessa fase, o princípio da adequação se tornou relevante para a pesquisa qualitativa em função da lacuna entre as metodologias consolidadas e as questões que não poderiam ser estudadas adequadamente com essas metodologias. O princípio da adequação levou ao desenvolvimento de uma gama de métodos quantitativos às vezes a uma redescoberta e a mais desenvolvimento de métodos já existentes de programas de pesquisa e de um discurso metodológico ampliado da pesquisa qualitativa. Para essa fase, mais uma vez, podemos associar características metodológicas dos métodos (e programas) da pesquisa qualitativa às características das questões que foram estudadas. Em um terceiro sentido, o princípio da adequação se tornou relevante na situação atual. Atualmente, pode-se observar mais proliferação de pesquisa qualitativa em uma série de áreas de pesquisa. Se observarmos áreas como estudos de organização ou pesquisa em gestão, ou campos como a pesquisa em saúde ou enfermagem especificamente, encontraremos características específicas de campos e questões a serem estudadas. Elas levaram ao desenvolvimento de discursos metodológicos que são específicos e diferentes do discurso da pesquisa qualitativa em geral. A pesquisa em gestão, por exemplo, defronta-se com estruturas muito específicas (das organizações). A pesquisa em enfermagem muitas vezes trabalha com pessoas em uma situação muito específica a vulnerabilidade de pacientes e seus parentes diante da doença e da morte que requer determinados métodos, sensibilidades e preocupações éticas por parte do pesquisador. No campo da avaliação qualitativa, por exemplo, as restrições vêm de rotinas de práticas (a ser avaliadas) e das expectativas dos contratantes da pesquisa (de ter resultados que tenham relevância prática, disponíveis depois de um tempo relativamente curto). Essas restrições geram demandas e necessidades diferentes da pesquisa qualitativa no contexto de um projeto de dissertação ou de um financiamento no âmbito da pesquisa básica. Em todos esses casos da gestão à avaliação foram desenvolvidos discursos metodológicos específicos, estimulados pela necessidade de se ter pesquisa qualitativa que adequada a esses casos. Isso fica evidente nos métodos usados, nas discussões de qualidade da pesquisa qualitativa em cada campo e nas formas de apresentar e usar resultados da pesquisa qualitativa em cada um desses campos. Neste terceiro sentido, é mais uma vez a proliferação e o refinamento metodológico da pesquisa qualitativa que criam uma nova

Desenho da pesquisa qualitativa 21 necessidade de levar mais a sério a adequação como princípio, e leva a uma diferenciação cada vez maior entre campos. A pesquisa QuAlitAtivA Como disciplina ACAdêmiCA em Contextos ApliCAdos Do ponto de vista mais geral, a pesquisa qualitativa passou por um processo de consolidação como disciplina acadêmica. Após um período de pesquisa ampliada, cada vez mais se publicam livros-texto. Esses livros-texto são gerais de pesquisa qualitativa (como Flick, 2006, ou Silverman, 2006) ou são específicos de disciplinas (p. ex., para a psicologia, Smith, 2003, ou Bannister et al., 1994; para a sociologia, Denzin, 1989, etc.). Além disso, podemos encontrar vários manuais de pesquisa qualitativa disponíveis, mais uma vez, com um foco mais geral (Denzin e Lincoln, 1994, 2000, 2005b; Flick et al., 2004a; Seale et al., 2004) ou com um foco específico por disciplina (como Willig e Stainton-Rogers, 2007, para a psicologia). Também há várias publicações acadêmicas sobre a pesquisa qualitativa em geral ou para sua aplicação em áreas específicas. Isso está atrelado a tentativas de formular padrões de pesquisa qualitativa ou, pelo menos, de encontrar respostas mais ou menos gerais à pergunta de como julgar a qualidade da pesquisa qualitativa (ver Flick, 2007, para mais detalhamento). Esses desdobramentos em geral vão levar à consolidação da pesquisa qualitativa no campo acadêmico e dar orientação para ensino, formação, qualificação e elaboração de teses. Ao mesmo tempo, a pesquisa qualitativa muitas vezes não se restringe à produção de conhecimento ou a descobertas com propósitos científicos. Com frequência, a intenção é mudar a questão em estudo ou produzir conhecimento relevante em termos práticos, ou seja, produzir ou promover soluções para problemas concretos. As abordagens de pesquisa participativa ou pesquisa-ação envolvem pessoas (ou instituições) no planejamento e, às vezes, na condução de pesquisas que pretendem produzir resultados relevantes a elas (não apenas aos discursos científicos). Nesses contextos, podem surgir conflitos entre as demandas de métodos e da ciência em geral com os propósitos práticos. Na avaliação qualitativa, por exemplo, levanta-se outra questão: A avaliação tem que gerar apreciações por meio de pesquisa ou seja, se um programa específico funciona ou não o que significa que os pesquisadores têm que abrir mão de sua neutralidade em um determinado momento. Ao mesmo tempo, as expectativas na pesquisa sobre avaliação qualitativa estão vinculadas a calendários por vezes apertados, e os resultados não apenas têm que ser dirigidos (p. ex., a apreciações e valorações), mas muitas vezes têm que estar disponíveis depois em um prazo

22 Uwe Flick um tanto limitado, em comparação com o período de uma tese de doutorado, por exemplo. As rotinas da prática e os contextos institucionais demandam a adaptação de rotinas e padrões metodológicos. Nesse contexto, muitas vezes, torna-se necessário fazer uso pragmático dos métodos e avaliar os padrões metodológicos em relação a padrões de cumprimento de expectativas dos contratantes e aos interesses dos participantes. Em sentido metodológico, são necessárias estratégias de atalho, que permitam adaptar procedimentos metodológicos às condições em campo (Flick, 2004a; Luders, 2004a). Como mencionado acima, esses propósitos e condições de pesquisa podem levar a problemas e discursos metodológicos, os quais, uma vez mais, reforçam a proliferação e a diferenciação da pesquisa qualitativa em geral. A pesquisa QuAlitAtivA Como discurso moral Em sua definição citada anteriormente, Denzin e Lincoln (2005a, p. 3) destacam que as práticas dos pesquisadores transformam o mundo. Novamente, há dois lados da moeda nessa afirmação. O primeiro é que os pesquisadores qualitativos não agem com neutralidade invisível, e sim tomam parte quando observam (na observação participante) ou fazem com que os participantes reflitam sobre sua vida e história de vida (em uma entrevista biográfica), o que pode levar os entrevistadores a compreender coisas novas sobre sua situação e o mundo ao seu redor. O segundo é que a pesquisa qualitativa deveria (em geral ou sempre) se engajar na tarefa de mudar o mundo. Principalmente, se observarmos a terceira edição do Handbook of Qualitative Research *, de Denzin e Lincoln (2005b), encontraremos muitos capítulos aprofundando o que os organizadores estabeleceram em seu prefácio (2005c, p. xvi): a pesquisa qualitativa é um projeto de investigação, mas também é um projeto moral, alegórico e terapêutico. Segundo essa leitura, a pesquisa qualitativa está permanentemente em busca da resposta à pergunta que fez Howard Becker (1967) algum tempo atrás ( De que lado estamos? ) e tem uma autorização moral para assumir o lado dos menos favorecidos, das minorias ou das vítimas da colonização ou da migração. Seguindo essa visão, a pesquisa qualitativa é explicitamente política e pretende transformar o mundo com suas práticas (para usar, mais uma vez, a citação da definição). Contudo, esta, mais uma vez, é uma versão para se definir e ler a pesquisa qualitativa. Para além dessa compreensão da pesquisa qualitativa como discurso moral, há uma postura mais pragmática, que a vê como extensão das ferramentas e dos potenciais da pesquisa social para entender o mundo e produzir conhecimento sobre ele. Mais uma vez, isso * N. de R.T. A Artmed publicou a segunda edição (Denzin e Lincoln. O planejamento da pesquisa qualitativa e abordagens, 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006).

Desenho da pesquisa qualitativa 23 mostra a proliferação da pesquisa qualitativa, também em nível de atitudes e visões básicas de como deveriam ser, em termos gerais, a investigação, a pesquisa qualitativa e assim por diante. QuAlidAde e QuAntidAde: AlternAtivAs, dois lados da mesma moeda ou CombinAções? Na relação entre pesquisa qualitativa e quantitativa, mais uma vez encontramos posições diferentes. Em primeiro lugar, cada lado rejeita claramente o outro. O livro de Denzin e Lincoln (2005a, p. 10-12), por exemplo, não discute qualquer forma de combinar pesquisa qualitativa e quantitativa. Se a segunda é mencionada, é basicamente como diferenciação da pesquisa qualitativa, para apontar a força desta. Ainda há um bom número de pesquisadores quantitativos que ignoram ou rejeitam a existência de métodos qualitativos, da pesquisa qualitativa em geral e dos resultados produzidos por ela. A distinção e a rejeição mútua ainda são a maneira principal de tratar ambos os campos. Porém, em muitas áreas, como a pesquisa sobre avaliação, a prática de pesquisa se caracteriza por um ecletismo mais ou menos pragmático no uso de uma série de métodos qualitativos e quantitativos segundo o que for necessário para se responder à pergunta da pesquisa. No contexto desse pragmatismo, as reflexões metodológicas sobre como combinar a pesquisa qualitativa e a quantitativa permanecem um tanto escassas e limitadas. As combinações de pesquisa qualitativa e quantitativa podem ser vistas em níveis diferentes: Epistemologia e metodologia (incluindo as incompatibilidades epistemológicas e metodológicas de ambas as abordagens). Desenhos de pesquisa, que combinam ou integram dados e/ou métodos qualitativos e quantitativos. Métodos de pesquisa qualitativos e quantitativos ao mesmo tempo. Vinculação dos resultados da pesquisa qualitativa e quantitativa. Generalização. Avaliação da pesquisa com o uso de critérios da pesquisa quantitativa para avaliar a pesquisa qualitativa ou o contrário. Podem-se encontrar várias sugestões sobre como combinar a pesquisa qualitativa e quantitativa. Hammersley (1996, p. 167-168) distingue três formas de fazer essa ligação: A triangulação de ambas as abordagens, em que o autor vê mais ênfase na avaliação mútua de resultados e menos na extensão mútua de potenciais de conhecimento.

24 Uwe Flick A facilitação destaca a função de apoio da outra abordagem cada uma proporciona hipóteses e inspirações para realizar análises da abordagem isoladamente. Ambas as abordagens podem ser combinadas como estratégias complementares de pesquisa. Bryman (1992, p. 59-61) descreveu onze formas de integrar as pesquisas quantitativa e qualitativa: 1. A lógica da triangulação significa, para o autor, verificar, por exemplo, os resultados qualitativos em relação aos quantitativos. 2. A pesquisa qualitativa pode apoiar a quantitativa e 3. Vice-versa. 4. Ambas são combinadas ou oferecem um quadro mais geral da questão em estudo. 5. As características estruturais são analisadas com os métodos quantitativos e os aspectos de processo, com abordagens qualitativas. 6. A perspectiva dos pesquisadores guia as abordagens quantitativas, ao passo que a pesquisa qualitativa enfatiza os pontos de vista do subjetivo. 7. O problema da generalidade pode ser resolvido pela pesquisa qualitativa acrescentando-se resultados quantitativos. 8. Os resultados qualitativos podem facilitar a interpretação das relações entre variáveis em conjuntos de dados quantitativos. 9. A relação entre os níveis micro e macro em uma área importante pode ser esclarecida combinado-se as pesquisas qualitativa e quantitativa. 10. As pesquisas quantitativa e qualitativa podem ser adequadas em diferentes etapas do processo de pesquisa. 11. Formas híbridas, por exemplo, o uso de pesquisa qualitativa em desenhos de natureza experimental. Nesse panorama geral, encontramos uma ampla variedade de alternativas. Os números 5, 6 e 7 destacam que a pesquisa qualitativa pode revelar aspectos diferentes em comparação com a qualitativa. As diferenças teóricas e epistemológicas (ou morais) têm muito pouca influência na abordagem de Bryman, que está mais dirigida à pragmática da pesquisa. A integração de ambas as abordagens, as metodologias mistas (Tashakkori e Teddlie, 2003a) e a triangulação de métodos qualitativos e quantitativos (Flick, 2007 ou Kelle e Erzberger, 2004) são discutidas mais amplamente abaixo. As terminologias mostram diferentes intenções e objetivos com essas formas de combinações. As abordagens que usam metodologias mistas estão interessadas nos vínculos entre as pesquisas qualitativa e quantitativa com vistas a dar fim

Desenho da pesquisa qualitativa 25 às guerras de paradigmas de épocas anteriores. A abordagem é declarada um terceiro movimento metodológico (Tashakkori e Teddlie, 2003b, p. ix). A pesquisa e os métodos quantitativos são considerados um primeiro movimento, enquanto a pesquisa qualitativa é o segundo. Os objetivos de uma discussão metodológica neste caso são deixar claro a nomenclatura, as questões relativas ao desenho e as aplicações das metodologias de pesquisa mistas e das inferências neste contexto. Do ponto de vista metodológico, o objetivo é se ter um alicerce de metodologias de pesquisa mistas. O uso do conceito de paradigmas nesse contexto, contudo, mostra que os autores partem de duas abordagens fechadas, que podem ser diferenciadas, combinadas ou rejeitadas, sem refletir os problemas metodológicos concretos de sua combinação. As justificações para as metodologias mistas de pesquisa são descritas assim: Propomos que uma metodologia verdadeiramente mista (a) incorpore múltiplas abordagens em todas as etapas do estudo (ou seja, identificação do problema, coleta de dados, análise de dados e inferências finais) e (b) inclua transformação dos dados e sua análise por meio de outra abordagem (Tashakkori e Teddlie, 2003b, p. xi). O conceito de integrar abordagens qualitativas e quantitativas vai mais além, visando a desenvolver um desenho de pesquisa integrado e, particularmente, integrar os resultados qualitativos e quantitativos (Kelle e Erzberger, 2004). Versões mais recentes de triangulação, por outro lado, visam a combinar os pontos fortes dos desenhos de pesquisa qualitativos e quantitativos, os métodos de ambos os tipos e os resultados que eles produzem, levando em conta as diferentes origens teóricas (ver Flick, 2006, Capítulo 2). Se examinamos a questão de vincular a pesquisa qualitativa à quantitativa nesse momento, a intenção não é considerar essa como a futura direção da pesquisa social ou como sugestão para abrir mão dos princípios e da singularidade da pesquisa qualitativa. Em vez disso, parece necessário refletir sobre formas de vincular ambas as abordagens, por três razões: Antes de mais nada, existem, realmente, questões de pesquisa que demandam a combinação de ambas as abordagens. Em segundo lugar, as combinações pragmáticas de métodos estão na moda atualmente. Isso não acontece simplesmente porque eles prometem uma simplificação de um campo em proliferação as diversidades da pesquisa social. Eles parecem ser uma forma de dar fim a discussões metodológicas nas quais se questionou a adequação da pesquisa qualitativa. Terceiro, se, por uma das duas razões acima, a combinação de pesquisa qualitativa e quantitativa se tornar necessária, devemos tentar

26 Uwe Flick explicitá-la mais nos níveis teóricos, metodológicos e práticos de pesquisa e interpretação dos resultados. perspectivas de pesquisa De um novo ponto de vista, mas abrangente, podem-se identificar várias perspectivas na pesquisa social. Algumas delas têm orientação puramente quantitativa (o que significa, basicamente, que não há componentes de pesquisa qualitativa envolvidos). Nesse caso, podemos distinguir várias abordagens de pesquisa pesquisa de levantamento, epidemiológica, padronizada e experimental, para citar apenas algumas. Determinadas perspectivas se baseiam em uma combinação de pesquisa qualitativa e quantitativa. Como já deve estar claro, mais uma vez encontramos diferentes versões. E, finalmente, podemos encontrar várias abordagens de pesquisa de natureza principal ou exclusivamente qualitativa. Voltando à pesquisa qualitativa, podem-se encontrar, pelo menos, três perspectivas, das quais um quadro geral inicial é apresentado na Quadro 1.1. Os pontos de referência teóricos na primeira perspectiva se baseiam em tradições de interacionismo simbólico e fenomenologia. Uma segunda QuAdro 1.1 perspectivas na pesquisa QuAlitAtivA Análise AbordAgens descrição da hermenêutica dos pontos de FormAção das das estruturas vista subjetivos situações sociais subjacentes Posições teóricas Interacionismo simbólico Fenomenologia Etnometodologia Construcionismo Psicanálise Estruturalismo genético Métodos de coleta de dados Entrevistas semiestruturadas Entrevistas narrativas Grupos focais Etnografia Observação participante Registro de interações Coleta de documentos Registro de interações Fotografia Filmes Métodos de interpretação Codificação teórica Análise de conteúdo Análise de narrativa Métodos hermenêuticos Análise de conversação Análise do discurso Análise de documentos Hermenêutica objetiva Hermenêutica profunda

Desenho da pesquisa qualitativa 27 linha principal está ancorada teoricamente na etnometodologia e no construcionismo e interessada em rotinas da vida cotidiana e na formação da realidade social. As posições estruturalistas e psicanalíticas, que pressupõem estruturas e mecanismos psicológicos inconscientes e configurações sociais latentes, são o terceiro ponto de referência. Essas três grandes perspectivas diferem em termos de seus objetivos de pesquisa e nos métodos que empregam. Autores como Luders e Reichertz (1986) justapõem, inicialmente, as abordagens que destacam o ponto de vista do sujeito e um segundo grupo que visa a descrever o processo na produção de situações, meios e ordens sociais existentes (cotidianas, institucionais ou mais gerais e sociais) (p. ex., nas análises etnometodológicas da linguagem). A terceira abordagem se caracteriza por uma reconstrução (mais hermenêutica) das estruturas profundas que produzem ação e sentido em termos de concepções psicanalíticas e objetivo-hermenêuticas (ver Flick, 2006, para mais detalhes). Os mais importantes métodos qualitativos para coleta e análise de dados podem ser situados nessas perspectivas, da seguinte forma. Na primeira perspectiva, predominam as entrevistas semiestruturadas ou narrativas e os procedimentos para codificação e análise de conteúdo. Na segunda perspectiva de pesquisa, os dados são coletados em grupos focais, etnografia ou observação (participante) e pelo registro de interações em áudio ou vídeo. A seguir, esses dados são analisados usando as análises do discurso e de conversação. Do ângulo da terceira perspectiva, os dados são principalmente coletados registrando-se interações com o uso de material visual (fotos ou filmes), que depois pode ser submetido a uma das diferentes versões da análise hermenêutica (Hitzler e Eberle, 2004). teoria e epistemologia da pesquisa QuAlitAtivA Como mencionado anteriormente, a pesquisa qualitativa não se baseia em um único programa teórico, servindo-se de várias formações teóricas. Entretanto, a distinção entre positivismo e construcionismo está por trás da discussão epistemológica da pesquisa qualitativa de forma bastante ampla. Segundo Oakley (1999), a distinção muitas vezes está relacionada ao contexto do feminismo também na pesquisa qualitativa. O positivismo, como programa epistemológico, tem origem nas ciências naturais e, portanto, é mais usado como uma referência em negativo da qual diferenciar a pesquisa em questão. Mas o real significado do positivismo raramente é explicitado nas discussões das ciências sociais. Bryman (2004, p. 11) resume várias premissas do positivismo. Somente o conhecimento de fenômenos confirmados pelos sentidos pode ser considerado conhecimento (fenomenalismo). As teorias são usadas para gerar

28 Uwe Flick hipóteses que possam ser testadas e possibilitar explicações de leis a serem avaliadas (dedutivismo). O conhecimento pode ser produzido coletando-se fatos que forneçam bases para leis (indutivismo). A ciência deve e pode ser conduzida de forma que seja livre de valores e, com isso, objetiva. Por fim, vê-se uma distinção clara entre afirmações científicas e normativas. O positivismo costuma ser associado ao realismo. Ambos pressupõem que as ciências naturais e sociais devam e possam aplicar os mesmos princípios à coleta e à análise de dados, e que existe um mundo (uma realidade externa) separado das descrições que fazemos dele. Entretanto, o uso da palavra positivismo em debates sobre a pesquisa qualitativa é criticado com frequência. Hammersley (1995, p. 2) observa: tudo o que se pode inferir razoavelmente a partir do uso não explicado da palavra positivismo na literatura de pesquisa social é que o autor desaprova o que quer que seja a que está se referindo. A essa posição, o construcionismo (ou construtivismo) social é justaposto (ver também Flick, 2004b). Vários programas, com diferentes pontos de partida, são incluídos sob esses rótulos. O fator comum a todas as abordagens construcionistas é que elas examinam a relação com a realidade lidando com processos construtivos ao abordá-la. Podem-se encontrar exemplos de construções em distintos níveis: Na tradição de Piaget, a cognição, a percepção do mundo e o conhecimento a seu respeito são considerados constructos (conceitos). O construtivismo radical (Glasersfeld, 1995) leva essa ideia até o ponto em que todas as formas de cognição, em função do processo neurobiológico envolvido, têm acesso direto a imagens do mundo e da realidade, mas não de ambos. O construtivismo social, na tradição de Schutz (1962), Berger e Luckmann (1966) e Gergen (1999), investiga a formação de convenções sociais, a percepção e o conhecimento na vida cotidiana. A sociologia construtivista da ciência, a pesquisa construtivista de laboratório (Knorr-Cetina, 1981), tenta estabelecer como os fatores sociais, históricos, locais, pragmáticos e outros influenciam a descoberta científica de tal forma que os fatos científicos possam ser considerados constructos sociais ( produtos locais ). O construcionismo não é um programa unificado, mas está se desenvolvendo de forma paralela em uma série de disciplinas: psicologia, sociologia, filosofia, neurobiologia, psiquiatria e ciência da informação. Ele engloba muitos programas de pesquisa qualitativa com a abordagem de que as realidades que estudamos são produtos sociais dos atores, de interações e instituições.

Desenho da pesquisa qualitativa 29 Ainda que nem o construcionismo nem as origens teóricas da pesquisa qualitativa possam ser considerados abordagens unificadas em relação ao mundo, mas sim uma espécie de caleidoscópio de diferentes sotaques e focos para se entenderem partes do mundo, podem-se observar algumas premissas teóricas básicas comuns à variedade de programas de pesquisa qualitativa (ver Flick et al., 2004b, p. 7). Essas premissas mostram que as pessoas, as instituições e as interações são envolvidas na produção de realidades nas quais elas vivem ou ocorrem, e que esses esforços produtivos se baseiam em processos de produção de sentido. As circunstâncias de vida objetivas (como uma doença) se tornam relevantes para a realidade, pelo menos em grande medida, por meio dos sentidos subjetivos atribuídos a elas. Se quisermos entender esses processos de produção de sentido, devemos começar por reconstruir a forma como as pessoas, as instituições e as comunicações constroem seus mundos ou a realidade social em nossa pesquisa. Essas premissas são a base teórica e epistemológica para se usar métodos tais como entrevistas (ver Kvale, 2007, e Gibbs, 2007), para entender como os indivíduos estão engajados na produção de sentido, e assim, entender as questões através de sua perspectiva, ou usar grupos focais (ver Barbour, 2007), etnografia (ver Angrosino, 2007), análise de conversação (Rapley, 2007) ou métodos visuais (Banks, 2007) para mostrar como os sentidos são construídos em processos interativos ou em objetos e representações. pesquisa QuAlitAtivA: métodos e Atitudes Como pode já ter ficado evidente, existe atualmente uma ampla gama de métodos diferentes disponíveis na pesquisa qualitativa. Pode até ser uma variedade confusa de alternativas, que poderiam ser usadas para responder uma pergunta de pesquisa. Apesar de toda a literatura disponível no mercado dos livros-texto, monografias, artigos acadêmicos e capítulos de livros sobre pesquisa qualitativa, ainda há alguma necessidade de esclarecimento e desenvolvimento metodológico. Em primeiro lugar, segundo o princípio da adequação mencionado antes, ainda parece necessário continuar desenvolvendo novos métodos na pesquisa qualitativa. Embora haja uma série de métodos de entrevista disponíveis (ver Kvale, 2007), ainda pode ser necessário desenvolver novas formas de entrevistas para novos tipos de perguntas de pesquisa ou de participantes em um estudo, quando os métodos existentes não forem perfeitamente adequados. Em segundo, precisamos desenvolver mais os nossos conhecimentos sobre os métodos existentes, como usá-los e quais são as principais referências em seu uso. Precisamos de mais reflexões metodológicas

30 Uwe Flick e práticas da aplicação dos métodos existentes, de seus possíveis refinamentos e de seus limites. Terceiro, precisamos de orientações mais claras sobre quando usar um determinado método (em vez de outros métodos disponíveis). O que faz com que os pesquisadores decidam usar um método específico, o que deveria guiar suas decisões e qual é o papel dos hábitos (metodológicos) na pesquisa qualitativa? Em pesquisa qualitativa se faz menos aplicação formalizada de rotinas metodológicas do que em pesquisa baseada em medições. Em nosso domínio, a intuição cumpre um papel muito mais importante, no campo e no contato com seus membros, mas também ao fazer com que um determinado método funcione. Assim sendo, deveríamos saber mais sobre a intuição nos trabalhos de pesquisa e, em termos mais gerais, como as práticas e as rotinas de pesquisa funcionam na pesquisa qualitativa. Além disso, ainda é necessário pensar mais sobre como os diferentes métodos e passos no processo de pesquisa se encaixam entre si, na coleta e interpretação de dados, por exemplo. Por fim, ainda é necessário entender mais como os pesquisadores qualitativos avaliam a qualidade da pesquisa qualitativa, isto é, o que torna uma pesquisa boa aos olhos dos próprios pesquisadores, mas também aos dos que recebem os resultados? Sendo assim, ainda é necessário aprofundar nosso conhecimento em relação ao alcance e aos limites dos métodos qualitativos específicos e a como eles são usados na prática cotidiana da pesquisa qualitativa. Contudo, a pesquisa qualitativa continua sendo mais do que simplesmente usar um ou outro método para responder a uma pergunta. A pesquisa qualitativa ainda se baseia em atitudes específicas de abertura para quem e o que está sendo estudado, de flexibilidade para abordar um campo e entrar nele, de entender a estrutura de um sujeito ou de um campo em lugar de projetar uma estrutura naquilo que se estuda, e assim por diante. Ao desenvolver pesquisa qualitativa, ao ensiná-la e aplicá-la, devemos tentar manter o equilíbrio entre habilidades técnicas e atitude que é adequado à pesquisa qualitativa. estrutura do livro e da coleção PeSQUISa QUaLITaTIVa plano do livro Neste livro, desdobraremos essas observações introdutórias sobre a pesquisa qualitativa e desenvolveremos um breve panorama dela e do processo

Desenho da pesquisa qualitativa 31 de pesquisa, a partir do ponto de vista do desenho desse tipo de pesquisa. O capítulo seguinte é sobre como desenvolver uma pergunta de pesquisa a partir de uma ideia ou um interesse geral. O Capítulo 3 trata das estratégias básicas de amostragem na pesquisa qualitativa e de como conseguir acesso a um campo. O Capítulo 4 desdobra em mais detalhes o conceito de desenho de pesquisa na pesquisa qualitativa, concentrando-se em influências e componentes dos desenhos e discutindo desenhos básicos e exemplos. O Capítulo 5 informa sobre os recursos necessários e os obstáculos com que você pode se deparar em campo. O Capítulo 6 trata da qualidade da pesquisa qualitativa pela perspectiva do desenho de pesquisa e continuaremos essa discussão com relação à ética de pesquisa no Capítulo 7. Os capítulos restantes (8 a 10) apresentam um breve panorama dos métodos mais importantes da pesquisa qualitativa. O Capítulo 8 aborda métodos para coletar dados verbais em entrevistas e grupos focais, o Capítulo 9 trata de etnografia e métodos visuais e o Capítulo 10 informa sobre estratégias analíticas básicas em pesquisa qualitativa. O foco de todos os três capítulos está, mais uma vez, no desenho da pesquisa qualitativa. O capítulo final aponta algumas conclusões, discute a relação do desenho de pesquisa e da elaboração de propostas a partir de dois lados e apresenta uma perspectiva dos outros livros constantes na Coleção Pesquisa Qualitativa. os livros da coleção PeSQUISa QUaLITaTIVa Enquanto, neste livro, a estrutura da pesquisa qualitativa é exposta e os métodos são tratados basicamente de um ponto de vista específico (o desenho da pesquisa qualitativa), os outros livros da Coleção Pesquisa Qualitativa são muito mais detalhados na apresentação de abordagens metodológicas. Barbour apresenta uma introdução ao uso de grupos focais. Angrosino discute a etnografia e a observação participante, enquanto Banks desdobra o uso dos dados visuais (foto, filme, vídeo) na pesquisa qualitativa. Gibbs introduz abordagens para codificação e categorização na análise de dados qualitativos e dá um pouco mais de atenção ao uso de computadores e programas de informática nesse contexto. A questão da qualidade na pesquisa qualitativa será discutida mais detalhadamente em um outro livro. pontos-chave A pesquisa qualitativa está em processo de proliferação, dando origem a diferentes perspectivas de pesquisa e campos de aplicação. Não obstante, há características e questões comuns nessa variedade. A adequação pode ser vista como um princípio orientador nessa variedade.

32 Uwe Flick A pesquisa qualitativa está situada entre usar de métodos e assumir uma postura. leituras ComplementAres Além dos outros livros desta Coleção, que se aprofundam muito mais nas questões que foram mencionadas, sugerimos quatro obras para aprofundamento, tratando das diferentes áreas mencionadas aqui, de diferentes ângulos: Denzin, N. and Lincoln, Y. S. (eds.) (2005b) The Sage handbook of qualitative research (3rd ed.). London: Sage. Flick, U. (2006) An introduction to qualitative research (3rd ed.). London: Sage. Flick, U., Kardorff, E. von and Steinke, I. (eds.) (2004a) A companion to qualitative research. London: Sage. Seale, C., Gobo, G., Gubrium, J. and Silverman, D. (2004) (eds.) Qualitative research practice. London: Sage.