Desempenho de indivíduos saudáveis e afásicos em bateria de avaliação de praxia de membros: influência do sexo, da idade e da escolaridade. JOANA MANTOVANI NAGAOKA KARIN ZAZO ORTIZ UNIFESP Palavras-chave: apraxias, afasia, linguagem Introdução A apraxia é um distúrbio da realização de gestos ou atos motores aprendidos sem que haja anormalidades em canais sensoriais aferentes ou motores eferentes, deterioração intelectual, nem alteração de atenção ou de compreensão dos comandos verbais ¹, ². Diversos estudos têm constatado a forte relação entre esse distúrbio e as lesões de hemisfério cerebral esquerdo, sendo freqüentes os relatos de casos de apraxia em pacientes que também se apresentam afásicos 3-9. Muitos autores acreditam que, mais que um distúrbio motor, a apraxia envolva déficits conceituais que se manifestam em tarefas de produção motora 5,9,10-12.Seguindo essa corrente teórica, a neuropsicologia cognitiva tem apresentado modelos de processamento gestual que procuram explicar o funcionamento do processo de produção do ato motor, considerando o nível conceitual no processamento da ação 10,11. Estudos têm demonstrado a influência das variáveis demográficas sexo, idade e escolaridade no desempenho dos indivíduos durante a realização de testes neuropsicológicos e de linguagem 13-20. Podendo lesões no hemisfério esquerdo acarretar déficits apráxicos, bem como manifestações afásicas, e dado o valor simbólico e funcional dos gestos nas diferentes situações de comunicação, esse estudo objetivou caracterizar e comparar os desempenhos de indivíduos saudáveis e afásicos em uma bateria de avaliação de praxia de membros, investigando-se a influência das variáveis sexo, idade e escolaridade. Método Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (CEP 0170/05). Quarenta e quatro indivíduos saudáveis, sem história de lesão neurológica, distúrbio de linguagem prévio, uso de drogas psicotrópicas, bem como história de doenças psiquiátricas, compuseram o grupo controle (GC), enquanto o grupo afásico (GA) foi composto por 28 indivíduos afásicos,
diagnosticados no Núcleo de Investigação Fonoaudiológica em Neuropsicolinguística da UNIFESP. Todos os participantes foram submetidos à aplicação de uma bateria de avaliação de praxia de membros 21,composta de subtestes que avaliam os aspectos semântico-lexicais relacionados à produção gestual, bem como a produção motora propriamente dita, sob comando verbal e sob imitação, a saber: compreensão oral de ações e objetos; nomeação de ações e objetos; reconhecimento da função de objetos; definição da função de objetos; reconhecimento de gestos transitivos (gestos que envolvem o uso de objetos); praxia ideomotora, com e sem uso de objetos; praxia ideatória, também com e sem uso de objeto; gestos simbólicos; imitação estática e imitação dinâmica de gestos sem significado. Após a aplicação da bateria, realizou-se análise estatística pertinente para análise dos dados. Adotou-se probabilidade (p) menor que 0,05 para indicar significância estatística. Resultados Os resultados mostraram que o sexo não influenciou o desempenho dos grupos estudados, enquanto a idade influenciou o reconhecimento de gestos transitivos em ambos os grupos. No GA, a idade também influenciou a imitação de gestos dinâmicos sem significado. A escolaridade, no entanto, influenciou em diversas tarefas da bateria nos dois grupos, sendo observados melhores desempenhos nos subgrupos de maior escolaridade. No GC, essa variável influenciou o desempenho dos participantes nos subtestes praxia ideatória, gestos simbólicos e imitação dinâmica, enquanto no GA houve influência dessa variável nos subtestes de praxia ideomotora, praxia ideatória e nas tarefas de imitação estática e dinâmica de gestos sem significado. Já a comparação entre os grupos mostrou que a lesão cerebral teve impacto sobre as tarefas lingüísticas de nomeação de ações e objetos, reconhecimento e definição da função de instrumentos, sendo o desempenho do GC melhor que o do GA. Além disso, a lesão também influenciou o desempenho do GA nos subtestes praxia ideatória e imitação de gestos dinâmicos sem significado (tabela 1). Tabela 1: Comparação dos desempenhos de GC e GA nos subtestes da Bateria de praxia de membros, considerando as faixas de escolaridade e resultados da ANOVA Escolaridade ANOVA valores de (p)
Compreensão oral de ações e objetos Nomeação de ações e objetos Definição da função de objetos Reconhecimento da função de objetos Reconhecimento gestos transitivos Discussão (<=4) (5-8) (9+) Grupo Escolaridade Grupo x escolaridade GC Média 19,7 19,9 20,0 0,3076 0,0608 0,7221 DP 0,8 0,3 0,0 GA Média 19,5 19,8 20,0 DP 0,9 0,7 0,0 GC Média 19,6 19,9 19,6 0,0002* 0,4290 0,5802 DP 0,6 0,5 0,6 GA Média 16,9 17,6 16,9 DP 4,8 3,4 4,1 N 10 9 8 GC Média 9,8 10,0 10,0 0,0002* 0,7714 0,9797 DP 0,4 0,0 0,0 GA Média 8,2 8,6 8,5 DP 3,0 2,4 1,5 GC Média 9,9 9,9 9,9 0,0024* 0,2992 0,2871 DP 0,3 0,3 0,3 GA Média 9,4 9,7 9,8 DP 0,7 0,7 0,5 GC Média 7,5 8,9 9,5 0,1283 <0,0001* DP 1,9 0,9 0,8 (<=4) < (5-8) = (9+) GA Média 8,2 9,6 9,6 DP 1,9 0,5 0,5 Praxia Ideomotora GC Média DP 4,2 1,0 4,4 0,9 5,0 0,9 0,4413 0,0001* (<=4) < (5-8) < (9+) GA Média 3,5 4,2 5,4 DP 1,1 1,1 0,7 Praxia ideatória GC Média DP 13,7 2,6 15,1 1,7 16,6 1,5 0,0011* <0,0001* (<=4) < (5-8) < (9+) GA Média 10,9 14,0 15,3 DP 2,6 1,9 1,8 Gestos simbólicos GC Média DP 2,4 0,5 2,5 0,5 2,9 0,4 0,1242 0,0217* (<=4) = (5-8) < (9+) Imitação gestos estáticos Imitação gestos dinâmicos GA Média 2,3 2,2 2,6 DP 0,6 0,7 0,5 GC Média 7,0 7,2 7,7 0,1207 0,0008* DP 1,1 0,9 0,5 (<=4) < (5-8) = (9+) GA Média 5,8 7,2 7,6 DP 1,9 0,8 1,1 GC Média 3,5 5,1 5,4 0,0003* <0,0001* DP 1,2 1,2 0,9 (<=4) < (5-8) = (9+) GA Média 1,8 4,3 4,5 DP 1,2 1,3 1,2 0,7257 0,1588 0,3194 0,9158 0,1146 0,2963
Acredita-se que variações nas habilidades cognitivas de atenção, processamento de informações visuo-espaciais e memória operacional, descritas com o aumento da idade e associadas a escolaridades mais baixas 13-15,22 possam ter interferido no desempenho dos indivíduos saudáveis e afásicos nos subtestes que se mostraram sensíveis a essas variáveis. Quanto ao impacto da lesão cerebral nas tarefas estritamente lingüísticas, este provavelmente se deveu aos distúrbios de linguagem presentes nos quadros afásicos. Já nos subtestes praxia ideatória e imitação de gestos sem significado, acreditamos que falhas no acesso léxico-semântico, previstas nas afasias, possam ter dificultado o acesso às representações gestuais durante a produção de pantomimas (subteste de praxia ideatória). Além disso, estas mesmas falhas, associadas a déficits no processamento fonológico, podem ter inviabilizado a decodificação da informação visuo-espacial (movimentos observados) em informação lexical, bem como a reverberação dessa informação na alça fonológica, como compensação às dificuldades no processamento do componente visuo-espacial da memória operacional, durante a imitação de gestos sem significado em sequência (subteste de imitação dinâmica). Ainda é válido ressaltar que a escolaridade parece exercer efeito protetor 22 sobre as habilidades práxicas avaliadas nos subtestes praxia ideatória e imitação dinâmica de gestos sem significado, uma vez que, nessas tarefas, a discrepância entre os grupos torna-se qualitativamente menor, quanto maior a escolaridade. Conclusão: A variável demográfica que mais influenciou o desempenho de indivíduos saudáveis e afásicos em uma bateria de avaliação de praxia de membros foi a escolaridade, sendo a idade e a lesão cerebral, essa última apenas no grupo afásico, menos impactantes. A escolaridade, além disso, parece exercer um efeito protetor, na presença de lesão cerebral. Referências bibliográficas: 1. Geschwind N. The apraxias: neural mechanisms of disorders of learned movement. American Scientist 1975;63:188-195. 2. Carrilho PEM. Apraxias ideomotora e ideatória. In: Nitrini R, Caramelli P, Mansur LL. Neuropsicologia das bases anatômicas à reabilitação. São Paulo: Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1996. 3. Geschwind N. Disconnexion syndromes in animals and man. Brain 1965; 88:237-294.
4. De Renzi E, Pieczuro A, Vignolo LA. Ideational apraxia: a quantitative study. Neuropsychologia 1968;6(1):41-52. 5. Goldenberg G. Imitating gestures and manipulating a manikin the representation of the human body in ideomotor apraxia. Neuropsychologia 1995;33(1):63-72. 6. Goldenberg G, Hermsdörfer J, Spatt J. Ideomotor apraxia and cerebral dominance for motor control. Cognitive brain research 1996;3:95-100. 7. Raymer AM, Maher LM, Foundas AL, Heilman KM, Rothi LJG. The significance os tool errors in limb apraxia. Brain and cognition 1997;34:287-292. 8. Schnider A, Hanlon RE, Alexander DN, Benson DF. Ideomotor apraxia: behavioral dimensions and neuroanatomical basis. Brain and language 1997;58:125-136. 9. Hanna-Pladdy B, Daniels SK, Fieselman MA, Thompson K, Vasterling JJ, Heilman KM, Foundas AL. Praxis lateralization: errors in right and left hemisphere stroke. Cortex 2001;37:219-230. 10. Rothi LJ, Ochipa C, Heilman KM. A cognitive neuropsychological model of limb praxis and apraxia. In: Rothi LJ, Heilman KM. Apraxia: the neuropsychology of action. Psychology Press:1997. p. 29-50. 11. Cubelli R, Marchetti C, Boscolo G e Sala SD. Cognition in action: testing a model of limb apraxia. Brain and Cognition 2000;44:144-165. 12. Goldenberg G, Strauss S. Hemisphere asymmetries for imitation of novel gestures. Neurology 2002;59:893-897. 13. Ardila A, Rosselli M, Rosas P. Neuropsychological assessment in illiterates: visuospatial and memory abilities. Brain and cognition 1989;11(2):147-166. 14. Cangoz B, Karakoc E, Selekler K. Trail making test: normative data for Turkish elderly population by age, sex and education. Journal of the neurological sciences 2009;In Press, corrected proof, available online. 15. De Luccia GCP. Relação entre distúrbios de cálculos e distúrbios da linguagem em adultos com lesão cerebral. [Tese de doutorado]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2008. 16. Kukolja J, Thiel CM, Wilms M, Mirzazade S, Fink GR. Ageing-related changes of neural activity associated with spatial contextual memory. Neurobiology of ageing 2009;30:630-645. 17. Mansur LL, Radanovic M, Araújo GC, Taquemori LY, Greco LL. Teste de nomeação de Boston: desempenho de uma população de São Paulo. Pró-fono revista de atualização científica 2006;18:13-20. 18. Reis A, Petersson KM, Castro-Caldas A, Ingvar M. Formal schooling influences two- but not three-dimensional naming skills. Brain and cognition 2001;47:397-411.
19. Reis A, Faísca L, Ingvar M, Petersson KM. Color makes a difference: two-dimensional object naming in literate and illiterate subjects. Brain and cognition 2006;60:49-54. 20. Radanovic M, Mansur LL, Scaff M. Normative data for the Brazilian population in the Boston Diagnostic Aphasia Examination: influence of schooling. Brazilian journal of medical and biological research 2004;37:1731-1738. 21. Mantovani-Nagaoka J. Desempenho de indivíduos saudáveis e afásicos em bateria de avaliação de praxia de membros. [Tese de mestrado]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2009. 22. Ardila A, Ostrosky-Solis F, Rosselli M, Gomez C. Age-related cognitive decline during normal aging: the complex effect of education. Archives of clinical neuropsychology 2000; 15(6):495-513.