HIPERATIVIDADE E DÉFICIT DE ATENÇÃO NA CLÍNICA COM CRIANÇAS

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HIPERATIVIDADE E DÉFICIT DE ATENÇÃO NA CLÍNICA COM CRIANÇAS Gerson Smiech Pinho 1 Tem sido cada vez mais freqüente a chegada a tratamento psicanalítico e psicoterápico de crianças e adolescentes com o diagnóstico de TDAH, Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade. Segundo o DSM-IV, a característica essencial desse transtorno é um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade, que é mais freqüente e grave que o observado habitualmente em sujeitos de um nível de desenvolvimento similar. Entre os critérios diagnósticos assinalados, destaca-se, ainda, que o TDAH não aparece no transcurso de um transtorno generalizado do desenvolvimento, esquizofrenia ou outro transtorno psicótico, e não se aplica na presença de outro transtorno mental. A partir dessa definição, chama a atenção a diversidade de situações que se apresentam sob essa denominação tenho encontrado desde crianças pequenas cuja pouca atenção e grande atividade motora (típicas dos primeiros anos) é excessivamente intensa, até crianças e adolescentes cuja dificuldade de atenção relaciona-se a quadros psicóticos, melancólicos ou a importantes defasagens cognitivas. Tal heterogeneidade aponta para o uso indiscriminado desse diagnóstico, que, por tornar-se tão abrangente, acaba não levando em conta os próprios critérios delimitados pelo DSM-IV. Além disso, o diagnóstico de TDAH traz consigo importantes implicações terapêuticas. O Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade é a denominação que substituiu as de Lesão cerebral mínima e Disfunção cerebral mínima, conservando delas o pressuposto de um déficit neurocerebral. Como assinala Marcelli (1998), mesmo que os autores reconheçam nem sempre encontrar lesão orgânica, a existência destas últimas constitui o a priori inicial sobre o qual é baseada a síndrome (p.284). É verdade que a dicotomia entre o orgânico e o psíquico já nos parece um tanto ultrapassada. Porém, se o suposto de um organismo deficitário é o único sentido atribuído a 1 Psicólogo e psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, mestre em psicologia social e institucional pela UFRGS.

essa configuração sintomática, temos como conseqüência o apagamento do sujeito que procura manifestar-se ao colocar a mesma em cena. Nesse ponto, a contribuição da psicanálise e sua articulação com o campo da psicomotricidade torna-se fundamental, pois permite situar a estrutura subjetiva em questão, para além da fenomenologia do sintoma. O TDAH relaciona-se com o tipo de sintomatologia que, na clínica psicomotora, denomina-se instabilidade psicomotora. De acordo com Marcelli (1998), a instabilidade motora propriamente dita, na qual a criança está permanentemente em movimento, distingue-se da desatenção ou instabilidade psíquica. Apesar destas duas formas encontrarem-se associadas na maior parte dos casos, uma delas pode sobressair-se em relação à outra. Mas, quais interrogações a instabilidade psicomotora coloca em jogo em relação a constituição de um sujeito? Uma primeira questão importante, assinalada por diversos autores, é a presença permanente do olhar do Outro sobre o corpo da criança instável ou hipercinética. Bergès e Balbo, por exemplo, afirmam que nessas crianças instáveis, a mãe assegura que, se ela deixa de olhá-la, é a catástrofe. Se ela cessa de tomá-la no campo de seu olhar, de teleguiar sua hipercinesia em seu olhar, a partir de então seu próprio desejo será posto a descoberto e é a catástrofe (2001, p.98). Levin (1995) também sublinha a presença permanente do olhar do Outro, dirigido ao corpo em movimento incessante da criança instável. Esse autor articula essa presença à fragilidade do corte que possibilitaria a separação do sujeito em relação ao Outro. A criança hiperativa fica capturada na posição de objeto de gozo diante do olhar do Outro encarnado pelo agente materno. Em alguns casos de instabilidade, encontramos um estado permanente de tensão, de elevação do tônus muscular, o qual funciona como uma espécie de limite, de armadura que evita a desintegração e dispersão corporal. Para pensar o modo como se estabelece esta fragilidade e pouca diferenciação na relação com o Outro, Bergès e Balbo (2001) propõe que, no caso das crianças hipercinéticas, é bem o discurso materno que faltou (p.72). Aqui, o discurso materno é proposto como aquilo que permite situar o limite em relação a excitação presente no contato corporal entre a mãe e seu bebê.

Segundo esses autores, enquanto cuida de sua criança, uma mãe articula e sustenta um discurso que introduz o simbólico no toque do corpo. Os cuidados corporais podem ser pensados como participando da função de pára-excitação, ultrapassando em muito a mera constituição de um ambiente de sustentação a partir da necessidade da criança. As palavras maternas permitem encadear algo à excitação agradável experimentada pela criança e recalcar os excessos dessa excitação. Clinicamente, interessa interrogarmos o destino dessa excitação, na medida em que o discurso sustentado pela mãe possa ser frágil ou pouco presente. Desde então se coloca a questão do déficit ou do excesso de funcionamento desencadeado por essa excitação entre uma satisfação ou um gozo que se arrisca a ser sem limite (Bergès e Balbo, 2001, p.73). Esta ausência de limite no contato corporal, geradora de tensão e excitação, pode ser pensada como presente no excesso de descarga motora da criança hiperativa. Quando uma mãe grita diante de uma criança que se agita, torna-se cada vez maior a excitação corporal. Nessa situação, a fala da mãe, ao invés de ser recalcante, torna-se uma excitação verbal que acompanha ou agrava a excitação corporal da criança. Outra questão, ainda, é o interessante paradoxo apontado por Bergès e Balbo (2001), em relação às crianças instáveis e hipercinéticas. Apesar de serem desatentas, de parecerem estar desligadas ou no mundo da lua e apresentarem um excesso motor que implica em não poderem ouvir, estas crianças geralmente encontram-se em um estado de extrema vigilância. Assim, mostram-se atentas diante de um ruído discreto que vem da rua, o qual permanece imperceptível à maioria das pessoas por estar em segundo plano. Como explicar esta intensa atenção em alguém tão desatento? A interpretação desses autores é de que essa posição de hipervigilância vem de algum modo mostrar a espera de um percepto da cena primitiva, cuja repetição teria como função manter e preservar o gozo dos pais. Dessa forma, no imaginário da criança, seu corpo é sentido como estranho por ser o lugar de um gozo que lhe é estranho, por ser o gozo experimentado pelos pais. Fica evidente pelas questões até aqui propostas que, no caso das crianças hipercinéticas, a atenção e a função motora encontram-se afetadas e alteradas pelo excesso de excitação decorrente da fragilidade do limite ao gozo, que somente a função da palavra poderia situar.

Mas, de que forma poderíamos situar a extrema disseminação dessa forma sintomática, hoje? (obviamente, deixando de lado os equívocos diagnósticos assinalados no início desse escrito) Melman (2003) propõe algumas questões a respeito da condição subjetiva moderna que permitem pensar na extensa proliferação do diagnóstico de hiperatividade na contemporaneidade. Segundo esse autor, o sujeito com o qual lidamos, hoje, é um sujeito atópico. Isto significa que trata-se de um sujeito que tem uma dificuldade extrema de encontrar seu lugar, que parece não ter consistência, sem projeto fixo ou votos que lhe seriam pessoais. Ao longo de muitos anos, a presença dos grandes textos da cultura serviram como lugares organizados pela linguagem, como Outros, que designavam o comportamento, modo de pensamento e destino dos humanos. Uma das grandes características de nossa cultura atual é a queda desses grandes textos, propiciando a prevalência de um diálogo horizontal com o semelhante, com os outros, sem levar em conta as mensagens que poderiam vir do Outro. A ausência, no tecido social, de uma referência simbólica desde a qual possa se situar, joga o sujeito num campo de indeterminação que conduz a essa atopia, essa falta de lugar referida por Melman (2003). Para exemplificar essa posição, esse autor menciona três casos de pacientes: dois jovens que não podem ficar em um lugar, mexem-se o tempo todo (um deles fazendo substituições em seu trabalho, o outro através de viagens) e uma criança hiperativa de três anos de idade. Para esse autor, essas situações são o testemunho do que acontece a um sujeito que não pode encontrar um lugar validado na tripla dimensão do Real, em um mundo em que tudo é possível e no qual nada vem a fazer limite ao gozo. A hiperatividade é um sintoma que manifesta a ausência de lugar para o sujeito e a busca feita para situá-lo. É uma tentativa de delimitar um lugar simbolicamente, descolado do olhar do Outro, que situaria um intervalo em relação ao gozo e possibilitaria a emergência do desejo. Em que medida poderíamos pensar a hiperatividade como uma patologia típica de nosso tempo, sintoma social de nossa época, a agitar o corpo das crianças de hoje? Penso que esta é uma importante questão que permanece aberta, que insiste em se fazer ouvir, apesar das tentativas de reduzir a hiperatividade à manifestação unívoca de um organismo

deficitário. Ao contrário, talvez possamos tomá-la como manifestação paradigmática de um sujeito, que se movimenta de maneira errante, na procura de um lugar para si. Referências bibliográficas: 1. BERGÈS, Jean & BALBO, Gabriel. A atualidade das teorias sexuais infantis. Porto Alegre: CMC editora, 2001. 2. DSM-IV. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 3. LEVIN, Esteban. A clínica psicomotora. Petrópolis: Vozes, 1995. 4. MARCELLI, D. Manual de psicopatologia da infância de Ajuriaguerra. Porto Alegre: Artes médicas, 1998. 5. MELMAN, Charles. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. CMC editora, 2003.