Monica Aiub é filósofa clínica e dirige o Interseção (Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo).

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Transcrição:

Interfaces da clínica filosófica 1 A clínica filosófica se estabelece a partir do diálogo investigativo, provocando o partilhante a refletir sobre suas questões, a avaliar a construção e o fundamento de suas crenças, a pensar sobre suas formas de vida, a investigar o universo no qual vive. Monica Aiub é filósofa clínica e dirige o Interseção (Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo). Partilhante. Este é o nome atribuído àquele que procura o consultório de filosofia clínica. O nome significa aquele que partilha suas questões, sua historicidade, as descobertas e inquietações de sua existência, as dificuldades e desafios da vida. A partilha com o filósofo clínico tem como objetivo pensar junto com o outro; mas o filósofo clínico apenas acompanha as questões, busca compreender a gênese delas e os movimentos existenciais por elas promovidos e, quando necessário e possível, provoca o partilhante a pensar sobre suas maneiras de ser, pensar e agir, auxiliando-o, na medida das possibilidades, a buscar formas para lidar com os problemas que o levaram a procurar a clínica. Em maioria, nossos partilhantes são indicados por outros partilhantes, que passaram pelo consultório e consideraram pertinente indicar a seus amigos. Também buscam o consultório pessoas que assistiram a palestras, leram entrevistas ou artigos sobre o tema e decidiram conhecer um pouco melhor o trabalho em filosofia clínica. Mas, nos últimos anos, tem sido comum recebermos, em nossos consultórios, pessoas encaminhadas por médicos, de diferentes especialidades, em especial, psiquiatras. Nestes casos, é comum algum estranhamento do partilhante, que chega questionando: Não sei muito bem o que é este trabalho, mas procurei o médico e ele, após verificar que eu não tenho problemas a serem tratados lá (ou após ter prescrito algum medicamento ou outra forma de tratamento médico), disse que meu problema é filosófico e que deveria vir aqui. Não entendi muito bem, mas como ele disse que seria bom, estou aqui para saber como isto funciona. Outra versão é a pessoa afirmar que, após a indicação médica, procurou informações na internet, leu a respeito e considerou que seria uma boa escolha. Em geral, tais partilhantes apresentam questões existenciais, ou circunstanciais, que exigem revisão em seus modos de vida, mudanças de hábitos, transformações de mentalidade, leitura e compreensão do mundo circundante, composição de formas para se relacionar, ou outros procedimentos distantes dos procedimentos farmacológicos ou cirúrgicos, de natureza médica. Obviamente, nosso trabalho em filosofia clínica não prescinde do trabalho do médico, com quem estabelecemos parceria no acompanhamento do caso daquele partilhante. Da mesma maneira, quando um partilhante procura nosso consultório com indícios de questões que possam ser da área médica, ou apresenta sinais e sintomas de tais questões, encaminhamos a pessoa para avaliação médica e, se necessário, trabalhamos em conjunto com o médico. Nos cursos de formação em filosofia clínica temos aulas com médicos que nos ensinam a observar tais sinais e sintomas. 1 Artigo publicado na revista Psique.

Na interface com a medicina, é importante acompanhar os movimentos existenciais e também orgânicos do partilhante, o que muitas vezes nos faz partilhar pesquisas e conhecimentos com os colegas médicos, neurocientistas, fisioterapeutas, educadores, entre outros. Ideias confusas ou delírios, muitas vezes, podem ser indicativos de intoxicações, desnutrição, enfim, algum desequilíbrio orgânico. Assim como um desequilíbrio orgânico pode ser indicativo de algum problema existencial a ser resolvido. Nesta interface, a relação mente-corpo é um tópico a ser aprofundado. Há também partilhantes que são indicados por seus psicólogos, para que tratem as questões existenciais no consultório de filosofia clínica, enquanto continuam tratando suas questões psicológicas no consultório de seu psicólogo. Neste caso também nos tornamos profissionais parceiros, trabalhando juntos para auxiliar a pessoa em suas questões. Da mesma maneira que, ao identificarmos uma questão de ordem médica, encaminhamos o partilhante para avaliação médica; se observarmos questões de ordem psicológica, encaminharemos ao psicólogo. Na interface com a psicologia, a filosofia clínica se caracteriza por ser filosofia. Propondo o pensar por si mesmo, avaliar seu entorno e seu posicionamento diante dele, assim como motivos, consequências, ressonâncias e outras implicações destas diferentes e múltiplas interseções da vida. A clínica filosófica se estabelece a partir do diálogo investigativo, provocando o partilhante a refletir sobre suas questões, a avaliar a construção e o fundamento de suas crenças, a pensar sobre suas formas de vida, a investigar o universo no qual vive. O filósofo clínico, por sua vez, mantém-se no não saber e, consequentemente, com abertura e disposição à compreensão das diferentes formas que se revelam nas existências singulares de cada ser humano, tendo como tarefa a provocação ao pensar, à investigação. Quando uma pessoa chega ao consultório de filosofia clínica com suas questões, o filósofo clínico nada sabe sobre ela, e não formula teorias prévias, nem parte de teses já formuladas para situar o relato da pessoa. Sendo característica fundamental do conhecimento filosófico ser contextualizado, é imprescindível ao filósofo clínico pesquisar os contextos nos quais o partilhante e suas questões se inserem. Por isso, diante da questão colocada, o primeiro passo é pedir mais dados a respeito, contextos, a história do problema. Abordar um problema sem a sua história, sem compreender sua gênese, significa, em filosofia, tratá-lo superficialmente. Contudo, o quadro traçado através do histórico do problema será, ainda, para uma pesquisa filosófica, superficial. Para compreender os problemas filosóficos é preciso situá-los na história, compreendê-los com um olhar mais abrangente e, para tal, faz-se necessário achar um começo. Mas qual o começo? Como encontrá-lo? Tarefa difícil, que nos faz retroagir, por vezes, às origens da filosofia. Na clínica, retornamos às origens do partilhante. De volta às origens Para situar o partilhante no universo que o circunda, para compreender como ele se relaciona e se constitui a partir das vivências neste universo, para obter dados sobre as formas que ele utiliza para lidar com as suas questões e os resultados que obtém com tais formas, o filósofo clínico parte da historicidade da pessoa. A história relata os fatos, a historicidade revela como significamos o vivido. Assim, a partir do histórico do partilhante, com o mínimo possível de interferências por parte do filósofo clínico, os dados para o trabalho clínico são coletados. Enquanto o partilhante conta a sua historicidade, o filósofo clínico observa os três eixos do instrumental da filosofia clínica (PACKTER, 1997; AIUB, 2008). No primeiro eixo, os denominados Exames Categoriais: Assunto, Circunstância, Lugar, Tempo e

Relação são as categorias observadas. São elas, na verdade, instrumentos de observação do universo que circunda o partilhante. O objetivo de notar tais categorias é ter a compreensão do partilhante e de suas questões a partir dos contextos vividos e das possíveis relações estabelecidas entre a pessoa e tais contextos e, ao mesmo tempo, ter o conhecimento do universo no qual ele se insere atualmente, a fim de obter dados do mundo em que habita para estudar, juntamente com ele, possibilidades para lidar com as questões existenciais, fundamentadas em dados pesquisados neste entorno. O segundo eixo, denominado Estrutura de Pensamento, traz 30 tópicos que compreendem o modo de ser em movimento, pois constituído a partir de suas vivências da pessoa. Visão de mundo e de si mesma, emoções, sensações, buscas, pré-juízos, papéis existenciais, expressividade, semiose, entre outros, são muitos os pontos observados [Veja quadro1]. Todavia, o critério de observação são os padrões próprios de cada pessoa, ou seja, como os diferentes tópicos se articulam entre si nos diversos contextos vividos por ela. O terceiro eixo, Submodos, apresenta as formas que o partilhante utiliza para lidar com suas questões, avaliando o resultado que, habitualmente, tais formas permitem a ele. São 32 Submodos [Veja quadro 2] que, em geral, aparecem associados entre si, compondo múltiplas formas. A cada consulta, os dados são atualizados, acompanhando as movimentações existenciais do partilhante. Após contar a historicidade que pode incluir outros veículos de expressão além da fala (textos, fotos, músicas, desenhos, pinturas etc.), a historicidade é dividida em partes menores, e contada diferentes e subsequentes vezes, permitindo o acesso a outros dados, ou a outras versões que se revelam ou são criadas. Isto significa que não temos uma única versão para o vivido. A criação de novas versões, de novos significados, permite a plasticidade em nossas formas de vida. Neste momento, o conhecimento dos Exames Categoriais fornece ao filósofo clínico os elementos para provocar a pessoa a pensar no fundamento empírico e nas consequências de tais construções. A plasticidade, definida como a capacidade que os organismos vivos possuem para modificar sua composição ou sua organização e, consequentemente, modificar algumas de suas funções (BUNGE, 2002), transforma a nós e ao mundo a nossa volta. Muitas vezes, somente o fato de relatar sua historicidade provoca movimentações no partilhante, levando a novos hábitos e posicionamentos. São os movimentos existenciais, a plasticidade, e a singularidade na constituição de formas de vida que são considerados pelo filósofo clínico para suas intervenções, suas provocações ao pensar. A partir da observação dos movimentos, o filósofo clínico se aproxima do universo existencial e da linguagem do partilhante. Fazendo uso dos elementos ali existentes, dá sequência aos procedimentos clínicos. Próximos passos Os procedimentos seguintes, denominados enraizamentos, aprofundam a pesquisa sobre o significado dos termos, eventos e formas de organização da estrutura de pensamento. Neste momento, o filósofo clínico, que no início do processo era essencialmente um ouvinte, passa a interagir mais com o partilhante, a partir de uma linguagem comum estabelecida, respeitando os modos de ser, pensar e agir dele. Os estudos em lógica e filosofia da linguagem são de grande importância para tais procedimentos.

Com os dados coletados acerca dos contextos e dos modos de ser e agir do partilhante, tendo estudado sua linguagem e suas formas de atribuir significados, o filósofo clínico faz uso dos procedimentos clínicos, também denominados Submodos, provocando a pessoa, através de seus processos reflexivos, a novas movimentações existenciais. Não há uma maneira padrão para se provocar tais movimentações. Para cada pessoa, os procedimentos são construídos de maneiras próprias, únicas, respeitando as necessidades e possibilidades apresentadas em clínica. Qual o objetivo da filosofia clínica? Quem traça é o partilhante, não sem antes ser provocado a refletir sobre o que traça e por quais motivos o faz e quais as consequências advindas de uma escolha por tais caminhos. Todo o instrumental é fundamentado em métodos filosóficos, mas para além de uma aplicação da metodologia filosófica a fim de lidar com as questões cotidianas, a filosofia clínica é o próprio processo de reflexão filosófica, possibilitando ao partilhante a leitura de seus contextos, a compreensão da gênese de suas questões e a consequente construção de novas e possíveis formas de vida. Esta movimentação, esta construção de novas formas de vida, é denominada, em clínica, autogenia e, por si, já poderia provocar novas constituições para o partilhante, tendo seus fundamentos no conceito de plasticidade. Compreendendo o organismo como um sistema, se a alteração de um sistema ou de um de seus elementos pode modificar um estado mental, esta modificação poderá provocar outras alterações no sistema, inclusive físicas. A partir desta hipótese, conseguiríamos explicar os motivos pelos quais a filosofia, e outras formas terapêuticas, podem acarretar mudanças no comportamento, nos pensamentos, assim como modificações de ordem orgânica. Neste ponto, a interface com as pesquisas em biologia, neurociência e em filosofia da mente é imprescindível. Não havendo, em filosofia clínica, teorias prévias que expliquem o ser humano e indiquem caminhos, temos um trabalho singular. Nele são observados os padrões da própria pessoa, que podem se modificar com o tempo, por alterações vindas do próprio funcionamento do sistema orgânico ou das interações deste com o meio. Se não há padrões prévios, é preciso acompanhar a plasticidade, o movimento existencial da pessoa com quem se trabalha. Contudo, não haver padrões previamente estabelecidos, teorias das quais se parta, não significa que não há parâmetros, critérios e métodos. Ao contrário, sendo nossa metodologia filosófica, ela contém o rigor epistemológico exigido na filosofia para o tratamento de suas questões. E aqui o papel da epistemologia e das lógicas se estabelece com clareza. A pessoa contar sua historicidade, refletir sobre o vivido, investigar seus contextos, poderia ter alguma eficácia no que se refere a questões orgânicas? Distinguindo a memória humana da dos computadores, observamos propensões a ativar certos circuitos neurais, mapas, enquanto contamos nossa história. Os mapas ativados não são necessariamente os mesmos, o que denotaria modificações importantes no passado. Isto significa que não o revivemos fielmente ao contar nossa historicidade (EDELMAN, 1987, 2006; ROSENFIELD, 1994; DENNETT, 1991). Apenas ativamos conexões neuronais, reativando mapas corporais e mapas externos. A cada momento, recontamos a historicidade, construindo novos caminhos neurais, o que às vezes traz implicações para o organismo.

Em sua interface com a filosofia da mente, com a neurociência, a filosofia clínica articula as questões apresentadas pelo partilhante com as recentes pesquisas e reflexões destas novas áreas do saber, buscando uma compreensão mais ampla das possíveis formas para se lidar com o cotidiano. Que tipo de questões provocam tal interface? A angústia oriunda dos limites traçados pela doença e pela morte; as doenças derivadas dos modos de vida contemporâneos, tais como a depressão como doença do século XXI, em seus fatores sociais, políticos e existenciais; a incorporação da tecnologia e suas consequentes alterações nas relações humanas, nos modos de vida e, principalmente, na própria definição do significado de humanidade; a expressividade e o significado dos diferentes dados de semiose utilizados na comunicação; e inúmeras, infindáveis questões que surgem na bela e difícil tarefa da existência. Contudo, assim como não nos é possível partir de uma teoria prévia sobre a existência, não há como partir de teorias prévias sobre o problema mente-corpo. Por isso, a abordagem das questões aqui elencadas e de outras questões existenciais exige um diálogo com as diferentes teorias da mente. Um diálogo que tem como eixo condutor não a defesa de uma teoria, mas a pesquisa acerca de uma questão. Isso porque partir de uma teoria implica num recorte específico para o tratamento da questão; nem sempre o melhor recorte, entre tantos possíveis (AIUB, 2009). Quadro 1 Estrutura de Pensamento 1. Como o mundo parece 2. O que acha de si mesmo 3. Sensorial & Abstrato 4. Emoções 5. Pré-Juízos 6. Termos agendados no Intelecto 7. Termos: Universal, Particular e Singular 8. Termos: Unívoco e Equívoco 9. Discurso Completo e Incompleto 10. Estruturação de Raciocínio 11. Busca 12. Paixões Dominantes 13. Comportamento e Função 14. Espacialidade: Inversão Recíproca de Inversão Deslocamento Curto Deslocamento Longo 15. Semiose 16. Significado 17. Armadilha Conceitual 18. Axiologia 19. Tópico de Singularidade Existencial 20. Epistemologia 21. Expressividade 22. Papel Existencial 23. Ação 24. Hipótese 25. Experimentação

26. Princípios de Verdade 27. Análise da Estrutura 28. Interseções de Estrutura de Pensamento 29. Matemática Simbólica 30. Autogenia Quadro 2 Submodos 1. Em direção ao termo singular 2. Em direção ao termo universal 3. Em direção às sensações 4. Em direção às ideias complexas 5. Esquema resolutivo 6. Em direção ao desfecho 7. Inversão 8. Recíproca de inversão 9. Divisão 10. Argumentação derivada 11. Atalho 12. Busca 13. Deslocamento curto 14. Deslocamento longo 15. Adição 16. Roteirizar 17. Percepcionar 18. Esteticidade 19. Esteticidade seletiva 20. Tradução 21. Informação dirigida 22. Vice-conceito 23. Intuição 24. Retroação 25. Intencionalidade dirigida 26. Axiologia 27. Autogenia 28. Epistemologia 29. Reconstrução 30. Análise indireta 31. Expressividade 32. Princípios de verdade Para saber mais: AIUB, M. Como ler a filosofia clínica: Prática da autonomia do pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.. Filosofia da mente e psicoterapias. Rio de Janeiro: WAK, 2009.. Para entender filosofia clínica: o apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2008.

PACKTER, L. Filosofia Clínica: Propedêutica. Porto Alegre: AGE, 1997. TEIXEIRA, J. F. Como ler a filosofia da mente. São Paulo: Paulus, 2008. www.anfic.org site da Associação Nacional de Filósofos Clínicos. www.filosofiaclinica.com.br site do Instituto Packter Porto Alegre. www.institutointersecao.com site do Instituto Interseção São Paulo. www.filosofiadamente.org site sobre Filosofia da Mente. Referências Bibliográficas AIUB, M. Filosofia da Mente e Psicoterapias. Rio de Janeiro: WAK, 2009.. Para entender filosofia clínica. Rio de Janeiro: WAK, 2008. BUNGE, M.El problema mente-cerebro. Madrid: Tecnos, 2002. DENNETT, D. Consciousness Explained. Boston: Little, Brown, 1991. EDELMAN, G. Neural Darwinism. Nova York: Basic Books, 1987.. Second Nature. London: Yale University Press, 2006. PACKTER, L. Filosofia Clínica: Propedêutica. Porto Alegre: AGE, 1997. ROSENFIELD, I. A invenção da memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.