Aplicação da nova Classificação da Insuficiência Cardíaca (ACC/AHA) na Cardiopatia Chagásica Crônica: Análise crítica das curvas de sobrevida

Documentos relacionados
Mecanismo de Morte e Grau de Acometimento Miocárdico na Fase Crônica da Doença de Chagas

Incidência e Preditores de Morte Súbita na Cardiopatia Chagásica Crônica com Função Sistólica Preservada

Valor Prognóstico Independente da Taquicardia Ventricular Não-Sustentada na Fase Crônica da Doença de Chagas

SCA Estratificação de Risco Teste de exercício

DR. CARLOS ROBERTO CAMPOS INSUFICIÊNCIA MITRAL (I.M.I)

BENEFIT e CHAGASICS TRIAL

8 Sérgio Salles Xavier, Andréa Silvestre de Sousa, Hécio Affonso de Carvalho Filho, Marcelo Teixeira de Holanda, Alejandro Hasslocher-Moreno

Detecção precoce de cardiotoxicidade no doente oncológico deve ser efectuada sistematicamente? Andreia Magalhães Hospital de Santa Maria

Curso de Reciclagem em Cardiologia ESTENOSE VALVAR AÓRTICA

16/04/2015. Insuficiência Cardíaca e DPOC. Roberto Stirbulov FCM da Santa Casa de SP

ONTARGET - Telmisartan, Ramipril, or Both in Patients at High Risk for Vascular Events N Engl J Med 2008;358:

DÚVIDAS FREQUENTES NO EXAME CARDIOLÓGICO NO EXAME DE APTIDÃO FÍSICA E MENTAL

Estratificação de risco cardiovascular no perioperatório

O Valor Prognóstico da Largura do QRS nos Pacientes com Cardiopatia Chagásica Crônica

O ECG nas síndromes coronárias isquêmicas

XVI Congresso de Cardiologia. de Mato Grosso do Sul

Monitorização Eletrocardiográfica Ambulatorial. Helcio Garcia Nascimento

I. RESUMO TROMBOEMBOLISMO VENOSO APÓS O TRANSPLANTE PULMONAR EM ADULTOS: UM EVENTO FREQUENTE E ASSOCIADO A UMA SOBREVIDA REDUZIDA.

INSUFICIÊNCIA CARDÍACA COM FUNÇÃO VENTRICULAR PRESERVADA. Dr. José Maria Peixoto

Prova de Esforço. Ana Mota

SISTEMA CARDIOVASCULAR

A função sistólica ventricular direita e a função diastólica ventricular esquerda como preditores de mortalidade na hipertensão arterial pulmonar

CRITÉRIOS E EXAMES COMPLEMENTARES PARA REALIZAÇÃO DE ANESTESIA PARA EXAMES DIAGNÓSTICOS

AVALIAÇÃO DA RESPOSTA IMUNE EM PACIENTES COM LEISHMANIOSE MUCOSA TRATADOS COM ANTIMONIAL

Risco da transmissão da Doença de Chagas por via oral

Ecocardiograma e eletrocardiograma. Análise das Imagens

Doença de Chagas em Virgem da Lapa, Minas Gerais, Brasil. IV. Aspectos clínicos e epidemiológicos do aneurisma ventricular esquerdo

Boletim Científico SBCCV

Disciplina de Enfermagem em Centro de Terapia Intensiva

Atualização Rápida CardioAula 2019

CRONOGRAMA CARDIOAULA TEC 2019 INTENSIVO. ABRIL A SETEMBRO. PROVA: OUTUBRO. 360 horas/aulas. EM 25 SEMANAS

julho A SETEMBRO. PROVA: OUTUBRO. 360 horas/aulas. EM 14 SEMANAS

Avaliação da telelaringoscopia no diagnóstico das lesões benignas da laringe

PROVA DE CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS Cód. 35. Entende-se por comportamento endêmico de uma doença quando:

Memorias Convención Internacional de Salud Pública. Cuba Salud La Habana 3-7 de diciembre de 2012 ISBN

Marcos Sekine Enoch Meira João Pimenta

Curso de capacitação em interpretação de Eletrocardiograma (ECG) Prof Dr Pedro Marcos Carneiro da Cunha Filho

PROGRAMAÇÃO DE ESTÁGIO CARDIOLOGIA

Curso Nacional de Reciclagem em Cardiologia da Região Sul Florianópolis Jamil Mattar Valente

Valor do Estudo Radiológico do Tórax no Diagnóstico de Disfunção Ventricular Esquerda na Doença de Chagas

Índice Remissivo do Volume 31 - Por assunto

Avaliação Ecocardiográfica da Terapia de Ressincronização Cardíaca: Dois anos de seguimento

Estudos de Coorte. Estudos de Coorte: Definição. São conduzidos para: Programa de Pós P

14 de setembro de 2012 sexta-feira

ESTRATIFICAÇÃO DE RISCO CARDIOVASCULAR

Cardiologia do Esporte Aula 2. Profa. Dra. Bruna Oneda

Utilização de diretrizes clínicas e resultados na atenção básica b

JANEIRO A SETEMBRO PROVA: SETEMBRO 257 AULAS E PROVAS EM 34 SEMANAS CRONOGRAMA CARDIOAULA TEC 2018 EXTENSIVO

Apresentação. Ou seja, um livro preparado não só para quem quer ser bem-sucedido em processos seletivos, mas também na carreira médica. Bom estudo!

Impacto prognóstico da Insuficiência Mitral isquémica no EAM sem suprast

SEMIOLOGIA E FISIOLOGIA

CRONOGRAMA CARDIOAULA TEC 2018 INTENSIVO ABRIL A SETEMBRO PROVA: SETEMBRO 257 AULAS E PROVAS

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANMISSIVEIS. Doença Cardiovascular Parte 4. Profª. Tatiane da Silva Campos

Resultados 2018 e Novas Perspectivas. Fábio P. Taniguchi MD, MBA, PhD Investigador Principal

Doença de Chagas associada a doenças crônicas em pacientes assistidos em ambulatório de hospital universitário*

CRONOGRAMA PRÉVIO CARDIOAULA TEC 2019 EXTENSIVO. JANEIRO A SETEMBRO. PROVA: SETEMBRO. 350 horas/aulas. EM 35 SEMANAS

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANMISSIVEIS. Doença Cardiovascular Parte 3. Profª. Tatiane da Silva Campos

BRADIARRITMIAS E BLOQUEIOS ATRIOVENTRICULARES

XII CONGRESSO BRASILEIRO DE ATEROSCLEROSE SESSÃO DE TEMA LIVRES CONFLITO DE INTERESSE: APOIO FAPESP PROJETO 2008/

EVOLUÇÃO DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA CRÔNICA HUMANA NO SERTÃO DO ESTADO DA PARAÍBA, BRASIL, NO PERÍODO DE 4,5 ANOS.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE

Preditores de lesão renal aguda em doentes submetidos a implantação de prótese aórtica por via percutânea

Atlas de Eletrocardiograma

CRONOGRAMA CARDIOAULA TEC 2018 SUPER INTENSIVO JUNHO A SETEMBRO PROVA: SETEMBRO 257 AULAS E PROVAS

Indicadores de Doença Cardiovascular no Estado do Rio de Janeiro com Relevo para a Insuficiência Cardíaca

INFARTO DO MIOCÁRDIO COMPLICADO COM BLOQUEIO DE RAMO DIREITO

INFARTO AGUDO DO MIOCÁRDIO. Dr Achilles Gustavo da Silva

O Processo de Enfermagem aplicado ao Sistema Cardiovascular

Resultados Demográficos, Clínicos, Desempenho e Desfechos em 30 dias. Fábio Taniguchi, MD, MBA, PhD Pesquisador Principal BPC Brasil

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANMISSIVEIS. Doença Cardiovascular Parte 1. Profª. Tatiane da Silva Campos

O meu doente tem um bloqueio cardíaco e um cansaço anormal. O que dizem as guidelines?

Arritmias Cardíacas CLASSIFICAÇÃO. Taquiarritmias. Bradiarritmias. Supraventriculares. Ventriculares

Síndrome Coronariana Aguda

Artigo Original. Reblampa

PROJETO DE EXTENSÃO DE REABILITAÇÃO CARDIORRESPIRATÓRIA

INSUFICIÊNCIA AÓRTICA (I.A.O)

Artigo Original. Estratégias de Prevenção do Acidente Vascular Encefálico Cardioembólico na Doença de Chagas

Angina Estável: Estratificação de Risco e Tratamento Clínico. Dr Anielo Itajubá Leite Greco

SILVANA DE ARAÚJO SILVA PREDITORES DA EVOLUÇÃO DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA CRÔNICA EM PACIENTES SEM DISFUNÇÃO VENTRICULAR ESQUERDA

PROTOCOLO MÉDICO INSUFICIÊNCIA CARDÍACA NA UNIDADE DE EMERGÊNCIA. Área: Médica Versão: 1ª

CDI na miocardiopatia não isquémica

1. Estratificação de risco clínico (cardiovascular global) para Hipertensão Arterial Sistêmica

ISQUEMIA SILENCIOSA É possível detectar o inesperado?

ENDOCARDITE DE VÁLVULA PROTÉSICA REGISTO DE 15 ANOS

Análise de sobrevivência aplicada a pacientes HIV positivos

ESTUDO RADIOLÓGICO LONGITUDINAL DO ESÔFAGO, EM ÁREA ENDÊMICA DE DOENÇA DE CHAGAS, EM UM PERÍODO DE SEIS ANOS

Conflitos de interesse

Atraso na admissão hospitalar de pacientes com acidente vascular cerebral isquêmico: quais fatores podem interferir?

Choque Cardiogênico, Evolução Clínica Imediata e Seguimento. Cardiogenic Shock, Imediate Evoluiton and Late Outcome

Síncope O que fazer no PS? Jeová Cordeiro de Morais Júnior

Curso Nacional de Reciclagem em Cardiologia Região Sul 20 a 24 de setembro de 2006 ACM - Florianópolis

Estudo de polimorfismos genéticos em pacientes com insuficiência cardíaca. Palavras chave: insuficiência cardíaca, gene ECA, polimorfismo D/I

PROGRAMAÇÃO CIENTÍFICA PRELIMINAR

Luís Amaral Ferreira Internato de Radiologia 3º ano Outubro de 2016

INSUFICIÊNCIA CARDÍACA. Leonardo A. M. Zornoff Departamento de Clínica Médica

Papel da monitorização prolongada no diagnóstico da Fibrilação Arterial

aca Tratamento Nelson Siqueira de Morais Campo Grande MS Outubro / 2010

PROVA DO ESFORÇO NA FORMA INDETERMINADA DA DOENÇA DE CHAGAS *

COMISSÃO DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA CCEX. Av. Dr. Arnaldo, 455 1º andar sala 1301 FORMULÁRIO DE PROGRAMA DE COMPLEMENTAÇÃO ESPECIALIZADA

Transcrição:

Revista da SOCERJ - Mai/Jun 2005 227 Artigo Original 6 Aplicação da nova Classificação da Insuficiência Cardíaca (ACC/AHA) na Cardiopatia Chagásica Crônica: Análise crítica das curvas de sobrevida Application of the New Classification of Cardiac Insufficiency (ACC/AHA) in Chronic Chagas Cardiopathy: A critical analysis of the survival curves Sérgio Salles Xavier, Andréa Silvestre de Sousa, Alejandro Hasslocher-Moreno FIOCRUZ, Universidade Federal do Rio de Janeiro Palavras-chave: Doença de Chagas, Insuficiência cardíaca, Classificação Resumo Objetivo: Avaliar a utilidade da aplicação da nova classificação da IC (ACC/AHA) à doença de Chagas, por meio da análise crítica das curvas atuariais de sobrevida dos subgrupos. Métodos: Foi analisada uma coorte de 1053 pacientes com doença de Chagas, recrutados no período de 03/1990 a 03/2002 e acompanhados até 03/2003. Todos foram submetidos a exame clínico, ECG, RX tórax e ECO na admissão. Os pacientes com ECG normal foram excluídos da classificação devido à ausência de casos de IC neste grupo, durante o seguimento. Nos 538 pacientes restantes, a classificação foi aplicada da seguinte forma: no grupo A os pacientes com ECG alterado e ECO normal (n=264); no grupo B os pacientes com ECO alterado sem IC (n=199); no grupo C os pacientes com IC compensada (n=52) e no grupo D os pacientes com IC avançada (n=23). Curvas de sobrevida estratificadas pelos subgrupos foram construídas e comparadas através do teste de log-rank. Resultados: Em um período de acompanhamento de 66±43 meses ocorreram 93 óbitos, 78 de causa cardíaca. As estimativas de sobrevida em 1, em 5 e em 10 anos, de acordo com a classificação, foram: A: 99%, 98%, 91%; B: 99%, 91%, 83%; C: 80%, 45%, 19% e D: 74%, 13%, 0% p<0,0001. No grupo B, a sobrevida variou muito de acordo com a função de VE. Em 5 e em 10 anos foi de 98% e 96% para função normal; 96% e 82% para disfunção leve; 91% e 68% para disfunção moderada; 66% e 58% para disfunção grave p<0,0001. A incidência de IC neste período foi de 0,8% no grupo A e 22% no grupo B. Key-words: Chagas disease, Cardiac insufficiency, Classification Abstract Objective: To evaluate how useful the application of the new classification of HF (ACC/AHA) is in Chagas disease through a critical analysis of the actuarial survival curves of the sub-groups. Methods: A cohort study of 1053 patients with Chagas Disease recruited between March 1990 and March 2002 and followed up until March 2003. All of them underwent clinical examination, ECG, chest X-ray, and ECHO on admission. The patients with normal ECG were excluded from the classification due to the absence of HF cases in this group during the study. The classification was applied in the remaining 538 patients in the following way: in group A, patients with altered ECG and normal ECHO (n=264); in group B, patients with altered ECHO without HF (n=199), in group C, patients with compensated HF (n=52); and in group D, patients with advanced HF (n=23). Stratified survival curves by the sub-groups were both determined and compared using the logrank test. Results: During the 66±43-month follow-up period 93 deaths occurred, 78 of which resulting from cardiac causes. 1, 5 and 10-year survival estimates according to the classification were as follows: A: 99%, 98%, 91%; B: 99%, 91%, 83%; C: 80%, 45%, 19% e D: 74%, 13%, 0% p<0.0001. In group B, survival varied pretty much according to the LV function. 5 and 10-year survival estimates were 98% and 96% for normal function; 96% and 82% for mild dysfunction; 91% and 68% for moderate dysfunction; 66% and 58% for severe dysfunction p<0.0001. Incidence of HF during this period was 0.8% in group A and 22% in group B. Endereço para correspondência: ssx@hucff.ufrj.br

228 Vol 18 N o 3 Conclusões: A nova classificação de IC da ACC/AHA é de utilidade prognóstica quando aplicada à doença de Chagas. O grupo B, no entanto, é muito heterogêneo e sua subdivisão de acordo com a função de VE melhora a capacidade preditiva da classificação. Conclusions: The new classification of HF in ACC/AHA is prognostically useful in Chagas disease. Nevertheless, group B is rather heterogeneous and the fact that it is sub-divided according to LV function improves the predictive capacity of the classification. Introdução A doença de Chagas permanece um grave problema de saúda pública na América Latina. Dados da OMS estimam em 16 a 18 milhões o número de infectados na América Latina, dos quais 5 milhões no Brasil 1. Cerca de 30% dos pacientes infectados evoluem para cardiopatia chagásica crônica, forma clínica mais freqüente e de mais elevada morbimortalidade 2-5. Nesta cardiopatia o grau de acometimento cardíaco é bastante variável, e uma parcela significativa dos pacientes pode evoluir para insuficiência cardíaca (IC). Recentemente uma nova classificação da ICC, baseada em estágios, foi proposta pela ACC/AHA 6, e tem recebido grande aceitação. Nesta classificação, são incluídos no estágio A os pacientes com fatores de risco para IC (ex: hipertensão arterial, diabetes mellitus, doença coronariana, abuso de álcool, história familiar de cardiomiopatia), mas ainda sem evidências de cardiopatia estrutural e sem sinais clínicos de IC; no estágio B, são incluídos os pacientes que já desenvolveram cardiopatia estrutural (ex: hipertrofia ou dilatação de VE, disfunção contrátil de qualquer grau, infarto do miocárdio prévio), mas ainda sem sinais de IC; no estágio C, são incluídos os pacientes com cardiopatia estrutural que apresentam ou já apresentaram sinais ou sintomas de insuficiência cardíaca e, no estágio D, são incluídos os pacientes com insuficiência cardíaca avançada, que permanecem muito sintomáticos apesar da medicação e que requerem intervenções especializadas. A doença de Chagas, excluída da classificação original da ACC/AHA, ainda carece de uma classificação moderna, com implicações prognósticas e terapêuticas, que possa ser aceita e utilizada por todos. Pelas características de sua história natural, a doença de Chagas pode ser um bom modelo para aplicação da nova classificação de IC. O objetivo do presente estudo é avaliar o desempenho prognóstico desta nova classificação quando aplicada em uma coorte de pacientes com doença de Chagas. Metodologia Foi realizada análise retrospectiva de um banco de dados composto por variáveis pré-definidas e prospectivamente coletadas em um estudo longitudinal, observacional, de coorte. A coorte é constituída por 1053 pacientes consecutivos com diagnóstico de doença de Chagas, confirmado por pelo menos duas técnicas sorológicas distintas (imunofluorescência e ELISA), recrutados no período de 03/1990 a 03/2002 e seguidos até 03/2003. Pacientes com evidências de cardiopatia não-chagásica foram excluídos do estudo. Todos os pacientes foram submetidos, no momento de admissão na coorte, a um protocolo de avaliação que incluía exame clínico completo, eletrocardiograma de 12 derivações, RX tórax e ecocardiograma uni e bidimensional com Doppler. O diagnóstico de insuficiência cardíaca foi realizado segundo os critérios de Framingham 7. Na análise estatística foram construídas curvas de sobrevida de Kaplan-Meier, estratificadas por subgrupos (representados pelos estágios da classificação de IC) e comparadas por meio do teste de log-rank. O nível de significância utilizado foi de 5%. Resultados Características gerais da coorte A média de idade da coorte foi de 46 ± 11 anos. O tempo médio de acompanhamento foi de 66±44 meses, com taxa de seguimento completo de 84%. Neste período, ocorreram 93 óbitos, 78 de causa cardíaca. As características gerais da coorte no momento da avaliação inicial para admissão no estudo são descritas na Tabela 1. Quase a metade dos pacientes (49%) não apresentava evidências clínicas, eletrocardiográficas, radiológicas ou ecocardiográficas de cardiopatia.

Revista da SOCERJ - Mai/Jun 2005 229 Tabela 1 Características gerais da coorte Características n % Sexo masculino 494 47 Insuficiência cardíaca 75 7 ECG anormal 538 51 Ïndice cardíaco > 0,5 224 21 ECO alterado 301 29 Função normal (FE 55%) 823 78 Disfunção leve (FE: 45% a 54%) 70 7 Disfunção moderada (FE: 35% a 44%) 72 7 Disfunção grave (FE < 35%) 88 8 Proposta de aplicação da classificação da ACC/AHA Os pacientes que apresentavam ECG normal na admissão ao estudo foram excluídos da classificação devido à ausência de casos de IC neste grupo durante todo o período de seguimento. Nos 538 pacientes restantes, a classificação foi aplicada da seguinte forma: estágio A: ECG alterado e ECO normal (n=264) estágio B: ECO alterado, sem sinais de IC (n=199) estágio C: IC presente, compensada (n=52) estágio D: IC avançada (n=23) A incidência cumulativa de IC durante o período de seguimento, nos pacientes incluídos no estágio A foi de 0,8%, e no estágio B foi de 22%. Figura 1 Curvas de sobrevida da coorte, estratificadas segundo a classificação da ACC/AHA Tabela 2 Estimativas de sobrevida em 1, em 5 e em 10 anos, segundo a classificação da ACC/AHA Estágio da ACC/AHA 1 ano% 5 anos% 10 anos% A 99 98 91 B 99 91 83 C 80 45 19 D 74 13 00 Valor prognóstico da classificação ACC/ AHA As curvas de sobrevida da coorte, estratificadas segundo a nova classificação da ACC/AHA é demonstrada na Figura 1. As sobrevidas estimadas em 1, em 5 e em 10 anos em cada grupo da classificação são mostradas na Tabela 2. A análise das curvas de sobrevida demonstra 4 grupos de prognóstico distintos, mas com um grande salto entre os grupos B e C. Isto ocorre porque o grupo B é bastante heterogêneo do ponto de vista prognóstico, por incluir no mesmo grupo, pacientes com funções ventriculares muito distintas.isto fica claro quando curvas de sobrevida do grupo B são estratificadas de acordo com a função ventricular, demonstrando, conforme o esperado, 4 curvas de sobrevida distintas (Figura 2). Observa-se que estas 4 curvas preenchem de forma adequada e gradativa o grande espaço entre a curva de sobrevida do grupo A e do grupo C. As estimativas de sobrevida do grupo B, de acordo com a função ventricular, são mostradas na Tabela 3. Figura 2 Curvas de sobrevida do estágio B, estratificadas de acordo com a função ventricular

230 Vol 18 N o 3 Tabela 3 Estimativas de sobrevida do estágio B, de acordo com a função ventricular Função de VE 5 anos % 10 anos % Normal 98 96 Disfunção leve 96 82 Disfunção moderada 91 68 Disfunção grave 66 58 Classificação da ACC/AHA aplicada de forma modificada à doença de Chagas A nova classificação melhora, portanto, seu desempenho prognóstico quando o grupo B é estratificado de acordo com a função ventricular, conforme apresentado a seguir: Estágio A: ECG alterado e ECO normal Estágio B: ECO alterado e IC ausente - B.1: Função normal - B.2: Disfunção leve - B.3: Disfunção moderada - B.4: Disfunção grave Estágio C: IC compensada Estágio D: IC avançada Discussão Os resultados do presente estudo demonstram que a nova classificação de IC da ACC/AHA pode ser de grande utilidade quando aplicada à doença de Chagas, permitindo identificar subgrupos inteiramente distintos do ponto de vista prognóstico e terapêutico. Por se tratar de uma classificação desenvolvida pela ACC/AHA, ela não incluiu a doença de Chagas na sua versão original, e o presente estudo demonstra que a cardiopatia chagásica também se constitui em um excelente modelo para aplicação desta classificação. Segundo os resultados encontrados no presente estudo, devem ser incluídos na classificação apenas os pacientes com sorologia positiva para doença de Chagas que apresentarem eletrocardiograma alterado, já que entre os pacientes com eletrocardiograma normal não houve nenhum caso de insuficiência cardíaca durante todo o período de seguimento. O excelente prognóstico dos pacientes com doença de Chagas e eletrocardiograma normal tem sido descrito por outros autores, em diversos estudos longitudinais 8-10 e a recomendação é de que este grupo de pacientes seja acompanhado apenas com avaliação clínica e eletrocardiográfica, provavelmente anual, sem necessidade de avaliação ecocardiográfica, enquanto mantiverem eletrocardiogramas normais. Nos pacientes com eletrocardiograma alterado, além da avaliação clínica, em busca de sinais e sintomas de insuficiência cardíaca, torna-se necessária também a avaliação ecocardiográfica, para a definição do estágio da cardiopatia chagásica crônica. No presente estudo, a subdivisão do estágio B (ECO alterado, sem sinais de insuficiência cardíaca) de acordo com a função ventricular esquerda melhorou substancialmente a capacidade preditiva desta nova classificação, e é provável que esta modificação, se aplicada em outras cardiopatias, também melhore o desempenho prognóstico da classificação. Por se tratar de uma doença de evolução lenta e extremamente variável, a cardiopatia chagásica crônica necessita de uma classificação estagiada, moderna, que seja amplamente aceita e utilizada. Desde a sua descrição inicial, várias propostas de classificação do acometimento cardíaco na doença de Chagas têm sido realizadas. Na classificação tradicional, baseada apenas em dados clínicos, eletrocardiográficos e radiológicos, os pacientes eram classificados em: forma indeterminada, quando todos os exames eram normais, ou em forma cardíaca, quando alguma anormalidade clínica, eletrocardiográfica ou radiológica estava presente 11. Nesta classificação, os pacientes classificados como de forma cardíaca constituíam um grupo bastante heterogêneo do ponto de vista prognóstico, incluindo desde pacientes com ECG alterado e função ventricular normal a pacientes com IC avançada sendo, portanto, de utilidade muito limitada. Uma segunda classificação de cardiopatia, proposta por peritos da OMS/OPAS 12, estratifica os pacientes em 4 grupos, de acordo com o tipo de alterações clínicas, eletrocardiográficas ou radiológicas apresentadas, conforme descrito no Quadro 1. Esta classificação, mais útil do ponto de vista prognóstico do que a tradicional, é de certa forma complexa e não incorpora informações objetivas sobre a função ventricular, obtidas por métodos complementares. Mais recentemente, Espinosa et al. 13 propuseram uma nova classificação, baseada não só em dados clínicos e eletrocardiográficos, mas também em informações hemodinâmicas obtidas por cateterismo cardíaco esquerdo. Nesta classificação, conhecida como de Los Andes, os pacientes foram divididos em 4 grupos, descritos no Quadro 2. Esta classificação apresenta algumas imperfeições. A estratificação dos pacientes com eletrocardiograma normal em 2 grupos parece desnecessária já que,

Revista da SOCERJ - Mai/Jun 2005 231 Quadro 1 Classificação de cardiopatia segundo a OMS/OPAS Cardiopatia Características Grau 1 Infecção chagásica sem sinais clínicos, radiológicos e eletrocardiográficos de lesão cardíaca Grau 2 Infecção chagásica com sintomatologia moderada ou nula, radiologia normal ou indicação de hipertrofia cardíaca leve e com alterações eletrocardiográficas do tipo EV, BRD, BRE, BAV incompleto e alterações da repolarização ventricular Grau 3 Infecção chagásica com sintomatologia evidente, hipertrofia cardíaca moderada e alterações eletrocardiográficas do tipo BRD associado à HBAE, zonas eletricamente inativas, BAV completo ou fibrilação ou flutter atrial Grau 4 Infecção chagásica com sintomatologia muito pronunciada, com insuficiência cardíaca. O estudo radiológico mostra cardiomegalia extrema e o eletrocardiograma indica alterações graves e múltiplas (arritmias complexas e graves ou extensas zonas eletricamente inativas) Quadro 2 Classificação Los Andes de cardiopatia Grupo Características 1A Infecção chagásica sem evidências clínicas, eletrocardiográficas, ventriculográficas ou hemodinâmicas (cateterismo cardíaco) de lesão miocárdica 1B Infecção chagásica com avaliação clínica e eletrocardiográfica normal, mas com ventriculografia esquerda anormal (lesão miocárdica segmentar precoce) 2 Infecção chagásica com eletrocardiograma anormal (arritmias ou distúrbio de condução), todos com lesão miocárdica avançada na ventriculografia esquerda, mas sem insuficiência cardíaca 3 Infecção chagásica com eletrocardiograma anormal, lesão miocárdica avançada na ventriculografia esquerda e insuficiência cardíaca embora alguns deles possam apresentar alterações discretas da contratilidade miocárdica, o seu prognóstico é excelente e essencialmente o mesmo, conforme demonstram as curvas de sobrevida destes 2 grupos, descritas pelos próprios autores em estudo subseqüente 14 : em até 12 anos de seguimento (tempo médio de 71±50 meses) não ocorreu nenhum óbito no grupo 1A, e nem no grupo 1B. Já o grupo 2, caracterizado pela presença de eletrocardiograma anormal, é um grupo muito heterogêneo do ponto de vista prognóstico, incluindo desde pacientes com ecocardiograma inteiramente normal até pacientes com disfunção ventricular esquerda grave. Conforme demonstrado no presente estudo, as curvas de sobrevida são significativamente distintas, de acordo com a função ventricular, e o agrupamento destes pacientes em um único grupo compromete o desempenho prognóstico e as implicações terapêuticas desta classificação. Em função disto, a classificação de Los Andes não tem recebido grande aceitação. A nova classificação de IC proposta pela ACC/AHA, por sua vez, parece atender adequadamente ao que se espera de uma classificação realmente útil na doença de Chagas, proporcionando uma avaliação precisa do prognóstico e fornecendo as informações necessárias para o acompanhamento e a escolha de intervenções terapêuticas apropriadas. Conclusões A nova classificação de insuficiência cardíaca da ACC/AHA pode ser de grande utilidade quando aplicada à doença de Chagas, permitindo identificar subgrupos distintos do ponto de vista prognóstico e terapêutico. A subdivisão do grupo B de acordo com a função ventricular esquerda melhora substancialmente a capacidade preditiva desta nova classificação. Referências bibliográficas 1. WHO. Control of Chagas disease. WHO Technical Report Series 1991;811:1-95. 2. Laranja FS, Dias E, Nóbrega GC, Miranda A. Chagas disease. A clinical, epidemiological and pathologic study. Circulation. 2004;14:1035-1060. 3. Dias JCP. Cardiopatia Chagásica: história natural. In: Cançado JR, Chuster M (eds). Cardiopatia chagásica. Belo Horizonte: Fundação Carlos Chagas de Pesquisa Médica; 1985:99-113.

232 Vol 18 N o 3 4. Coura JR, Abreu LL, Pereira JB, Willcox HP. Morbidade da doença de Chagas. IV. Estudo longitudinal de dez anos em Pains e Iguatama, Minas Gerais. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. 1985;80:73-80. 5. Espinosa R, Pericci L, Carrasco HA, Escalante A, Martinez O, Gonzalez R. Prognostic indicators in chronic chagasic cardiopathy. Intl J Cardiol. 1991;30:195-202. 6. ACC/AHA Guidelines for the evaluation and management of chronic heart failure in the adult. 2001. Disponível em: <http://www.acc.org/clinical/guidelines> 7. McKee PA, Castelli WP, McNamara PM, Kannel, WB. The natural history of congestive heart failure. The Framingham study. N Engl J Med.1971;285:1441-449. 8. Coura JR, Pereira JB. A follow-up of Chagas disease in two endemic areas in Brazil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. 1985;79:107-112. 9. Mota EA, Guimarães AC, Santana OO, Sherlock I, Hoff R, Weller TH. A nine year propective study of Chagas disease in a defined rural population in northeast Brazil. Am J Trop Med and Hygiene. 1990;42:429-40. 10. Maguire JH, Hoff R, Sherlock I, Guimarães AC, Sleigh AC, Ramos NB, et al. Cardiac morbidity and mortality due to Chagas disease: prospective electrocardiographic study of a Brazilian community. Circulation. 1987;75:1140-145. 11. Conselho Nacional de Pesquisas, Epidemiologia da doença de Chagas. Objetivos e metodologia dos estudos longitudinais. Relatório técnico número 1. Brasília. 1974. 12. OMS/OPAS. Aspectos clínicos de la enfermidad de Chagas. Informe de una reunión conjunta OMS/OPAS de investigadores. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana. 1974;76:141-58. 13. Espinosa R, Carrasco HA, Belandria F, Fuenmayor AM, Molina C, González R, et al. Life expectancy analysis in patients with Chagas disease: prognosis after one decade (1973-1983). Intl J Cardiol. 1985;8(1)45-56. 14. Carrasco HA, Parada H, Guerrero L, Duque M, Durán D, Molina C. Prognostic implications of clinical, electrocardiographic and hemodynamic findings in chronic Chagas disease. Intl J Cardiol. 1994;43:27-38. Agradecimento Ao Prof. Evandro Tinoco Mesquita que sugeriu a realização deste estudo.