Aula 9 A CONSTITUIÇÃO DO LÉXICO PORTUGUÊS: FATORES INTERCULTURAIS E LINGUÍSTICOS. Antônio Ponciano Bezerra

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Transcrição:

Aula 9 A CONSTITUIÇÃO DO LÉXICO PORTUGUÊS: FATORES INTERCULTURAIS E LINGUÍSTICOS META Apresentar as características da formação do léxico português. OBJETIVOS Ao fi nal desta aula, o aluno deverá: identifi car as etapas do processo de formação do léxico português; reconhecer a procedência e as características formais do léxico português, em sua fase inicial de formação; e distinguir os caracteres arcaicos do léxico português face às fontes inovadoras atuantes no processo de constituição do léxico da língua portuguesa. PRÉ-REQUISITOS Conhecimento sobre a autonomia e o domínio territorial e cultural da língua portuguesa. Antônio Ponciano Bezerra

História da Língua Portuguesa INTRODUÇÃO Em aulas anteriores, procuramos caracterizar, pelo menos em linhas gerais, os antecedentes históricos e culturais que serviram de base para a formação da nacionalidade portuguesa. Enumeramos, então, o domínio romano, as invasões germânicas, o domínio árabe e as contribuições (influências) francesas a partir do século IX/X, quando do processo de reconquista cristã diante da expansão muçulmana no solo peninsular. No contexto dessas lutas pela reconquista, cruzados, árabes e peninsulares se aproximam e se mesclam e, de certa forma, favorecem à existência de uma cultura aristocrática e clerical vigorosa e renovada pelos contatos com a cultura árabe e, posteriormente, com a resultante cultura moçarábica, permitindo o alargamento da corte régia até a definição das fronteiras que dão corpo geográfico e político a Portugal, na sua atualidade. Toda essa diversidade de situações históricas e de problemas culturais termina por exercer influências na constituição da língua nacional: o português. Partindo, agora, da fase denominada por português arcaico, nomeadamente, da primeira parte deste período, que corresponde, como vimos antes, na divisão proposta pelo professor Celso Cunha, entre os séculos XIII e XIV (a propriamente dita fase do português arcaico ), vamos apresentar os elementos lingüísticos que caracterizam esse espaço de tempo lingüístico relativo à língua portuguesa. PORTUGUÊS ARCAICO De início, vale comentar que conhecer (dominar) o ambiente cultural das línguas românicas exige, do estudioso e/ou pesquisador, pelo menos, dominar três campos de informação que não precisam ser rigorosamente delineados, mas pautados e seguidos com algum critério: a) domínio da cultura popular primitiva perpassada de lendas e mitos, a alta cultura profana e a cultura cristã documentadas e que se prestam como fundamento a partir do qual podemos caracterizar as épocas primeiras da história dessas línguas. Melhor esclarecendo o que acima está exposto: a cultura popular primitiva é o solo natural da românia (original); a alta cultura profana diz respeito ao conhecimento formal sobre a românia colhido nos filólogos, filósofos, geógrafos, gramáticos e historiadores da antiguidade clássica e da baixa latinidade e da Idade Média latina; a cultura cristã refere-se à história da românia como solo que suportou e possibilitou a expansão do cristianismo. É a língua pagã de Roma que serviu de veículo de difusão e de cristianização do mundo ocidental. 86

A constituição do léxico português Aula 9 De todas essas matrizes, afluem contribuições para a formação do léxico românico. No caso que nos interessa aqui, formação da língua portuguesa ou, simplesmente, do português. PRIMEIRA FASE SÉCULOS XIII/XIV Até o século XIII, além dos cartórios, só nos conventos a produção escrita (manuscrita) florescia. Em território português de então, os principais redutos de produção textual manuscrita foram os conventos de Lorvão, Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça. Aliás, o convento de Alcobaça chegou a se constituir no maior acervo (livraria) de Portugal medieval. Esses conventos permitiram uma atividade cultural intensa e de grande significado, pois se revelaram centros de estudo e tradução do latim, de obras religiosas, morais e didáticas que, se não tinham maior valor literário, com certeza, apresentavam inegável valor lingüístico-filológico. Ver glossário no final da Aula Iluminura do Cancioneiro da Ajuda (Fonte: http://jlmalves.no.sapo.pt). Assim, do século XII ao começo do século XV, acumularam-se os textos (documentos) públicos, de ordem jurídica (como os títulos de compra e venda, testamentos, inventários, doações e outros), historiográficos (crônicas, nobiliários e livros de linhagens), hagiográficos (histórias e vida de santos), eclesiásticos e obras literárias (a poesia dos cancioneiros e a prosa das novelas de cavalaria). 87

História da Língua Portuguesa Nesses primeiros registros escritos (manuscritos), é importante considerar os processos de mudança (alteração) fonética por que passaram os vocábulos na fase de transição: latim ~ galego-português ~ português. As mudanças que as palavras experimentam em sua evolução são denominadas de metaplasmo (do grego meta = além + plasmo = formação). São, pois, as principais figuras de metaplasmo que devemos considerar na história da evolução da língua portuguesa. Vejamos o esquema seguinte: Ver glossário no final da Aula Metaplasmos as figuras de metaplasmos se realizam a partir de quatro situações básicas: a) por adição que se divide em três possibilidades: prótese, epêntese e paragoge; b) por supressão com as seguintes modalidades: aférese, síncope, apócope, crase, sinalefa; c) por permuta com as seguintes modalidades: metátese, vocalização, consonantização, nasalização, desnasalização, assimilação, dissimilação, apofonia, metafonia, hiperbibasmo: sístole e diástole. Para uma melhor compreensão didática, podemos, assim, comentar e exemplificar os diversos casos de metaplasmo. 1. Prótese consiste no acréscimo (adição) de um fonema ou de uma sílaba no início da palavra. A forma latina: stella dá estrela, em português. Veja o acréscimo do /e/ no início da palavra. 2. Epêntese trata-se do aumento (adição) de um fonema ou de uma sílaba no meio da palavra: em registo para registro, temos um acréscimo de /r/; fedu (latim) deu, em português, feo e depois feio. Quando há uma intercalação de uma vogal no meio de uma dada palavra para facilitar a pronúncia, temos o caso de suarabácti ou anaptixe: tramela deu taramela. Na linguagem popular do Brasil, glória dá gulória, claro dá quilaro. São exemplos de suarabácti ou epêntese. 3. Paragoge consiste na adição de um fonema ou de uma sílaba no final de uma palavra. Temos: assi que deu assim, ante que deu antes. É o caso freqüente de nomes estrangeiros terminados por consoante oclusiva: club dá clube, clic dá clique e muitos outros. 4. Aférese trata-se de supressão de um fonema ou de uma sílaba no início da palavra. Exemplos: inamorare (latim) dá namorar, em português; psalmo dá salmo, em português. 5. Síncope consiste na queda de um fonema ou de uma sílaba no meio da palavra. São exemplos: malu (latim) deu mau, em português; bondadoso (latim) deu bondoso, em português; coor (latim) deu cor, em português ou ainda pede (latim) deu pee e depois pé, como conhecemos. 88

A constituição do léxico português Aula 9 6. Apócope é a supressão de um fonema ou de uma sílaba no final da palavra. Exemplos: capitale deu capital, male deu mal, - grande, muito, santo deram, respectivamente, grão, mui e são, que co-existem ao lado das formas que lhes deram origem. 7. Crase (histórica) consiste na fusão de sons vocálicos idênticos: a+a = a, e+e = e. Exemplos: maa deu má, nudu deu nuu e depois deu nu. A crase histórica é um tipo de síncope muito evidente na atualidade como em palavras do tipo caatinga ou catinga. 8. Sinalefa é a fusão ou a reunião de duas ou mais sílabas em uma só, elidindo (apagando) a última sílaba de uma dada palavra com a vogal da palavra seguinte. Trata-se de um tipo de aglutinação. Exemplos: de + este = deste, outra + hora = outrora, em + boa + hora = embora. Como se pode verificar, há perda de elemento ou elementos de uma e/ou de outra das palavras envolvidas, daí ser um tipo de aglutinação. 9. Metátese é a transposição de fonemas de uma sílaba da mesma palavra ou de uma palavra para outra. Vejamos os exemplos: semper (latim) deu, em português, sempre (transposição do /r/); tenebras (latim) deu, em português, trevas. Na linguagem popular, ocorrem vários casos de metátese: vidro > vrido, tábua > tauba, Roberto Carlos > Robertos Carlo (observe o deslocamento do /s/ de Carlos). 10. Vocalização transformação de um som consonântico em um som vocálico. Exemplos: doctum (latim) deu, em português, douto; regnum (latim) deu, em português, reino. As consoantes /c/ e /g/ transformam-se em /u/ e /i/, respectivamente. 11. Consonantização é a transformação de um som vocálico em um som consonântico. Exemplos: iacere (latim) deu, em português, jazer; ouuir (latim) deu, em português, ouvir. Atenção: a língua latina não dispunha de alguns fonemas que, depois, apareceram nas línguas românicas por influências diversas. Assim, o lugar do /j/ é ocupado pelo /i/ e o lugar do /v/ é ocupado pelo fonema vocálico /u/como em uiui = vivi e iesus = Jesus. 12. Nasalização é a passagem de um fonema oral a nasal. A nasalização pode ser resultante da influência de um fonema vizinho ou decorrer de uma tendência da língua. Exemplos: mi > mim (prolação do /m/ inicial); macula > macla > mancla > mancha; sic > si > sim (pela influência do antônomo não). 89

História da Língua Portuguesa Há, na língua portuguesa, uma tendência para a nasalização do /i/ tônico final. É o que ocorre em rubi > rubim, vir > vi > vim (popular) e em sagüi > saguim. 13. Desnasalização é transformação de um fonema nasal em oral. Exemplos: bona > boa, luna > lua, corona > coroa, ponere > poere > poer > pôr. 14. Assimilação consiste na transformação de um fonema em outro da mesma espécie daquele que se aproxima. Exemplos: personam (latim) deu pessoa, em português, ou ainda persicum (latim) deu, em português, pêssego. 15. Dissimilação consiste na transformação de vocábulos, fonemas ou sílabas, imitando-se a repetição de seus similares. Exemplos: temoroso deu temeroso, pospontar deu pespontar, rostro deu rosto, aratru (latim) deu, em português, aradro e depois arado. 16. Apofonia é a modificação do fonema inicial (vogal) quando se lhe segue (ou se lhe acrescenta) um prefixo. Exemplo: in+barba dá imberbe, no português atual. 17. Metafonia é a transformação (ou mudança) de som (timbre) por influência de uma vogal final átona sobre a vogal radical tônica. Exemplos: fogo dá fogos (som fechado, /o/ da primeira sílaba, dá som aberto no plural, /ó/ da primeira silaba; devo, deves, deve, veja a seqüência de /e/ aberto, após o /ê/, fechado de devo. Cancioneiro popular (Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br). 18. Hiperbibasmo consiste no deslocamento de sílaba tônica ou átona. Exemplos: idolum (no latim, era paroxítona), ao passar para o português, tornou-se proparoxítona ídolo (é um caso hiperbisbasmo sístole). Já em limitem (em latim, era proparoxítona) deu limite, em português, uma palavra paroxítona. Trata-se de um caso de hiperbibasmo diástole). Esses fenômenos de alteração fonética ocorreram, abundantemente, durante a fase de formação do léxico básico da língua portuguesa (momento da passagem do latim vulgar para as línguas românicas, em especial aqui, para o português, que é uma língua românica). Isto não quer dizer que hoje as figuras de metaplasmo não mais se registram no exercício diário da língua portuguesa. Muito pelo contrário, já falamos antes de formas populares como fazeno, tauba, vrido e muitos outros. 90

A constituição do léxico português Aula 9 O conhecimento desses fenômenos (alterações) fonéticos nos conduz a reconhecer as inovações ocorridas no galego-português, sobretudo, a partir do século IX, como já observamos, à medida que se distancia de sua matriz: o latim vulgar hispânico. De início, vamos focalizar três inovações do galego-português: a) os grupos iniciais /pl/, /cl/ e /fl/ se transformam em /ch/, com uma pronúncia aproximada a /txch/. Então, vejamos: No entanto, ao lado dessas formas em que os grupos /pl/, /cl/ e /fl/ Latim / pl / planu / cl / clamare / fl / fl agare Galego-portugês chão / txchão / chamar / txchamar / cheirar / txcheirar / se transformam em /txch/, uma série de encontros da mesma natureza, mas menos popular, passa ao galego-português a /pr/, /cr/ e /fr/, respectivamente, como atestam os seguintes exemplos: Por fim, no português moderno, palavras eruditas conservam as iniciais latinas (pl/, /cl/ e /fl/), sem modificação: pleno, clima, flauta, bloco, Latim Placere Clavu Flaccu Blandu Galego-portugês prazer cravo fraco branco respectivamente do latim plenus, clima, flauto (provençal antigo), bloco (do francês). Agora, b) queda do /l/ intervocálico, como a segunda inovação do galego-português. Este fenômeno deve ter ocorrido, provavelmente, nos fins do século X, pois em 995 já há dele testemunhos em textos redigidos em latim bárbaro. São exemplos antigos: salire (latim) deu sair, dolore (latim) deu dor, voluntade (latim) deu vontade e muitos outros; c) queda do /n/ intervocálico terceira inovação do galego-português. Este fenômeno segue o precedente que é a queda do /l/ em situação semelhante. Os testemunhos desse caso de síncope remetem à segunda metade do século XI, mas ainda em curso durante o século XII. São exemplos: corona que deu coroa, inclusive se faz acompanhar de um processo de desnasalização como em luna que deu lua, seminare que deu semear. São muitos os exemplos desse fenômeno de metaplasmo. 91

História da Língua Portuguesa Por outro lado, o vocabulário latino transmitido ao galego-português e ao português moderno compreende palavras de aparência mais clássica do que as suas correspondentes francesas ou italianas. Vejamos, então: Somam-se a esta base latina original as contribuições francesas, pro- Latim Comedere Percontari Metus Avis Galego-portugês comer perguntar medo ave Ver glossário no final da Aula vençais e procedentes do Latim cristão. A abundância de empréstimos oriundos das práticas religiosas do cristianismo assinala a presença de um léxico específico de natureza erudita ou semi-erudita como: clérigo, diabo, batizar, benefício, calendário, confessar, físico, natural, ofício e tantos outros. Para mais ampla ilustração do português arcaico, desta fase, segue como exemplo o texto literário mais antigo da Literatura Portuguesa. Trata-se da cantiga de amor intitulada Cantiga da Garvaia, do trovador Paio Soares de Taveirós, datada de 1189 ou 1198, portanto, século XIII. No mundo nom me sei parelha mentre me foi como me vai, ca já moiro por vós e ai! mia senhor branca e vermelha, queredes que vos retraia quando vos eu vi em saia. Mao dia me levantei que vos entom nom vi fea! E, mia senhor, des aquelha Me foi a mi mui mal di ai! E vós, filha de dom Paai Moniz, e bem vos semelha d aver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d alfaia nunca de vós ouve nem ei valia d ua correa. Da leitura que podemos fazer desta cantiga medieval portuguesa, tomamos conhecimento que, do ponto vista morfológico, há uma série de surpresas em relação ao português atual. Assim, o gênero de alguns 92

A constituição do léxico português Aula 9 nomes, por exemplo, não coincide com o de hoje. O caso típico se refere a senhor ( mia senhor branca e vermelha ), cujo gênero é marcado pelo determinante (pronome-adjetivo) e não no próprio substantivo. Um outro exemplo característico do português arcaico em questão diz respeito à forma queredes. Todas as formas de segunda pessoa do plural apresentavam, no português antigo, um /d/ em contexto intervocálico (amades, faredes, ouvide e outros). Este /d/ termina por sofrer síncope. Até o início do século XV, as formas sincopadas e não-sincopadas sobrevivem. No entanto, as formas sincopadas vencem e se estabelecem no português moderno. CONCLUSÃO Ao longo desta aula, discorremos sobre a forma lingüística que dominou a faixa territorial constitutiva do reino português (séculos XIII e XIV), conhecida como galego-português. Nesta direção, procuramos traçar um perfil das principais características, sobretudo, fonéticas, dessa modalidade lingüística que se estende pela área atlântica da Península Ibérica. As fontes mais disponíveis para o estudo do galego-português remetem, principalmente, ao latim vulgar, na sua expressão hispânica e na sua variedade denominada latim bárbaro, também hispânico, uma espécie de forma lingüística mesclada de latim vulgar, fórmulas lingüísticas jurídicas e frases feitas, da qual se pode extrair um certo vocabulário próprio do português antigo. Acrescenta-se a esta fonte ou base original do português, a linguagem dos travadores medievais que representa um rico acervo de português (ou galego-português) escrito, já com certa ordenação e critérios de natureza gramatical. A linguagem da poesia lírica portuguesa, dessa fase, é rica em demonstrações de seu momento evolutivo, na direção do português médio, isto é, de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Este último (o Renascimento) constitui a base do português moderno. 93

História da Língua Portuguesa RESUMO O galego-português é a língua nacional do nascente reino português, a partir do século XII. Separado da Galiza, o Condado Portucalense inicia o seu processo de expansão territorial e de fixação de fronteiras em relação aos reinos vizinhos, de domínio lingüístico castelhano. À medida que o Condado Portucalense avança em direção ao Sul da Península Ibérica, vai também entrando em contato, mais intimamente, com a cultura muçulmana e com os hábitos lingüísticos moçarábicos. Com a reconquista cristã de todo o espaço geográfico que é, hoje, Portugal, mais precisamente, a partir do século XIII, o galego-português floresce e se diversifica na linguagem dos trovadores medievais português. É, pois, dessa época, a denominada fase do português arcaico (primeiro momento), que também exibe registros escritos em latim bárbaro, já com manifestações do português antigo. Esse é um período rico em demonstrações de formas lingüísticas de transição entre o latim vulgar, o galego-português e o português médio, aliás, etapas históricas do português medieval. ATIVIDADES 1. O que entendo por galego-português, como modalidade lingüística natural de onde provém a língua portuguesa? 2. Com a expansão do reino português, na direção Sul da Península Ibérica, como se vai comportando esta modalidade lingüística (galego-português), em relação aos contatos mantidos com muçulmanos e moçárabes? 3. Faça uma leitura atenta e cuidadosa da Cantiga da Guarvaia (ou Cantiga da Ribeiririnha), apresentada mais acima, nesta aula, e procure extrair dela exemplos de alterações fonéticas (metaplasmos), a partir do léxico de que ela dispõe. COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES Em comentário já explicitamos o que, lingüisticamente, significa galego-português. Com o nascimento do reino português, o galego fica entregue à sua sorte e o português, que se diferencia ao longo em direção ao sul, torna-se a língua oficial da nação lusa. 94

A constituição do léxico português Aula 9 PRÓXIMA AULA Mais adiante você terá acesso às características principais do português médio. REFERÊNCIAS ARRUDA, José Jobson de. História antiga e medieval. São Paulo: Ática, 1977. CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Padrão Editora, 1975. COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S/A, 1976. CUNHA, Celso. Gramática da língua portuguesa. Rio de Janeiro: FE- NAME, 1972. LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992. MASSAUD, Moisés. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1970. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. Lisboa: Coleção Europa-América, 1983. GLÓSSARIO Lorvão: Povoação do concelho de Penacova (Coimbra), onde foi erguido o Mosteiro (de Lorvão) tido como um dos mais ricos e mais antigos de Portugal. Alcobaça: Rio de Portugal, na região de Leiria, formado pelos rios Alcoa e Baça, que deságua no Oceano Atlântico. Vem daí o nome do grande e célebre Mosteiro de Alcobaça, fundado por D. Afonso Henriques. Nele se encontram os túmulos de D. Pedro I (de Portugal) e de D. Inês de Castro (personagens da História e da Literatura portuguesas). Cancioneiro: Coletânea de canções (ou cantigas), isto é, formas poéticas vernáculas que fundiam letra e música. São conhecidos os cancioneiros medievais que se estendem até o Renascimento. Em Portugal, temos: a) O Cancioneiro da Ajuda, dos finais do século XIII; b) o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (Colloci-Brancutti), dos fins do século XV e princípios do século XVI; c) Cancioneiro do Vaticano, em Roma, dos finais do século XV; d) Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, de 1516, e muitos outros. 95

História da Língua Portuguesa Cantiga da Garvaia: Trata-se de uma cantiga de amor (lírico-amorosa), da autoria do trovador medieval português Paio Soares de Taveirós (séculos XII-XIII), considerada o primeiro exemplo da lírica amorosa medieval portuguesa. Este poema é dedicado à Dona Maria Pais Ribeiro (a Ribeirinha), daí a designação Cantiga da Ribeirinha. 96