Resultados da artroplastia de Keller-Lelièvre no tratamento do hálux valgo *

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RESULTADOS DA ARTROPLASTIA DE KELLER-LELIÈVRE NO TRATAMENTO DO HÁLUX VALGO ARTIGO ORIGINAL Resultados da artroplastia de Keller-Lelièvre no tratamento do hálux valgo * FERNANDO FERREIRA DA FONSECA FILHO 1, ROBERT MEVES 2, JORGE HERNANDES ELIECER 3, RICARDO CARDENUTO FERREIRA 4 RESUMO Os autores estudaram 21 pacientes (32 pés) com hálux valgo, operados pela técnica de Keller-Lelièvre, de 1986 a 1996. Avaliaram os resultados usando o método da American Orthopaedic Foot and Ankle Society (AOFAS) para a articulação metatarsofalângica do hálux. Fizeram análise estatística dos resultados obtidos, comparando-os com a utilização ou não da fixação intramedular, a quantidade de osso ressecado da falange e a idade dos pacientes. Com seguimento médio de 49 meses, os autores chegaram às seguintes conclusões: os resultados foram iguais ou maiores do que 7 em 62,5% dos casos; não houve diferença significante nos resultados com o uso ou não do fio intramedular; não houve diferença significante na satisfação subjetiva do paciente com o uso ou não do fio intramedular; a mobilidade das articulações metatarsofalângica e interfalângica do hálux foi significativamente maior quando não se utilizou o fio intramedular; não houve diferença significativa dos resultados considerando-se a faixa etária * Trabalho realizado no Grupo de Cirurgia do Pé do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (DOT- SCMSP). 1. Professor Doutor, Chefe do Grupo de Cirurgia do Pé do DOT-SCMSP. 2. Médico Assistente do Departamento de Ortopedia e Traumatologia do DOT-SCMSP. 3. Médico ex-residente do Departamento de Ortopedia e Traumatologia do DOT-SCMSP. 4. Mestre Assistente do Grupo de Cirurgia do Pé do DOT-SCMSP. Endereço para correspondência: Rua Dr. Cesário Motta Jr., 61 01277-900 São Paulo, SP. E-mail: cepwcpf@santacasa.org.br Recebido em 1/9/00. Aprovado para publicação em 11/1/01. Copyright RBO2001 acima ou abaixo de 60 anos; não houve correlação significante entre a percentagem da ressecção da falange com os resultados. Unitermos Hálux valgo; tratamento; artroplastia de Keller-Lelièvre ABSTRACT Keller-Lelièvre procedure: evaluation of results The authors studied 21 patients (32 feet) with hallux valgus submitted to Keller-Lelièvre surgical technique from 1986 through 1996. To evaluate results, they used the rating scale of the American Orthopaedics Foot and Ankle Society (AOFAS) for the metatarsophalangeal joint of the hallux. Statistic analysis was performed and results were associated with use or non-use of intramedullary wire, the size of bone resected from phalanx, and the age of the patients. With a mean follow-up period of 49 months, the authors came to the following conclusions: results were higher than or equal to 75 points in 62.5% of the cases; there was no significant difference in results as to use or non-use of intramedullary wire; there was no significant difference in subjective results as to use or non-use of intramedullary wire; the movement of metatarsophalangeal and interphalangeal joint of the hallux was significantly better when intramedullary wire was not used; there was no significant difference between the results involving the two groups in ages above or below the limit of 60 years; there was no significant correlation between the percentage of resection and the results found. Key words Hallux valgus; treatment; Keller-Lelièvre procedure Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001 9

F.F. FONSECA F O, R. MEVES, J.H. ELIECER & R.C. FERREIRA INTRODUÇÃO Segundo Lelièvre (1) (1963), foi Laforest, cirurgião do rei Luís XVI, quem primeiro descreveu o hálux valgo, afecção extremamente freqüente. A deformidade é definida por Mann (2), em 1993, como um desvio lateral do hálux e medial do osso metatarsal I, muitas vezes associado à subluxação progressiva da articulação metatarsofalângica. Maior grau de desvio causa proeminência na região da cabeça metatarsal I, aumentando a subluxação da falange proximal do hálux em direção lateral. Quando isso ocorre, os ossos sesamóides que estão firmemente ancorados no tendão do músculo adutor do hálux, flexor curto do hálux e no ligamento transverso profundo do metatarso posicionam-se lateralmente. Pronação de vários graus do primeiro dedo e deformidades do segundo dedo secundárias à pressão exercida pelo hálux podem ser observadas. O tipo mais encontrado de hálux valgo é o adquirido e relacionado a mulheres de 40 a 60 anos de idade e de sociedades em que o uso de calçados de salto alto é freqüente (3). A queixa da paciente geralmente é a deformidade e a dor na proeminência medial da cabeça metatarsal I; a primeira medida terapêutica indicada são modificações em relação ao tipo de calçado. A cirurgia descrita inicialmente por Davies e Colley (4) (1887) e popularizada por Keller (5), em 1904, continua sendo um dos mais de 100 procedimentos utilizados para o tratamento do hálux valgo no adulto, especialmente nos pacientes idosos. O procedimento envolve a ressecção de mais da metade da falange proximal do hálux e da exostose medial da cabeça metatarsal I. No início da utilização da técnica observam-se apenas dois casos de anquilose da articulação metatarsofalângica do hálux; entretanto, muitas outras complicações são descritas. A função estabilizadora da musculatura intrínseca que se insere na base da falange proximal é perdida, explicando a causa primária das complicações após esse procedimento. Lelièvre (1), preocupado com a manutenção da biomecânica do hálux, preconiza uma ressecção mais econômica da falange proximal para aproximar o pé a um tipo grego mais favorável (primeiro dedo menor do que o segundo) e cerclagem fibrosa para tensionamento da cápsula. Viladot (6) (1962), com o mesmo objetivo, mais tarde adiciona à técnica de Lelièvre (1) uma sutura do tendão do flexor longo do hálux ao rebordo glenossesamóideo para manter a força flexora do hálux. Outras modificações são propostas para melhorar o posicionamento e a estabilidade do hálux, entre elas o pregueamento da cápsula articular no sentido transversal, por meio de um ponto, visando boa correção do valgo do hálux, como descrito por Regnauld (7) (1974). Bonney e Macnab (8) (1952) encontram melhores resultados associados à cirurgia de Keller quando no pós-operatório observam maior distância entre a cabeça metatarsal I e a falange proximal remanescente. Em 1950, Fitzgerald (9) descreve o uso de um fio intramedular para manter essa distância e Thomas (10) (1962) compara favoravelmente seus resultados com os estudos retrospectivos de Bonney e Macnab (8) (1952) e Cleveland e Winant (11) (1950) quando usa a fixação. Atualmente, a artroplastia de Keller-Lelièvre está indicada para o hálux valgo moderado associado à doença articular degenerativa da articulação metatarsofalângica em pacientes sedentários e pouco ativos (12). Devido à grande freqüência da indicação da artroplastia de Keller e Lelièvre, fomos motivados a estudá-la. O objetivo do trabalho é avaliar seus resultados comparando se houve diferença com a utilização do fio intramedular temporário, a quantidade de osso ressecado da falange e a idade dos pacientes. CASUÍSTICA E MÉTODO Foram estudados 21 pacientes (32 pés) operados pela técnica de Keller-Lelièvre no Grupo de Cirurgia do Pé do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, de 1986 a 1996, sendo 17 pacientes do gênero feminino e quatro do masculino. Onze pacientes apresentavam hálux valgo bilateral. A idade variou de 49 a 78 anos, na ocasião da cirurgia, com média de 63 anos. O seguimento pós-operatório variou de 13 a 131 meses, com média de 49 meses. Doze pacientes (57%) tinham algum parente acometido pela deformidade. Dez pés (31%) apresentavam metatarsalgia. Todos os pacientes responderam a um questionário e foi preenchido um protocolo de acordo com critérios de avaliação da American Orthopaedic Foot and Ankle Society (AOFAS), 1994, para a articulação metatarsofalângica do hálux (quadro 1). Foi feito o exame clínico de cada paciente, observandose o posicionamento dos pés com carga. As mobilidades das articulações metatarsofalângica e interfalângica do hálux foram medidas com o paciente sentado e, o tornozelo, na posição neutra. Todas as medidas clínicas foram feitas com goniômetro. Em todos os pacientes foram realizadas 10 Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001

RESULTADOS DA ARTROPLASTIA DE KELLER-LELIÈVRE NO TRATAMENTO DO HÁLUX VALGO fotos e radiografias dorsoplantares e perfil, sempre dos dois pés com carga. O ângulo do hálux valgo foi medido nas radiografias dorsoplantares com carga, traçando-se o eixo longitudinal do osso metatarsal I e o eixo longitudinal da falange proximal do hálux. A ressecção da falange foi mensurada e comparada nas radiografias pré e pós-operatórias imediatas. Técnica cirúrgica A cirurgia sempre foi realizada após garroteamento do membro inferior com faixa de Esmarch. Foi feita incisão longitudinal e medial da pele e subcutâneo de aproximadamente 4cm sobre a articulação metatarsofalângica do AOFAS QUADRO 1 Pontuação segundo critérios da AOFAS para a articulação metatarsofalângica do hálux DOR: 4 Nenhuma Leve, ocasional Moderada, diariamente Grave, sempre presente FUNÇÃO: 4 A. Atividade Sem limitação, sem suporte Limitação recreacional, não usa bengala Limitação recreacional, usa bengala Limitação acentuada, usa andador, muletas B. Calçado Convencional, sem palmilha Confortável, com palmilha Modificado ou órtese C. Mobilidade da articulação MTF Normal ou pouca restrição ( 75 ) Moderada restrição (30 a 74 ) Grave restrição (< 30 ) D. Mobilidade da articulação IF (flexão plantar) Sem restrição Grave restrição E. Estabilidade da articulação MTF-IF Estável Instável F. Calosidade MTF-IF Ausente ou presente e assintomática Presente e sintomática ALINHAMENTO: 1 Bom, hálux bem alinhado Regular, algum grau de desalinhamento, assintomático Ruim, acentuado grau de desalinhamento, sintomático TOTAL MÁXIMO 4 3 2 1 7 pontos 4 pontos 3 pontos 1 1 8 pontos 10 primeiro raio, sendo a cápsula articular aberta no mesmo sentido da pele. A exostose medial da cabeça metatarsal I foi ressecada. Dissecando-se em direção plantar e dorsal, foi exposta a metade da falange proximal do hálux e, com um osteótomo, aproximadamente 30 a 40% da base da falange foram ressecados no sentido perpendicular ao longo eixo do osso, para obtenção do pé tipo quadrado. Colocando o hálux em flexão, suturou-se o tendão flexor longo do hálux no rebordo glenossesamóideo. Os osteófitos da cabeça metatarsal I foram removidos quando presentes. A cápsula foi suturada com o ponto em 8 de Valenti, que cruza a articulação metatarsofalângica e, ao ser ajustado, provoca a adução do hálux, com fio categute simples nº 1 antes do fechamento por planos da incisão. Dezessete pés (53%) foram fixados temporariamente com fio de Kirschner intramedular e a carga foi permitida, em média, quatro semanas após a cirurgia. Os testes estatísticos usados para avaliação dos dados foram o t de Student para amostras independentes, o exato de Fisher unilateral e o coeficiente de correlação de Pearson, fixando-se 5% como nível de significância. Foram assinalados com um asterisco os resultados significantes. RESULTADOS A distribuição dos pés segundo o método de avaliação da AOFAS está mostrada na tabela 1. A comparação entre a pontuação dos pés submetidos à fixação intramedular e os não fixados, levando-se em consideração o método de avaliação da AOFAS, está exibida na tabela 2. A relação do uso do fio intramedular e a satisfação subjetiva do paciente está ilustrada na tabela 3. A comparação da mobilidade pós-operatória das articulações metatarsofalângica e interfalângica do hálux ao exame físico, entre os grupos com e sem fixação intramedular, está mostrada na tabela 4. TABELA 1 Distribuição dos pés operados segundo o método de avaliação da AOFAS AOFAS N % > 7 20 62,5 < 7 12 37,5 Total 32 100,0 Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001 11

F.F. FONSECA F O, R. MEVES, J.H. ELIECER & R.C. FERREIRA TABELA 2 Comparação da pontuação segundo o método de avaliação da AOFAS e a fixação intramedular Com fixação intramedular Sem fixação intramedular 30 70 48 70 52 70 60 70 60 73 73 78 73 80 83 86 83 86 85 88 85 93 85 93 86 93 86 98 93 100 93 95 Média = 74,71 Média = 83,20 s =18,47 s = 10,91 p = 0,13, teste t de Student A comparação dos resultados entre pacientes mais jovens (de 60 anos ou menos) e mais idosos (acima de 60 anos) está ilustrada na tabela 5. A relação entre a quantidade ressecada da falange proximal do hálux e o resultado pós-operatório está mostrada na tabela 6. O ângulo médio do hálux valgo pré-operatório foi de 30º (variando de 20º a 50º) e pós-operatório de 15,5º (variando de 11º a 36º). As complicações pós-operatórias são mostradas na tabela 7. TABELA 3 Distribuição dos pés segundo a satisfação subjetiva e o uso ou não de fio intramedular Com fio Sem fio Total N % N % N % Satisfeito 12 70,6 13 86,7 25 78,1 Insatisfeito 5 29,4 2 13,3 7 21,9 Total 17 100,0 15 100,0 32 100,0 p = 0,25, teste exato de Fisher TABELA 4 Comparação da mobilidade do hálux em graus e uso de fixação intramedular Com fio Sem fio Metatarsofalângica Interfalângica Metatarsofalângica Interfalângica 00 05 30 10 00 05 38 10 10 05 42 20 12 05 50 20 30 09 55 20 30 10 56 20 30 10 58 20 34 10 70 20 50 10 70 25 55 10 70 25 55 12 75 30 60 18 80 30 60 25 80 40 70 25 80 40 70 25 85 40 72 30 74 40 Média = 41,88 Média = 14,94 Média = 62,60 Média = 24,67 s = 25,60 s = 10,40 s = 17,12 s = 9,72 p = 0,01*, teste t de Student 12 Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001

RESULTADOS DA ARTROPLASTIA DE KELLER-LELIÈVRE NO TRATAMENTO DO HÁLUX VALGO TABELA 5 Comparação da pontuação segundo o método de avaliação da AOFAS e a faixa etária < 60 anos > 60 anos 30 52 48 70 60 70 60 73 70 73 70 80 73 83 78 85 83 86 85 86 85 93 86 93 86 93 88 95 93 98 93 100 Média = 74,25 Média = 83,13 s = 17,48 s = 12,88 TABELA 6 Distribuição dos pés segundo a percentagem ressecada da falange e a pontuação do método de avaliação da AOFAS Caso Falange AOFAS Caso Falange AOFAS 1 30% 93 17 52% 70 2 30% 93 18 48% 70 3 20% 85 19 26% 30 4 20% 85 20 27% 86 5 20% 88 21 37% 86 6 23% 73 22 30% 48 7 29% 83 23 44% 83 8 42% 85 24 20% 52 9 34% 60 25 30% 93 10 12% 86 26 34% 73 11 19% 93 27 26% 93 12 38% 70 28 31% 78 13 40% 70 29 31% 86 14 36% 98 30 37% 60 15 19% 95 31 34% 100 16 34% 73 32 41% 80 r = 0,14, coeficiente de correlação de Pearson p = 0,11, teste t de Student DISCUSSÃO A prática clínica tem demonstrado que o hálux valgo é uma patologia ortopédica freqüente. Viladot (6) e Coughlin e Thompson (3) observaram a alta prevalência do hálux valgo nas mulheres da quarta, quinta ou sexta décadas de vida, implicando os sapatos justos femininos oferecidos pela cultura vigente como um importante fator extrínseco da deformidade. Hardy e Clapham (13) notaram que a hereditariedade pode desempenhar um papel desencadeante em muitos indivíduos, visto que 63% dos 91 pacientes de seu estudo tinham um parente com hálux valgo. Em nossa casuística, essas observações se confirmaram, pois a média de idade dos pacientes na época da cirurgia foi de 63 anos, havendo predominância feminina de 80% e a presença de história familiar com antecedentes de hálux valgo em 57% dos casos. Cleveland e Winant (11) publicaram um valor de satisfação subjetiva de 96% (157 de 163 pés) após a cirurgia de Keller, mas estudos que avaliam outros aspectos além do alívio da dor e da bursite na exostose medial mostram algumas limitações da técnica. Bonney e Macnab (8), Majkowisk et al (14) e Vallier et al (15) empregaram critérios mais Complicação TABELA 7 Complicações Nº de pés Infecção superficial 03 Neuroma incisional 01 Hallux extensus 03 Correção insuficiente 04 Metatarsalgia 10 Hálux varo 01 Encurtamento excessivo 06 objetivos na suas avaliações, observando complicações como a metatarsalgia e o hallux extensus e pior resultado funcional objetivo. A observação desses autores foi confirmada em nosso trabalho, pois observamos as complicações descritas e obtivemos um resultado acima ou igual a 7, pelos critérios da AOFAS, em 62,5% dos casos. Thomas (10) preconizou a modificação da cirurgia de Keller, com o uso de fixação intramedular ou agrafe para manter o afastamento entre a cabeça metatarsal I e a falange proximal remanescente e melhorar a dor, a aparência estética, a cicatrização pós-operatória, encontrando melho- Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001 13

F.F. FONSECA F O, R. MEVES, J.H. ELIECER & R.C. FERREIRA a a Fig. 1 LS, gênero feminino, 66 anos, com queixa de dor e deformidade na exostose da cabeça metatarsal I. Préoperatório: a aspecto clínico, b aspecto radiográfico. b b Fig. 2 LS. Assintomática e satisfeita com o resultado. Um ano de pósoperatório: a aspecto clínico, b aspecto radiográfico. res resultados do que o estudo retrospectivo de Cleveland e Winant (11), que não usaram a fixação. Vallier et al (15), numa revisão de 54 pés, associaram a utilização do fio de Kirschner à melhor satisfação subjetiva de seus pacientes. Sherman et al (16), através de um estudo prospectivo de 51 pés, não encontraram vantagem associada ao uso do fio de Kirschner temporário, inclusive relacionaram seu uso à piora subjetiva e pior mobilidade da articulação interfalângica. Em nossa série, não houve relação significante associada ao uso do fio intramedular e a satisfação subjetiva dos pacientes (p = 0,25) e, também, aos critérios mais objetivos da AOFAS (p = 0,13). O estudo, entretanto, da mobilidade da articulação metatarsofalângica (p = 0,01) e interfalângica (p = 0,01) do hálux demonstrou resultados significativamente melhores nos casos não fixados. Mann (2) alerta que o procedimento de Keller deve ser reservado para pacientes idosos e pouco ativos por levar a distúrbio funcional do mecanismo do windlass, que consiste na ação da aponevrose plantar que força as cabeças metatarsais em flexão plantar, elevando o arco plantar longitudinal durante a fase final do apoio da marcha. Como resultado desse mecanismo, a pressão abaixo das cabeças metatarsais é transferida para os dedos, especialmente o hálux. A desinserção da aponevrose plantar e musculatura intrínseca do hálux lesa esse mecanismo estabilizador e a pressão não é mais transferida para os dedos, ocorrendo, secundariamente, a perda da função de suporte do hálux. Em nosso estudo, não houve diferença significativa dos resultados entre os dois grupos na faixa etária acima ou 14 Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001

RESULTADOS DA ARTROPLASTIA DE KELLER-LELIÈVRE NO TRATAMENTO DO HÁLUX VALGO a a Fig. 3 JS, gênero feminino, 52 anos, com recidiva de hálux valgo e dor na exotose da cabeça metatarsal I após recidiva de McBride. Pré-operatório: a aspecto clínico, b aspecto radiográfico. b b Fig. 4 JS. Encurtamento + extensão do hálux, metatarsalgia, insatisfeita com o resultado. Nove anos de pósoperatório: a aspecto clínico, b aspecto radiográfico. abaixo de 60 anos (p = 0,11), mas cumpre ressaltar que a idade cronológica muitas vezes não corresponde ao grau de atividade do paciente. Cleveland e Winant (11) recomendaram uma ressecção de pelo menos 50% da falange para evitar o desenvolvimento do hálux rígido. Lelièvre (1) ressecava a base da falange proximal do hálux numa proporção ótima para a obtenção do pé tipo grego. Vallier et al (15) associaram ressecções limitadas da falange à melhor satisfação do paciente. Bretenseher et al (17) demonstraram que no tratamento do hálux rígido através da técnica de Keller a ressecção de 33 a 50% da falange proximal esteve associada ao mais alto grau de satisfação do paciente. Nos casos em que excedeu 50%, os pacientes não ficaram satisfeitos, havendo perda da mobilidade do hálux e, quando a ressecção foi menor que 33%, ocorreu recorrência do hálux rígido. Axt et al (18), através da mesma técnica, encontraram resultados tardios desfavoráveis quando a ressecção ultrapassou 50% como o hallux extensus. A média da nossa ressecção foi de 31% para obter o pé quadrado ou grego e apenas um caso ultrapassou 50%, não ocorrendo relação significante entre a ressecção e o resultado pós-operatório nos casos estudados (r = 0,14). CONCLUSÕES 1) Os resultados com a cirurgia de Keller-Lelièvre, segundo o critério de avaliação da AOFAS, foram iguais ou maiores do que 7 em 62,5% dos casos. Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001 15

F.F. FONSECA F O, R. MEVES, J.H. ELIECER & R.C. FERREIRA 2) Não houve diferença significante nos resultados com o uso ou não do fio intramedular. 3) Não houve diferença significante na satisfação subjetiva do paciente com o uso ou não do fio intramedular. 4) A mobilidade das articulações metatarsofalângica e interfalângica do hálux foi significativamente maior quando não se utilizou o fio intramedular. 5) Não houve diferença significativa dos resultados considerando-se a faixa etária acima ou abaixo de 60 anos. 6) Não houve correlação significante entre a percentagem da ressecção da falange com os resultados. REFERÊNCIAS 1. Lelièvre J.: Patologia del Pie. 3ª ed. Barcelona, Toray-Masson, 1976. 2. Mann R.A.: Biomechanics of the foot and ankle in Mann R.A., Coughlin M.J.: Surgery of the foot and ankle. Saint Louis, C.V. Mosby, 1993. 3. Coughlin M.J., Thompson F.M.: The high price of high-fashion footwear. Instructional Course Lectures 44: p.p. 371-377. Rosemont, Illinois, The American Academy of Orthopaedics Surgeons, 1995. 4. Davies, Coley: Contraction of the metatarsophalangeal joint of the great toe (hallux flexus). Br Med J I: 728, 1887. 5. Keller W.: The surgical treatment for bunions and hallux valgus. NY Med J 80: 741, 1904. 6. Viladot A.: Patología del Antepié. 2ª ed. Barcelona, Toray, 1981. 7. Regnauld B.: Techniques Chirurgicales du Pied. Paris, Masson, 1974. 8. Bonney G., Macnab I.: Hallux valgus and hallux rigidus: a critical survey of operative results. J Bone Joint Surg [Br] 34: 366-385, 1952. 9. Fitzgerald W.: Hallux valgus. J Bone Joint Surg [Br] 32: 139, 1950. 10. Thomas F.B.: Keller s arthroplasty modified: a technique to ensure postoperative distraction of the toe. J Bone Joint Surg [Br] 44: 356-365, 1962. 11. Cleveland M., Winant E.M.: An end-result of Keller operation. J Bone Joint Surg [Am] 32: 163-175, 1950. 12. Coughlin M.J.: Hallux valgus. J Bone Joint Surg [Am] 78: 932-937, 1996. 13. Hardy R.H., Clapham J.C.R.: Observations on hallux valgus. Based on controlled series. J Bone Joint Surg [Br] 33: 376-391, 1951. 14. Majkowski R.S., Galloway S.: Excision arthroplasty for hallux valgus in the elderly: a comparison between the Keller and modified Mayo operations. Foot Ankle 13: 317-320, 1992. 15. Vallier G.T., Petersen S.A., Lagrone M.O.: The Keller resection arthroplasty: a 13-year experience. Foot Ankle 11: 187-194, 1991. 16. Sherman K.P., Douglas D.L., Benson M.K.: Keller s arthroplasty: is distraction useful? A prospective trial. J Bone Joint Surg [Br] 66: 765-766, 1984. 17. Breitenseher M.J., Toma C.D., Gottsauner-Wolf F., Imholf H.: Hallux rigidus operated on by Keller and Brandes method. Rofo Fortschr Geb Rontgenstr Neuen Bildgeb Verfahr 164: 483-488, 1996. 18. Axt M., Wildner M., Reichelt A.: Late results of the Keller-Brandes operation for hallux valgus. Arch Orthop Trauma Surg 112: 266-269, 1993. 16 Rev Bras Ortop _ Vol. 36, N OS 1/2 Jan/Fev, 2001