DESCONSTRUIR PARA PROBLEMATIZAR MATRIZES IDENTITÁRIAS

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Transcrição:

DESCONSTRUIR PARA PROBLEMATIZAR MATRIZES IDENTITÁRIAS Fabíola Langaro 1 Mériti de Souza 2 Vivemos em uma sociedade denominada ocidental moderna. Sobre este fato compartilhado por nós que lemos este texto, parece haver concordâncias entre certos autores: valores como individualidade, interioridade, subjetividade, capitalismo, privacidade, racionalidade e consciência adquiriram status e inundam as relações humanas na contemporaneidade (CHAUÍ, 2002; FIGUEIREDO, 1992; FREIRE COSTA, 1986, 1998). Principalmente com relação às ciências psi, conceitos como os de sujeito, subjetividade, interioridade e consciência ganharam aspectos de verdade, e não são problematizados suficientemente para serem compreendidos como demarcações históricas que existem a partir de determinado momento na história das sociedades. Para Derrida (1999) a sociedade ocidental da qual fazemos parte tem como base um sistema de pensamento calcado na metafísica da presença, em que toda a produção do conhecimento está fundamentada no princípio da razão e da substância. Segundo Japiassú e Marcondes (2001, p. 129) na tradição clássica e escolástica, a meta-física é a parte mais central da filosofia, a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. A metafísica define-se assim como filosofia primeira, como ponto de partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é pressuposto por todas as outras partes do sistema, na medida em que examina os princípios e causas primeiras, e que se constitui como doutrina do ser em geral, e não de suas determinações particulares. Assim, para Derrida (1999, p. 4), a história da metafísica que, apesar de todas as diferenças e não apenas de Platão a Hegel (...) sempre atribuiu ao logos a origem da verdade em geral, possibilita a emergência do logocentrismo como um sistema de pensamento solidário com a determinação do ser do ente como presença (p. 15). Esse movimento que predomina na sociedade ocidental denominado logocentrismo pressupõe, portanto, a razão como o ponto de referência a partir do qual ocorreria toda modalidade de subjetivação. Este sistema filosófico torna possível, destarte, criar associações e lógicas de pensamento em que conceitos como os de subjetividade, interioridade. identidade e consciência, por exemplo, coincidem. Assim, ao se falar em sujeito, a ele imediatamente se associariam as idéias de subjetividade, identidade, razão, cognoscência... Isto porque, nesta tradição filosófica, há a crença de que uma pessoa configura uma unidade e uma identidade, o que possibilita um sentimento 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC. Bolsista do Programa FUMDES. E-mail: flangaro@hotmail.com 2 Doutora em Psicologia Clínica - PUC-SP. Professora no Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFSC. 1

psíquico do eu e possibilita, ainda, aos sujeitos se enunciarem enquanto subjetividades substantivadas, ou seja, enquanto sujeitos dotados de uma identidade que possui um núcleo estável, uma essência (BUTLER, 2008, p. 44). Neste ponto, podemos então problematizar as intercessões entre os conceitos de matriz de pensamento e de matrizes identitárias. Conforme destaca Swain (2002), podemos pensar em matrizes de pensamento como as redes de sentidos originárias que produzem inteligibilidades, compondo os significados sociais das diversas práticas e discursos dos sujeitos, que adquirem legitimidade e tecem o real e suas redes simbólicas. Nas palavras de Swain (1999, p. 110) a apreensão do mundo e dos seres se faz assim num quadro de pensamento ordenado por certas categorias, por imagens e representações sociais que designam os lugares e os papéis em sua atividade incessante de constituição e criação do real. Especificamente com relação à matriz de pensamento moderno, ela engendra cenários sociais, econômicos e culturais peculiares, tendo se especializado em produzir subjetividades que se acreditam constituídas por uma consciência que lhes oferece o pleno conhecimento sobre si e sobre o real (SOUZA, 2007, p. 139). É a metafísica da presença como matriz do pensamento moderno, portanto, que cria condições de possibilidade ao enunciado do discurso que cada um de nós constrói sobre si. É ela, ainda, que produz a representação unitária e linear sobre nossa subjetividade, sustentando concepções e práticas referentes à constituição do sujeito e das redes sociais (SOUZA, 2007, p. 140). Estando, então, esta lógica linear e causal na base do pensamento moderno, é ela também que possibilita o enunciado do sujeito enquanto subjetividade que opera na compreensão das identidades de gênero, permitindo aos sujeitos se enunciarem em referência às suas práticas de sexualidade. É por meio dela que as pessoas se enunciam como homens, mulheres, homossexuais, heterossexuais, gays, lésbicas, entre diversos outros nomes. Talvez a principal intercessão entre as matrizes identitárias e as questões de gênero possa ser descrita como a pressuposição de que uma pessoa é um gênero ou o é em virtude de seu sexo, de seu sentimento psíquico do eu, e das diferentes expressões desse eu psíquico, a mais notável delas sendo a do desejo sexual (BUTLER, 2008, p. 44), presumindo uma coerência ou unidade interna de qualquer dos gêneros (p. 45). Nessa perspectiva, a mesma matriz de pensamento moderno possibilita o sentimento da subjetividade e da substantivação dos sujeitos que engendra a naturalização do pressuposto de que cada pessoa nasce com um corpo sexuado, biológico, e que a partir dele constituirá um gênero 2

enquanto identidade, garantindo a coerência entre este sexo biológico, o gênero construído na/pela cultura e o desejo sexual. Esta heterossexualidade como norma ou heteronormatividade seria, conforme aponta Butler (2008), a matriz de inteligibilidade hegemônica que pressupõe a produção de sujeitos cujas identidades de gênero correspondem ao seu sexo anatômico e que possuem como objeto de desejo pessoas de sexo e de gênero diferentes, partindo-se da idéia de complementaridade pela diferença. Para a autora, a coerência ou a unidade internas de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estável e oposicional. Essa heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional. Essa concepção de gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo, gênero e desejo, mas sugere igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero reflete ou exprime o desejo (BUTLER, 2008, p. 45) Além desta matriz a partir da qual os sujeitos constroem suas experiências em relação ao masculino e ao feminino há, de acordo com Derrida (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004), um modo falogocêntrico de a sociedade ocidental significar o feminino tomando sempre como base o masculino, ou seja, pressupondo o falo como o centro e o ponto de referência a partir do qual ocorreria todo processo de subjetivação. O termo falogocêntrico foi elaborado em 1965 pelo autor que com ele pretendia dirigir sua crítica à primazia na tradição da filosofia ocidental que constrói teorias e leituras acerca da realidade, do conhecimento e da constituição psíquica baseadas em referências no logos e no falo. Essas referências definem hierarquias e um modo binário de produzir oposições quando atribui qualificações e sentidos aos opostos que lhe são designados pela rede social, econômica e cultural. O binarismo acompanha a rede de poder que predomina nas sociedades ocidentais e reforça essa rede através da linguagem que atribui específicos sentidos e valores às pessoas e aos objetos que compõem a realidade. Para o autor quando são elaborados os pares de opostos e é atribuído um específico sentido a eles e, ainda, quando se divulga a idéia de que esse sentido é verdadeiro, é possível encontrar um trabalho de hierarquia e de poder. Como exemplo, o conceito de masculino estabelece o feminino como seu oposto e, ainda, o masculino é vinculado ao racional, ao completo, à cultura, e o feminino ao afeto, ao incompleto, à natureza. Deste modo, a matriz binária, heterossexual e calcada na essência rege a diferença sexual e se converteu no modelo regulador da sexualidade e da subjetividade. Essa matriz possibilita aos sujeitos se reconhecerem em referência às suas práticas de sexualidade com base na oposição masculino/feminino, heterossexual/homossexual, e na hierarquia entre esses pares. É ela também 3

que possibilita aos sujeitos compreenderem a si mesmos sob a perspectiva de referenciais ou representações identitárias. E são, portanto, estes binarismos como referência analítica que operam como dissociação e que implicam em pares de oposições (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004) ocupados em relações hierárquicas e de poder que se pretende problematizar. Ainda, objetiva-se problematizar as possibilidades de desconstrução destas matrizes concomitante ao deslocamento de sentidos a elas agregados. Contudo, quais são, na atualidade, as possibilidades para que o deslocamento dos sentidos atribuídos aos pares binários possa ocorrer? A desconstrução derridiana Como alternativa aos sentidos produzidos pelas matrizes identitárias e calcados na metafísica da presença, nos binarismos e nas hierarquias, Butler (2008) propõe pensar o gênero e a identidade não como substantivos, mas como produzidos e impostos pelas práticas reguladoras da coerência de gênero (...) no interior do discurso herdado da metafísica da presença isto é, constituinte da identidade que supostamente é (p.45). Assim, em substituição a concepções de subjetividade e identidade unitárias, substantivas, poderíamos pensar e trabalhar com os efeitos de subjetivação, que implicam em não haver um sujeito coerente e unificado por trás das expressões de gênero, mas sugerem que a própria ação, no momento mesmo em que é produzida, expressa modos de subjetivação. Neste sentido, Butler (2008) propõe pensar gênero como um fenômeno inconstante e contextual e, para tanto, utiliza-se do conceito de différance de Derrida. A différance para Derrida não marca uma distinção, essência ou oposição, mas pode ser entendida como um movimento de espaçamento, um devir-espaço, um devir-tempo do espaço, uma referência à alteridade, uma heterogeneidade que não é primordialmente oposicional (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 34). Nesta concepção, não há, portanto, o imperativo do sujeito da presença associado a uma subjetividade estável, Una, passível de plena representação. Problematizar este sujeito é, nestes termos, repensar a pluralidade humana, enquanto possibilidade e devir, sem a necessidade do recurso a substância fundante como origem ou causa primeira. Tal é a proposta de desconstrução de Derrida (2001), que visa não mais buscar um centro, uma origem de onde tudo partiria e a ele retornaria. Com ela, Derrida (1999) propõe uma ruptura que visa despojar o pensamento de toda orientação de garantia, expondo-o a uma alteridade que não pode ser apreendida ou definida. Para Rodrigues (2009, p. 45) está em jogo a idéia de (...) essa 4

alteridade radical, não representar a decretação, pelo pensamento da desconstrução, do fim de um si que alguma vez esteve lá, mas apenas reconhecer que este si nunca pôde se representar, se fazer presente. Com a intenção de problematizar os binarismos, buscando explicitar e criticar a estrutura hierárquica, Derrida (2001) propõe movimentos de espaçamento, em que há a impossibilidade de reduzir a cadeia a um de seus elos ou de aí privilegiar absolutamente um ou outro (p. 106). Com esta atitude, o autor problematiza não somente o significado como elemento que carregaria uma dimensão transcendental do signo, mas também desconsidera o signo como portador de uma pretensa unidade natural. Questiona, portanto, no signo a compreensão de que o significado se vincula de forma linear e direta ao significante, explicitando que os significantes só são compreensíveis a partir de uma cadeia que os une e estabiliza, num jogo de referências em que um significante depende do seu anterior e do seu posterior, numa sucessão infinita de remessas. Nesse movimento de deslocamento contínuo, nesse jogo de diferimento, espaçamento e remetimento, há a produção de diferenças que escapam à oposição binária da metafísica, na medida em que não institui novas oposições, mas propõe um permanente deslocar-se, uma produção de diferir que se denominará como a própria differánce. Se a differánce implica, então, o deslocamento da diferença para um pensamento que não se refere a uma origem, desconstruir é de certo modo resistir à tirania do Um, do logos, da metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 9). Nas palavras de Continentino (2006, p. 16) a desconstrução fala, então, do funcionamento mesmo do pensamento, de uma estranha lógica que o determina como deslocamento incessante e inarredável, impossível de ser domesticado, aplacado. Temos acesso a esta lógica [...] e ao movimento que lhe é peculiar [...] quando não partimos do desejo de profundidade, solidez ou autenticidade, e nos permitimos colocar em questão este desejo de controle que se impôs tão completamente à filosofia, e que marca toda a história do pensamento ocidental. A perspectiva da desconstrução pode, portanto, ancorar a proposta de problematizar os binarismos e a lógica falogocêntrica que sustentam os atributos designados às mulheres e aos homens (natureza e cultura; razão e afeto; ativo e passivo; dentre outros), bem como, problematizar binarismos que sustentam o par feminino e masculino. Para tanto, propõe pensar no discurso e nas práticas que o sujeito constrói e experimenta em seu cotidiano e que, pela sua repetição, lhe possibilita a constituição e o reconhecimento de uma trajetória sexuada, a qual adquire uma estabilidade em função da repetição e da reiteração de normas (ARÁN, 2006, p. 73). 5

A estratégia da desconstrução, portanto, abandona a intenção da tradição histórica e filosófica ocidental da busca por uma origem e uma presença, que seriam capazes de explicitar o fundamento ou a determinação primordial do sentido e do conceito que supostamente o traduziria. Trata-se do esforço de permanecer em um jogo em que nenhum dos pólos opositivos do binarismo é valorizado e subjuga o outro, porém, de manter-se em um constante remetimento a ambos, em um jogo de nem/nem. Nas palavras de Rodrigues (2009, p. 52), a leitura desconstrutiva serve a dois propósitos: 1) mostrar que a desconstrução é algo que acontece no interior dos textos 3 ; 2) discutir como, mesmo na tradição, aparece essa oscilação a dupla exclusão, que seria esse jogo do nem/nem e a participação, ou seja, a possibilidade de ser isto e aquilo ao mesmo tempo. Para Continentino (2006, p. 17), tais são os indecidíveis, ou seja, nem palavras nem conceitos, mas o que Derrida chama de quase-conceitos, pois eles não obedecem à lógica opositiva dos universais, na medida em que eles se voltam para uma alteridade radical, sem pólo de oposição. Os indecidíveis possibilitam, assim, problematizar as suposições de oposição que percorrem o texto, a narrativa, articulando-se com a desconstrução na medida em que esta se inicia pela evidência das contradições e paradoxos do texto. A prática do nem/nem da indecidibilidade remete à noção de alteridade, de um outro que sempre se faz demonstrar nesse espaçamento, nesses intervalos, nessa distância que se abre entre (RODRIGUES, 2009, p. 51). Desta forma, segundo a perspectiva da desconstrução derridiana, é possível problematizar os sentidos atribuídos aos pares binários, bem como, as matrizes identitárias como referências que engendram tanto o enunciado da subjetividade como dos sentidos do masculino e do feminino, a partir da compreensão de que não existe princípio, fundamento ou conceito que seja anterior ou esteja fora do jogo de diferenças. Partindo deste referencial, é possível diferir, adiar, prorrogar os sentidos atribuídos aos conceitos, em que a identidade fixa é substituída pelos efeitos de um processo contínuo de deslocamento (RODRIGUES, 2009, p. 41). Entretanto, ressalta-se que problematizar o sujeito constituído como substância e presença e relevar as possibilidades do devir, bem como, questionar os binarismos, não significa abandonar a questão de que a constituição psíquica acontece nessa situação, ou seja, somos constituídos e nos constituímos no tempo social e histórico que produz tanto a possibilidade do devir quanto da subjetividade sujeitada. Em última instância, não se trata de negar o valor da tradição filosófica 3 Para Derrida (1999), o texto não se limita à escritura, mas se refere a um tecido, uma cadeia de signos na qual as diferenças aparecem entre seus elementos, sendo expressa nas diferentes formas de linguagem. 6

ocidental, mas de realizar um questionamento dos limites de uma filosofia da representação, binária e hierárquica. Conforme afirma Derrida (2009), não há sentido em abandonar os conceitos da metafísica para abalar a metafísica, tendo em vista que não dispomos de linguagem que seja estranha a essa história. Assim, não podemos enunciar nenhuma proposição destruidora que não se tenha já visto obrigada a escorregar para a forma, para a lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que gostaria de contestar (p. 410). Bibliografia ARÁN, M. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan/jun, 2006. P. 49-63. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s1516-14982006000100004&script=sci_arttext>. Acesso em: 05/05/2009. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 12ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 2002. CONTINENTINO, A. M. A. A alteridade no pensamento de Jacques Derrida: Escritura, Meio- Luto, Aporia. Tese (Doutorado em Filosofia) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006. DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.. A escritura e a diferença. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. DERRIDA, J; ROUDINESCO, E. De que amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. FIGUEIREDO, L. C. A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação. São Paulo: Escuta, 1992. FREIRE COSTA, J. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986.. A construção cultural da diferença dos sexos. Sexualidade, Gênero e Sociedade, Ano 2, Número 3, junho, 1998. P. 3-8. Disponível em: <http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_html/construcao_cultural.html.>. Acesso em: 01/04/2009. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2001. RODRIGUES, C. Coreografias do feminino. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. 7

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