Cadernos da Escola de Saúde O AMOR NA FEMINILIDADE

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Cadernos da Escola de Saúde ISSN 1984 7041 O AMOR NA FEMINILIDADE THE LOVE IN FEMININITY Nicolle Shigueoka de Oliveira 1 Ana Suy Sesarino Kuss 2 Recebido em 03 de julho de 2015 Aceito em 05 de agosto de 2015 RESUMO Este artigo trata dos temas da feminilidade e do amor, referindo-se ao amor como resposta possível a uma perda que deixa marcas. O amor visaria a uma forma de tamponar uma falta narcísica original e irrecuperável que caminha em direção à falta, e é oriunda do campo do desejo. Esse desejo, que nunca é saciado, encontra-se com o que Lacan chama de objeto a, objeto de desejo que se instaura no lugar da falta que, por sua ausência se faz presente, nunca cessando o lugar da falta original. Descritores: amor; feminilidade; feminino; psicanálise. ABSTRACT This paper addresses the issues of femininity and love, referring to love as a possible response to a loss that leaves marks. Love would seek a way to buffer a unique and unrecoverable narcissistic lack walking toward the loss, and it comes from the field of desire. This desire, which is never satisfied, is what Lacan calls the object a, the object of desire which is established in the place of the loss, which in absence is made present, never ceasing the place of original loss. Descriptors: Love; femininity; female; psychoanalysis. 1 Acadêmica do curso de Graduação de Psicologia do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Endereço: R. Konrad Adenauer, 442 Tarumã Curitiba PR. E mail: ni.colle @hotmail.com. 2 Professora Mestre em Psicologia do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Endereço: R. Konrad Adenauer, 442 Tarumã Curitiba PR. E mail: Ana_suy@yahoo.com.br Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70 63

Nicolle Shigueoka de Oliveira e Ana Suy Sesarino Kuss INTRODUÇÃO Na arte, nas músicas, nas pinturas, nos livros, nos filmes e até nas fotografias o amor já foi retratado. No dicionário a palavra amor é definida de várias formas, mas sempre indicando algum sentimento intenso de atração para outra pessoa. O amor é um tema muito abordado e começou a ser estudado muito antes da psicanálise, e tem muitas perguntas sem respostas. Outro tema que intriga muitas pessoas, que desliza nas perguntas sem respostas, é o tema da feminilidade. A pergunta o que quer uma mulher? é difundida entre muitas pessoas desde Freud. Quem nunca se perguntou o que quer uma mulher? Ora quer, ora não quer... Quem nunca leu, viu, ouviu falar ou até mesmo viveu uma história de amor? O que o senso comum vem nos dizer sobre o amor? E sobre a mulher apaixonada dos clássicos já escritos? Qual o posicionamento da psicanálise sobre esse tema e o que ele vem nos dizer? Quais são as relações que podemos pensar entre o amor e as mulheres? O que o amor representa para elas e que função tem ele na constituição da feminilidade? Há algo de universal nesse campo? E se há, o que é? Neste artigo partimos do ponto de que, na constituição feminina, há uma falta que é diferente da falta da constituição masculina, falta essa que, com maior facilidade, se associa ao amor. Pretende-se, então, relacionar amor e feminilidade. Sobre a feminilidade, em sua Conferência XXXIII (1933/1996) (1), Freud afirma que, através da história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade. O que é a feminilidade e o que podemos falar dela? Como uma menina consegue se tornar mulher, e o que é, de fato, ser uma mulher? O que é estar em posição feminina? Estes são enigmas ainda não resolvidos definitivamente, pois tudo que sabemos a respeito ainda é pouco. Sabemos que o Édipo explica como se constitui o homem, mas não a mulher, como nos disse Freud. Embora Freud tenha escrito muito sobre a sexualidade feminina, em seu texto A Feminilidade (1933/1996) (2) ele afirmou que o que ali havia sido dito estava incompleto e fragmentado e que, se quiséssemos saber mais a respeito da feminilidade, precisaríamos indagar à nossa própria experiência de vida, consultar os poetas ou aguardar até que a ciência pudesse nos dar informações mais profundas e coerentes. Autor da famosa pergunta afinal, o que querem as mulheres?, nem mesmo Freud pôde nos esclarecer sua resposta. Ao que acrescentamos nesta pesquisa: por que algumas esperam algo do amor? O que podemos falar sobre os temas? 64 Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70

O amor na feminilidade. CONSTITUIÇÃO FEMININA De acordo com Freud em A Feminilidade (1933/1996) (2), as diferenças anatômicas e biológicas entre os sexos são insuficientes para definir feminino-masculino. Isso pelo ponto de vista de que há partes do aparelho sexual masculino nas mulheres, mas de um modo atrofiado, e também o contrário. De acordo com sua análise, pela cultura se faz equivaler masculino a ativo e feminino a passivo. Entretanto, Freud desconfia dessa definição simplória, visto que afirma nesse texto ser necessária uma boa quantidade de atividade para a passividade. Em sua constituição, no tempo edipiano, o menino tem como seu primeiro objeto de amor a mãe, e a mantém até a conclusão. Na menina o Édipo é secundário. A menina tem como seu objeto de amor a figura paterna, mas para que isso ocorra é necessária a passagem por duas transições anteriores, pois a menina, antes de entrar no Édipo, tem também sua figura materna como objeto de amor, sendo essa fase chamada de fase pré-edipiana. Ao entrar no Édipo, a menina transfere seu amor para a figura paterna. Essa substituição que ocorre, tomando seu pai como objeto de amor, se dá no momento da descoberta da diferença sexual, que causa nela sentimentos de inferioridade e inveja, pois sua mãe não lhe pode dar o falo. Acreditando, assim, que seu pai poderá lhe dar o falo, a menina passa a ter o pai como objeto de amor, entrando no Édipo. Sendo essa a primeira das duas transições que a menina faz, a segunda transição é a transferência das zonas erógenas, do clitóris para a vagina. De acordo com Freud, (1931/1996) (3), no percurso da construção da feminilidade, abrem-se três possíveis vias de desenvolvimento. A primeira pode causar repulsa à sexualidade e acaba por inibir a sexualidade da mulher, em geral. A segunda pode resultar na homossexualidade, fazendo com que a mulher, até idade tardia, acredite que conseguirá o falo, tendo este como objetivo de vida. E, por fim, com a terceira via, ela atingirá a atitude feminina normal, tomando como objeto o pai, encontrando no Édipo um caminho para a feminilidade. O AMOR Para a psicanálise, o amor é de extrema importância, pois é por essa via que a cura do paciente neurótico se torna possível, sendo chamada essa operação de cura pelo amor de transferência. Mas que função e significado o amor tem para algumas mulheres? Por que algumas sempre estão em busca de um amor? Trazemos neste artigo o tema do amor como Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70 65

Nicolle Shigueoka de Oliveira e Ana Suy Sesarino Kuss uma possível forma de tamponar uma perda originária e irrecuperável, pois, de fato, no real do corpo, nada foi perdido. Freud, em seus relatos sobre amor de transferência e o amor em geral (1914/1996) (4), nos traz que o sujeito comete um engano ao buscar recuperar algo perdido. Em O mal-estar na civilização (1930/1996) (5) escreve também que uma minoria de pessoas consegue encontrar felicidade no amor. Lacan (1969-1970/1992) (6) afirma a impossibilidade do sujeito falante conseguir alcançar uma complementaridade pela via do amor, formulando a famosa frase a relação sexual não existe. Na obra freudiana, o amor é situado ao lado da pulsão sexual e enraíza-se no narcisismo primário. Em Os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) (7), Freud nos falou que a pulsão seria um estímulo para o psíquico. Em seu texto Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911/1996) (8), ele submeteu as pulsões sexuais ao domínio do princípio do prazer e as pulsões do eu ao princípio da realidade. Em seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1996) (9, nos escreve sobre o narcisismo e, por consequência, sobre a sexualidade. Pelas vias desse assunto, Freud, ainda em seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1996) (9), relata duas formas de amar (ao modo anaclítico ou narcísico) e dois tipos de narcisismo, o primário e o secundário. Trazendo para esta pesquisa, no narcisismo primário, Freud denomina a criança de Sua majestade o bebê (1914/1996, p.98), porque esta se acha possuidora de toda perfeição e valor e se encontra em posição onipotente. É nessa fase que o bebê consegue se auto-satisfazer por meio de seu próprio corpo, o que Freud nomeia de autoerotismo. Com o passar do tempo, o bebê começa a perder a posição de onipotente, pois percebe que sua mãe não vive em função dele, e algo lhe é perdido/retirado. Segundo Nasio (1988, p.59): (...) sua majestade, o bebê, começa a ser destronado. Essa é a ferida infligida no narcisismo primário da criança. A partir daí, o objetivo consistirá em fazer-se amar pelo outro, em agradá-lo para reconquistar o seu amor; mas isso só pode ser feito através da satisfação de certas exigências; a do ideal do seu eu. (10) Após a perda dos olhares narcísicos e depois do sentimento de inveja e inferioridade devido à falta do falo, a menina passa a acreditar que algo lhe foi retirado/perdido, sem que algo lhe tenha sido extraído no real do corpo. Com esse modo de lidar com seu aparelho psíquico, ela passa a ter como algo valioso para si mesma a recuperação dessa onipotência narcísica que a marcou inicialmente, mas que foi perdida, encontrando no amor uma maneira de tentar tamponar essa falta. Sobre isso, podemos trazer a filosofia de O banquete (380 a.c. /1972) (11), o diálogo escrito por Platão, que tem como tema principal o Eros, ou seja, o amor. O banquete ocorreu 66 Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70

O amor na feminilidade. na casa de Agatão, discípulo de Sócrates. No início do debate, Pausânias propôs que falassem e elogiassem Eros. Sócrates intervém e pondera que antes que se discutisse sobre o amor era necessário defini-lo e, então, começam os discursos. Para nosso tema de pesquisa, dois discursos chamam a atenção: o discurso de Sócrates e o discurso de Aristófanes, que narra um mito com questões relacionadas a uma perda que ocorre no corpo e, por consequência, busca voltar à forma original. Aristófanes começa seu discurso narrando o mito dos primórdios da humanidade. Segundo ele, havia três gêneros de seres humanos, e cada um dos três gêneros continha dois sexos. O gênero masculino continha dois sexos masculinos; o gênero feminino continha dois sexos femininos; e o gênero andrógino continha um sexo masculino e um sexo feminino. Assim, os três gêneros eram seres autossuficientes com grande força e poder, possuíam forma arredondada, suas costas e seus lados formavam um círculo, tinham quatro pernas, quatros mãos, uma cabeça com duas faces e dois sexos. Podiam andar eretos como humanos ou podiam rolar, alcançando altas velocidades. Com essa potência, eles chegaram ao ponto de se colocarem contra os deuses. Os deuses, temendo a presunção de tanta autossuficiência, confabulam e encontram uma solução para torná-los mais fracos: decidem mutilar verticalmente o meio de seus corpos, tornando duas partes o que antes era uma. Desse corte, nasce o incessante desejo de encontrar a completude no outro, buscando reconstruir um estado anterior. Assim, segundo Platão (380 a.c. /1972), cada um ansiava pelo encontro com sua metade e quando a ela se unia, envolviam-se com as mãos, enlaçavam-se um ao outro, no desejo de se confundirem e assim morriam de fome, visto que se recusavam a fazer algo sem o outro. De acordo com Maia, M; Caldas, H. (12) Surgiu então o amor de um pelo outro, em que determina a mútua demanda da parte complementar que a cada um falta. Porém, ocorreu também o corte de uma mulher e o corte de um homem e, no amor, cada um demanda se unir a seu igual. Em tais condições, torna-se visível no diálogo de Aristófanes a impossibilidade de complementação, pois cada um não sabe o que demandar, já que, excetuando a si mesmos, nenhum objeto os completaria. (2011, p. 109) Entendemos que, na visão de Aristófanes, o homem busca uma totalidade do ser, o que é inacessível. Aristófanes termina seu discurso sobre o amor de forma belíssima, profetizando que o homem só terá uma vida feliz se for tomado por Eros. Trazendo esse mito para o que Freud e Lacan dizem a respeito, o que se vê aí é uma contradição, pois a teoria psicanalítica declara a impossibilidade de conseguir alcançar uma complementaridade pela via do amor, Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70 67

Nicolle Shigueoka de Oliveira e Ana Suy Sesarino Kuss pois o amor nada mais é que uma maneira de tentar encontrar algo que de fato não foi perdido/retirado dos humanos. No segundo discurso de O Banquete (380 a.c. /1972), Sócrates, ao indagar Agatão, faz várias perguntas sobre a natureza do amor. Com o discurso de Sócrates, surge o conceito de amor. Para ele, amamos somente o que não temos, e se alguém consegue amar a si mesmo, ama o que não é. Ele também diz que o amor está sempre ausente, mas sempre está sendo solicitado. O amor é amor daquilo que vem a nos faltar, não tendo nós como desejar aquilo que já temos. No discurso de Aristófanes o que se vê é que a falta sempre está presente e que o amor tem como função o tamponamento de algo. No discurso de Sócrates ama-se algo que é desejável, mas esse objeto só pode ser amado quando ele falta, pois, na visão dele, não se ama o que se possui e nem o que não é mais preciso. O amor sempre está ligado à falta. Nesse ponto surge o conceito de desejo. Mas que desejo é esse? O desejo, em psicanálise, não se trata de algo a ser realizado, mas sim de uma falta que nunca é eliminada, que vai deslizar em novos desejos. Em seu Seminário 11, Lacan (1964/1985) (13) também fala que o amor é algo que visaria tamponar a perda originária que gerou a própria capacidade de o sujeito desejar. Lacan chama de objeto a o objeto que, por sua ausência, se faz presente e se instaura no lugar de uma perda que desperta o amor. Falamos nesse objeto a, pois nós, seres humanos e falantes, não temos, de fato, um objeto exato que satisfaça nosso desejo. Temos sempre a ilusão de que algo nos satisfará, nos completando, e por sua vez nos enganando. Estamos buscando e desejando outras coisas. Vimos que desde o início de seu desenvolvimento psíquico, a menina sofre pseudoperdas. Utilizamos aqui o termo Pseudo pela definição do dicionário de algo que é falso, não verdadeiro. Chamamos de pseudo-perdas, pois essas perdas são falsas pelo fato de que no real do corpo nada foi perdido/retirado. O modo como a menina conseguiu lidar com seu corpo, por meio do seu aparelho psíquico, faz com que a menina tente encontrar sua completude pelo viés do amor, tentando retornar ao seu estado original, o do narcisismo primário. Assim, pode-se entender que ao longo de sua vida, uma menina, que depois será uma mulher, sofre pseudo-perdas, desde o conflito do narcisismo primário, passando ao sentimento de perda do falo e posteriormente pode re-atualizá-las em seus relacionamentos amorosos. Lacan (1969-1970/1992, p. 49) (6) nos diz: que haja amor à fraqueza, está aí sem dúvida a essência do amor. Amar é dar o que não se tem, ou seja, aquilo que poderia reparar 68 Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70

O amor na feminilidade. essa fraqueza original. Quando ele fala de dar o que não se tem, ele fala da falta, e o amor é essa tal maneira de procurar algo que visa tamponar uma falta que é simbólica. Há, assim, um triângulo amoroso : a falta, o amor e a feminilidade. Se pudéssemos responder à famosa pergunta o que querem as mulheres? responderíamos que elas querem ser amadas, a fim de recuperarem seu próprio narcisismo primário, com a mesma ideia ilusória contada no mito dos andróginos sobre conseguir alcançar a completude com o amor do outro. Porém, é preciso que admitamos que, entre uma mulher e o que ela pretende com o amor, existe muito mais do que o narcisismo. REFERÊNCIAS 1 Freud S. Feminilidade (1933[1932]). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise Conferência XXXIII. Obras completas, ESB, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 2 Freud S. A Feminilidade. (1933[1932]) In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 22. 3 Freud S. Sexualidade feminina. (1931) In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.21. 4 Freud S. Sobre o narcisismo: uma introdução, 1914. A história do movimento psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 5 Freud S. O mal-estar na civilização. (1930 [1929]). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 6 Lacan J. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 49. 7 Freud S. Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: FREUD, S. Um caso de histeria, Três Ensaios sobre a Sexualidade Infantil e outros trabalhos. EBS Vol VII. RJ: Imago, 1977. 8 Freud S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. [1911] in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70 69

Nicolle Shigueoka de Oliveira e Ana Suy Sesarino Kuss 9 Freud S. Sobre o narcisismo: uma introdução, 1914. A história do movimento psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 10 Nasio JD. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro - Jorge Zahar Editor, 1997, p. 59. 11 Platão. O Banquete. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/detalheobradownload.do?select_action=&co_o bra=2279&co_midia=2. Acesso em 05/12/2014. 12 Maia MAM, Caldas H. O amor como semblante. Arq. Brás. Psicol. [online]. 2011, vol. 63, n.3 [citado 2014-11-27], PP. 107-116. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s1809-52672011000400009&ing=pt&nrm=iso. ISSN 1809-5267. 13 Lacan J. (1985). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). 70 Cad. da Esc. de Saúde, Curitiba, V.2 N.14: 63-70