P.º n.º R. P. 181/2011 SJC-CT Imutabilidade do regime de bens. Contrato de compra e venda celebrado entre cônjuges. Qualificação do correspondente registo de aquisição. DELIBERAÇÃO 1 O presente recurso hierárquico vem interposto contra a decisão da senhora conservadora que qualificou o registo de aquisição apresentado sob o n.º de de julho de 2011, respeitante à descrição predial n.º, da freguesia do,, como provisório por dúvidas. 2 Para titular o aludido registo foi apresentada uma certidão da escritura pública outorgada em de junho de 2011 pelo ora recorrente, intervindo por si e na qualidade de procurador de (com quem entretanto casou no regime da separação de bens), mediante a qual, com base em procuração irrevogável passada em de abril de 1995, vende a si próprio metade indivisa da supra identificada fração autónoma, que se encontra inscrita a favor da representada no estado de divorciada. 3 A fundamentação do despacho de provisoriedade por dúvidas assenta no facto de estar em causa a celebração de um negócio de compra e venda entre casados (e não separados de pessoas e bens), pelo que parece estar em causa uma disposição imperativa, nos termos dos artigos 1714.º, n.º 2, e 280.º ambos do Código Civil. 4 É contra o referido despacho que o interessado, inconformado, vem interpor o presente recurso deduzindo as alegações que aqui damos por integralmente reproduzidas, sem prejuízo de extrairmos delas a síntese seguinte: 4.1 O comprador e vendedora são atualmente casados entre si no regime de separação de bens, mas não o eram aquando da celebração do contrato promessa, nem no momento em que foi passada a procuração irrevogável, que confere poderes para a venda inclusive consigo mesmo, ao ora cônjuge marido. Assim, não é aplicável in casu o disposto no n.º 2 do artigo 1714.º do Código Civil. Finaliza, por isso, pedindo que seja dado provimento ao recurso e ordenada a elaboração do registo peticionado com a natureza de definitivo. 1
5 A Senhora Conservadora profere despacho de sustentação da decisão prolatada nos termos e com os fundamentos que aqui damos, de igual modo, por integralmente reproduzidos, dos quais salientamos, muito sucintamente, os seguintes: 5.1 O motivo da provisoriedade radica no facto de a venda em causa violar as disposições contidas nos artigos 1714.º e 280.º do Código Civil já que ocorreu entre cônjuges, casados no regime imperativo da separação de bens, não estando decretada a sua separação de pessoas e bens. 5.2 A transferência da propriedade ocorre por efeito do contrato definitivo, exigindo a lei, para o efeito, a observância de determinados requisitos de forma escritura pública ou documento particular autenticado, pelo que aquela ocorreu em... de junho de 2011. 5.3 Poderia aceitar-se como verdadeiro que a escritura de 2011 formalizasse um negócio entre as partes na decorrência do contrato promessa de compra e venda, tendo também em conta a outorga da procuração irrevogável, tudo anterior ao casamento de ambos, só que tais documentos não instruíram o pedido nem foram apresentados quando, em sede de suprimento de deficiências do processo registal, tal possibilidade foi facultada ao interessado. 6 Descrita sumariamente a factualidade dos autos e a controvérsia que opõe recorrente e recorrida, e verificando-se que o processo é o próprio, as partes têm legitimidade, o recurso foi interposto tempestivamente, e inexistem questões prévias ou prejudiciais que obstem ao conhecimento do seu mérito, cumpre apreciar. Assim, a posição deste Conselho vai expressa na seguinte Deliberação 1 Salvas as exceções previstas na lei, o efeito real que consiste na transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito dá-se automaticamente por mero efeito de contrato, como resulta da análise 2
conjugada do prescrito nos artigos 408.º, n.º 1, e 879.º, alínea a), do Código Civil 1. 1 O n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil prescreve que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada se verifica por mero efeito do contrato, salvas as exceções consignadas na lei. Da celebração do contrato de compra e venda decorre, como consequência direta e automática, a aquisição da propriedade é o que claramente resulta do disposto na alínea a) do artigo 879.º do Código Civil que, além dos inerentes efeitos obrigacionais, elege como efeito real a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito. Na verdade, segundo os ensinamentos de MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, Volume III, 2004, págs. 20 e segs., logo no momento da celebração do contrato, o adquirente torna-se titular do direito objeto desse mesmo contrato. Assim, ao contrário do que acontece com os efeitos obrigacionais, que exigem o posterior cumprimento das respectivas obrigações, o efeito real verifica-se automaticamente no momento da formação do contrato, sendo a propriedade transmitida com base no simples consenso das partes, obtido nesse preciso momento. Esta situação é denominada como princípio da consensualidade. Estritamente ligado com este princípio encontra-se o princípio da causalidade nos termos do qual a existência de uma justa causa de aquisição é sempre necessária para que o direito real se transmita. Considerando que a existência de título (seja escritura pública seja documento particular autenticado) é necessária para a transmissão do direito real, a validade da causa de aquisição é imprescindível para que a transmissão se opere, daí que qualquer vício no negócio causal afecte igualmente a transmissão da propriedade. Na economia dos autos, cuidaremos ainda de analisar a pertinência dos argumentos expendidos pelo recorrente no que concerne, designadamente, aos efeitos que pretende extrair da existência prévia do contrato promessa e da procuração irrevogável, não obstante tais documentos só tenham sido trazidos ao conhecimento dos serviços de registo no momento da interposição do recurso hierárquico, como meio justificativo ou explicativo da viabilidade de outorgar a escritura pública mesmo neste novo estado dos intervenientes. Pois bem, de harmonia com a definição prevista no n.º 1 do artigo 410.º do Código Civil, o contrato promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar novo contrato. Assim, o contrato promessa integra o elenco dos contratos denominados preliminares, ou seja é um contrato cujo objeto pressupõe a celebração de outro contrato (o contrato prometido ou definitivo). Como salienta ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª edição, págs. 306 e segs., o contrato promessa cria a obrigação de emitir uma declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. A obrigação assumida tem assim por objeto uma prestação de facto positivo, um facere oportere. E o direito correspondente atribuído à outra parte traduz-se numa verdadeira pretensão. O contrato promessa de contratar tem efeitos meramente obrigacionais assumindo-se, mediante a sua celebração, a obrigação de celebrar um contrato futuro, ainda que este tenha eficácia real. Apesar da indiscutível autonomia entre os dois contratos, a lei sujeita, em princípio, o contrato promessa ao mesmo regime do contrato definitivo é o que se denomina princípio da equiparação. No entanto, consagra duas importantes exceções: uma relativa à forma e a outra às disposições que, pela sua razão de ser, não devam considerar-se extensivas ao contrato promessa cfr. o n.º 1 do artigo 410.º do Código Civil. Decorre, por exemplo, do artigo 879.º do Código Civil que a compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, ora este efeito não pode ser estendido ao contrato promessa já que dele, como atrás salientámos, apenas resulta a obrigação de celebrar um novo contrato veja-se, em conformidade, MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, Volume I, 2002, págs. 218 e segs. 3
2 Por força do princípio da imutabilidade do regime de bens consagrado no n.º 1 do artigo 1714.º do Código Civil, não é permitido aos cônjuges, fora dos casos previstos na lei, alterarem o regime de bens legalmente fixado 2. Consequentemente, o argumento esgrimido pelo recorrente nas suas alegações de recurso tem de ser vivamente repudiado já que o contrato promessa não opera a transmissão do bem em causa, pois esta só vem a ocorrer com a celebração do contrato definitivo, vale por dizer, com o contrato de compra e venda e este foi celebrado já na vigência do matrimónio, sem que tenha havido separação de pessoas e bens. A existência ou não do contrato promessa e a respectiva data é, neste contexto e para este efeito, completamente irrelevante. Mas ainda que o argumento invocado pudesse ter algum acolhimento, sempre os documentos em causa teriam de instruir o pedido de registo, pois não podem ser tidos em consideração os documentos apenas apresentados na fase de recurso hierárquico vd., neste sentido, o parecer proferido no proc.º R.P.120/2000, in BRN n.º 11/2000, págs. 19 e segs., do qual se transcreve a I conclusão: «Na fase de impugnação das decisões do conservador não é admitida a apresentação de documentos com vista à requalificação do registo». Por fim, uma breve alusão à existência da procuração irrevogável. Como se sabe, consideram-se irrevogáveis as procurações que tenham sido outorgadas no interesse comum do procurador e do dominus cfr. o que preceitua o n.º 3 do artigo 265.º do Código Civil. Se a procuração for outorgada tendo em consideração o interesse de duas pessoas, naturalmente que só pode ser revogada com o acordo de ambas. Os poderes conferidos na procuração em apreço deixaram, por força de alterações supervenientes das circunstâncias, isto é, devido ao casamento entre a representada e o seu procurador, de poder ser exercidos, pelo que, enquanto o vínculo matrimonial se mantiver inalterado, não pode validamente ser invocada a sua existência. É que não podemos deixar de ter presente que a própria representada não tem, nas circunstâncias atuais, poderes de venda do bem ao seu cônjuge, por força do prescrito no n.º 2 do citado artigo 1714.º do Código Civil. Assim, o procurador não pode, actualmente, invocar a concessão de poderes que à própria representada não assistem. Veja-se, no que concerne à irrevogabilidade da procuração e ao interesse do dominus e do procurador, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, in A Procuração Irrevogável, 2002, págs. 86 e segs., e 133 e segs. Em face do exposto, fácil é inferir que o presente recurso não merece provimento nem mesmo, sublinhe-se, no caso de o contrato promessa e a procuração terem sido atempadamente juntos ao processo registal. 2 Dada a clareza da lei, diremos muito simplesmente que o princípio da imutabilidade dos bens, plasmado no n.º 1 do artigo 1714.º do Código Civil, não permite que se altere o regime de bens legalmente fixado. Ora, em face da proibição de negócios sobre bens concretos dos cônjuges que se encontra expressamente prevista no n.º 2 do referido artigo 1714.º, as vendas entre cônjuges, não separados de pessoas e bens, são indiscutivelmente proibidas vd., para mais desenvolvimentos sobre o ponto, PEREIRA COELHO, in Curso de Direito da Família, Volume I, 2001, págs. 489 e segs., bem como ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, in Código Civil Anotado, Volume IV, pág. 399. 4
3 Encontrando-se abrangida pela aludida proibição a celebração de contratos de compra e venda entre cônjuges, não separados de pessoas e bens, o negócio de compra e venda titulado pela escritura pública ora apresentada será nulo por atentar contra disposições legais de caráter imperativo, como decorre do preceituado nos artigos 1714, n.º 2, e 280.º, ambos do Código Civil 3. 4 Consequentemente, o registo de aquisição peticionado deve ser recusado, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 69.º do Código do Registo Predial, por ser manifesta a nulidade do facto. Assim, em conformidade com todo o exposto, o entendimento deste Conselho vai no sentido de que o presente recurso hierárquico não merece provimento. Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 25 de janeiro de 2012. Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, relatora. Esta deliberação foi homologada pelo Exmo. Senhor Presidente em 27.01.2012. 3 Como já salientámos, enquanto vigorar o casamento entre a e o..., e não havendo separação de pessoas e bens, nem a própria pode proceder à venda de metade da sua fração autónoma ao seu cônjuge nem, por maioria de razão, o próprio... o pode fazer não obstante esteja munido de procuração irrevogável, que lhe confere poderes para, em abstrato, proceder à aludida venda, já que existe norma imperativa que expressamente o proíbe. Como é sabido, os negócios jurídicos contrários à lei (vale por dizer, que contrariem normas legais imperativas) são nulos, por força do prescrito no n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil. Nestes termos, a manifesta nulidade do facto demanda, seguramente, a recusa do correspondente registo. 5
FICHA Proc.º n.º R.P. 181/2011 SJC-CT Súmula das questões abordadas Contrato promessa versus contrato prometido artigo 410.º, 408.º e 879, todos do Código Civil. Civil. Regime da imutabilidade do regime de bens n.º 1 do artigo 1714.º do Código Proibição de celebração de contratos de compra e venda entre os cônjuges n.º 2 do artigo 1714.º. Nulidade do negócio jurídico que atente contra disposições legais de caráter imperativo artigo 280.º do Código Civil. ***** 6