Marcelo Rangel Lennertz. Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade. Dissertação de Mestrado



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Transcrição:

Marcelo Rangel Lennertz Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Direito da PUC-Rio. Orientador: José Maria Gómez Rio de Janeiro Junho de 2008

Marcelo Rangel Lennertz Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: Entre Facticidade e Validade Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Mestre em Direito. Prof. José Maria Gómez Orientador Departamento de Direito PUC-Rio Profª. Gisele Guimarães Cittadino Departamento de Direito PUC-Rio Prof. Paulo Todescan Lessa Mattos Escola de Direito do Rio de Janeiro FGV DIREITO RIO Prof. Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais PUC-Rio Rio de Janeiro, 12 de junho de 2008.

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Marcelo Rangel Lennertz Graduou-se em Direito na PUC-Rio em 2004. Advogado. Pesquisador da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas FGV DIREITO RIO. Lennertz, Marcelo Rangel Ficha catalográfica Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: Entre Facticidade e Validade / Marcelo Rangel Lennertz; orientador: José Maria Gómez. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008. 175fl 29,7 cm 1. Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui referências bibliográficas. 1. Direito Teses. 2. Democracia; 3. Estado Regulador; 4. Agências Reguladoras; 5. Participação Popular; 6. Legitimidade democrática; 7. Esfera pública; 8. Teoria discursiva do Direito e da democracia; 9. Jürgen Habermas; I. Gómez, José Maria. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título. CDD: 340

Para Ingrid, meu amor.

Agradecimentos Agradeço, como tudo e como sempre, à minha família pelo apoio em mais esta conquista. À Ingrid, sou grato, sobretudo, por seu companheirismo nos momentos mais difíceis dessa trajetória. Também não poderia deixar de agradecer a José Maria Gómez, pela orientação paciente e atenciosa, e aos membros da banca, Paulo Todescan Lessa Mattos e Gisele Guimarães Cittadino, pela disponibilidade e interesse em avaliar o presente trabalho. Por fim, gostaria de registrar minha gratidão a todos os professores que fizeram parte de minha formação no programa de mestrado, em especial Gisele Cittadino, Adriano Pilatti, Ralph Ings Bannel, Adrian Sgarbi e Márcia Nina Bernardes; aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação do Departamento de Direito da PUC-Rio, Anderson Torres Almeida e Carmen Barreto Rezende; a meus colegas de turma; a todos da FGV DIREITO RIO, em especial aos professores Guilherme Leite, Leandro Molhano, Luís Fernando Schuartz e Joaquim Falcão, e ao pesquisador Pedro Cantisano; e à CAPES pelo financiamento de minha atividade acadêmica durante esse período. Sem a contribuição de todos, este trabalho não teria se concretizado.

Resumo Lennertz, Marcelo Rangel; Gómez, José Maria (Orientador). Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro, 2008. 175 p. Dissertação de Mestrado Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O presente estudo tem como objetivo investigar o problema da legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras no Brasil a partir da seguinte questão: Como pensar a legitimação da atividade de produção de normas dessas entidades administrativas brasileiras a partir da teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas? O foco da análise são os desafios que uma teoria que explica os processos de integração e reprodução da sociedade a partir de um conceito de racionalidade situado entre a facticidade e a validade das ações sociais deve enfrentar, quando aplicada a realidades distintas daquela a partir da qual foi elaborada. Para tanto, assume-se, como ponto de referência, a obra de Paulo Todescan Lessa Mattos, que, em relação às agências reguladoras, é o principal representante de uma corrente analítica que enxerga, no modelo habermasiano de legitimação pelo procedimento discursivamente estruturado, uma saída teórica capaz de oferecer parâmetros normativos para a legitimação democrática da atuação normativa dessas entidades. O diálogo com a posição de Mattos e suas conclusões sobre o tema é constante ao longo do trabalho e estabelece a base sobre a qual são levantados alguns pontos problemáticos da tentativa de identificar, a partir da teoria de Habermas, potenciais de legitimação democrática nos espaços de participação popular institucionalizados no interior dos processos de tomada de decisão das agências reguladoras brasileiras. Palavras-chave Estado regulador; agências reguladoras; democracia; participação popular; legitimidade democrática; separação dos poderes; esfera pública; teoria discursiva do Direito e da democracia; Jürgen Habermas.

Abstract Lennertz, Marcelo Rangel; Gómez, José Maria (Orientador). Regulatory Agencies and Democracy in Brazil: between Facts and Norms. Rio de Janeiro, 2008. 175p. Master of Arts Dissertation Law Department, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. The main purpose of this work is to analyze the issue of democratic legitimacy of regulatory norms produced by independent agencies in Brazil, considering the following question: How to think about legitimating the lawmaking activity of these administrative entities according to Jürgen Habermas discourse theory of democracy and the law? The analysis focuses on the challenges that a theory which explains the integration and reproduction processes of modern societies through a concept of rationality situated between the facts and norms of social action must face, when applied to a reality that is different from the one that inspired its development. Thus, I take the work of Paulo Todescan Lessa Mattos, an authority in the topic of regulatory agencies, as a reference of an analytical perspective that sees in Habermas discursive model of procedural legitimation a way to find normative parameters to legitimate the norms of these entities. The dialog with Mattos argument and his conclusions is constant in this work, and it sets the basis for developing several problematic issues related to identifying, through Habermas theory, potentials of democratic legitimation in the institutionalized spaces of public participation within the decision-making processes of Brazilian regulatory agencies. Keywords Regulatory State; regulatory agency; democracy; public participation; democratic legitimacy; separation of powers; public sphere; discourse theory of law and democracy; Jürgen Habermas.

Sumário 1. Introdução 9 2. Agências reguladoras no Brasil: os juristas e a legitimidade 15 democrática 2.1. O Estado brasileiro contemporâneo e as agências reguladoras 15 2.1.1. A construção do Estado Regulador brasileiro 19 2.1.2. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado como 28 marco para o Estado Regulador no Brasil 2.1.3. As agências reguladoras e o novo modelo de Estado 33 2.2 Agências reguladoras independentes e legitimidade 36 2.3. O debate no meio jurídico brasileiro 42 3. Fundamentos normativos para um novo modelo de análise 50 3.1. Ação comunicativa e ética discursiva 53 3.2. Entre mundo da vida e realidade sistêmica: O Direito como 68 medium 3.3. A legitimação do Direito e do poder político no Estado de Direito 76 3.3.1. Reconstrução do sistema de direitos 78 3.3.2. Reconstrução dos princípios do Estado de Direito 87 3.3.3. A circulação do poder político legítimo nas sociedades 102 modernas 4. Teoria do discurso, participação e agências reguladoras no Brasil 115 4.1. O modelo habermasiano e as agências reguladoras brasileiras 117 4.2. Vantagens analíticas da proposta de Mattos 133 4.3. Aspectos problemáticos da proposta de Mattos 134 4.3.1. Legitimação, separação dos poderes e participação popular 4.3.2. Legitimidade e circulação do poder político: rotina e crise 135 145 4.3.3. O conceito de esfera pública no Brasil 149 5. Conclusão 167 6. Referências bibliográficas 170

1 Introdução Ao longo da década de 1990, assistiu-se no Brasil à implementação de uma série de transformações institucionais que se convencionou chamar de Reforma do Estado. O discurso que inspirou esse conjunto de reformas defendia, como seu objetivo mais geral, reforçar a governança do Estado brasileiro através da superação de sua grave crise fiscal e da instauração de um modelo gerencial de Administração Pública, que superasse os anéis burocráticos característicos do modelo anterior e fosse capaz de atender às exigências de flexibilidade e eficiência impostas pela globalização econômica, a fim de aperfeiçoar os serviços públicos prestados aos cidadãos. Nesse sentido, os programas de privatização e desestatização das denominadas atividades não-exclusivas do Estado figuravam como pontos essenciais da reforma. A idéia era aumentar a participação do setor privado nessas atividades e, desse modo, desinchar o aparelho estatal, reduzindo os gastos públicos. Sustentava-se, porém, que a atração do setor privado principalmente o capital internacional para o investimento nessas atividades demandava o estabelecimento de uma moldura regulatória estável e sua execução técnica por órgãos reguladores independentes, a fim de garantir as regras do jogo e, portanto, a previsibilidade nas relações entre investidores e poder público. A criação das agências reguladoras no Brasil se enquadra nesse contexto mais amplo de reforma do Estado. A elas caberia a função de normatizar, disciplinar e fiscalizar a atuação de agentes privados em setores da atividade econômica que o Poder Legislativo optou por entregar à regulamentação tecnicamente especializada e politicamente autônoma. Por meio dessa autonomia política das agências reguladoras se buscava, por um lado, corrigir as chamadas falhas de mercado, e, por outro, assegurar aos investidores que as decisões estatais às quais estariam submetidos seriam pautadas por critérios técnicos e, portanto, imunes a interferências políticas indevidas. Porém, se, do ponto de vista econômico, essa blindagem parecia estar justificada, do ponto de vista político, ela suscitava dúvidas quanto à legitimidade democrática da atuação das agências. De maneira geral, a questão que se colocava

10 era a seguinte: Como justificar politicamente a atuação normativa de uma entidade administrativa cujos dirigentes não são eleitos e cujas decisões não estão sujeitas à revisão por parte dos agentes políticos eleitos no processo democrático? No projeto de reforma do Estado, a solução proposta para esse problema estava ligada à criação de instrumentos de controle da atuação das agências reguladoras e à institucionalização de espaços para a participação popular em seus processos decisórios. Assim, destacavam-se, de um lado, os limites impostos à atuação das agências reguladoras em função de suas relações com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e órgãos como o CADE e os tribunais de contas, e, de outro, instrumentos como as audiências públicas e as consultas públicas, que visavam a tornar sua atuação permeável à participação popular. A grande maioria dos juristas, no entanto, concentrou suas análises sobre a questão da legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras no plano estritamente jurídico-formal. Ou seja, entre os principais autores de Direito administrativo e econômico no Brasil, a legitimidade ou ilegitimidade da atuação dessas entidades administrativas são normalmente defendidas com base numa lógica jurídico-formal de adequação de suas decisões aos princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes. Paralelamente, é possível perceber, desde a institucionalização, em 2001, do subgrupo Reforma do Estado e Democracia, do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CEBRAP (criado em 1999), o início de um novo tipo de análise sobre o tema, fruto das pesquisas desenvolvidas a partir do projeto temático Moral, Política e Direito: uma investigação a partir da obra de Jürgen Habermas. O objetivo do projeto era entender a atividade reguladora do Estado e a tensão por ela gerada entre eficiência econômica e legitimidade democrática para além do conceito lógicoformal de legitimidade, característico de grande parte do pensamento jurídico brasileiro. Nessa nova perspectiva de análise informada, normativamente, pela teoria de Jürgen Habermas foram postos em evidência fatores ligados ao funcionamento, na prática, desse novo modelo estatal, como, por exemplo, o modo através do qual se desenvolve o processo decisório sobre a definição do conteúdo da regulação e a avaliação dos efeitos desses processos decisórios sobre os interesses dos atores sociais. No Direito, destacam-se, como autores

11 representantes dessa corrente, Paulo Todescan Lessa Mattos, no que diz respeito às agências reguladoras, e Jean Paul Cabral Veiga da Rocha, quanto à regulação do sistema financeiro. O presente estudo tem como objetivo geral investigar o tema da legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras. Entretanto, em razão de limites de tempo e espaço, optei por recorte analítico bastante específico. Pretendo problematizar a possibilidade de aplicação do modelo teórico de legitimação procedimental proposto por Habermas às agências reguladoras brasileiras. Justamente por isso, assumo, como interlocutora principal, a corrente analítica fundada pelo Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP, que enxerga no modelo habermasiano de legitimação pelo procedimento discursivamente estruturado uma saída teórica capaz de oferecer parâmetros normativos na busca por soluções para os problemas gerados pela tensão entre, de um lado, a descentralização do poder estatal e o surgimento de núcleos decisórios autônomos, e, de outro, a necessidade de legitimação democrática da atuação dessas entidades. E, dado que o tema restringe-se à legitimidade das agências reguladoras, a obra de Mattos, principal representante da referida linha de pesquisa cebrapeana em relação a essas entidades administrativas, foi adotada como principal ponto de referência. O diálogo com a posição de Mattos e suas conclusões sobre o tema é constante ao longo do trabalho e fornece a base sobre a qual são levantados alguns pontos problemáticos dessa aplicação da teoria de Habermas às agências reguladoras. Mais especificamente, da tentativa de identificar, nos espaços de participação popular institucionalizados nos processos de tomada de decisão das agências reguladoras, potenciais de legitimação democrática da atuação normativa dessas entidades. Importante ressaltar que tais críticas não se referem à proposta habermasiana em si, mas sim ao modo pelo qual ela tem sido aplicada à realidade das agências reguladoras brasileiras. O que, por outro lado, não implica dizer, necessariamente, que uma tal aplicação da teoria de Habermas é inviável, mas apenas que qualquer conclusão, positiva ou negativa, sobre sua viabilidade demanda o enfrentamento prévio de algumas questões fundamentais. Assim, se tenta afastar o risco de inserção num círculo vicioso, comum no cenário acadêmico jurídico no Brasil, no qual qualquer tentativa de aplicação de

12 teorias desenvolvidas nos países centrais aos problemas brasileiros é logo taxada de colonialismo intelectual, ou de idéia fora do lugar, e acaba, conseqüentemente, descartada. A superficialidade das razões que, muitas vezes, justificam a tentativa de importação dessas teorias parece ser diretamente proporcional à superficialidade das razões que justificam seu abandono. Daí porque há quem se refira a esse processo de valorização acrítica de modelos teóricos concebidos alhures como um fenômeno de legitimação pelo deslumbramento, que acrescento eu encontraria seu correlato no processo oposto de rejeição pelo desconhecimento. A intenção, aqui, é outra. Não se nega que o intercâmbio acadêmico entre centro e periferia pressupõe a adoção de uma perspectiva crítica acerca de teorias que são pensadas e desenvolvidas a partir de outra realidade e, portanto, a partir de problemas muitas vezes também distintos. Porém, isso não implica, necessariamente, o descarte dessas teorias. Tentativas teóricas responsáveis de adaptação e aplicação de idéias oriundas de outros países como é o caso devem ser levadas a sério e problematizadas a partir de suas próprias proposições. O confronto de experiências, a apresentação de novos problemas e, eventualmente, a demonstração das insuficiências e as conseqüentes propostas de alteração fazem parte do processo de construção e consolidação de uma teoria que pretenda produzir algum tipo de conhecimento sobre a realidade. Nesse sentido, para aqueles que desejam aplicar a teoria pensada por Habermas à realidade das agências reguladoras no Brasil, o questionamento prévio acerca da possibilidade de sua compatibilização às particularidades do cenário regulatório brasileiro me parece etapa indispensável a ser percorrida. A exposição do tema foi dividida da seguinte maneira: No primeiro capítulo, apresento o processo histórico de criação das primeiras agências reguladoras no Brasil, bem como o problema que sua criação suscitou em termos de legitimidade e a maneira como esse problema tem sido enfrentado no meio jurídico brasileiro. Esse capítulo inicial é importante para a compreensão do contexto no qual se insere a proposta de aplicação do pensamento de Habermas aos processos decisórios das agências reguladoras brasileiras. Devido a este caráter acessório, optou-se por uma narrativa linear e simplificadora dos eventos que marcaram esse processo histórico, privilegiando a dimensão institucional-

13 legal de investigação em detrimento da profundidade e da complexidade analítica que uma reconstrução histórica comporta. No segundo capítulo, apresento o modelo teórico de legitimação procedimental desenvolvido por Jürgen Habermas, destacando, evidentemente, os aspectos que julgo relevantes para a compreensão da proposta teórica de Mattos e para o desenvolvimento das críticas que a ela dirijo no capítulo seguinte. O terceiro capítulo representa, pois, o núcleo do presente trabalho. Nele, exponho minha interpretação sobre o modelo de análise proposto por Mattos com base na teoria discursiva do Direito e da democracia de Habermas para a investigação da legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras, e aponto aquelas que são, a meu ver, as vantagens analíticas proporcionadas pela adoção dessa perspectiva para o estudo do tema. No mesmo capítulo, problematizo a proposta de Mattos a partir de três críticas que têm sua origem nos desafios que uma teoria como a de Habermas que explica os processos de integração e reprodução da sociedade a partir de um conceito de racionalidade situado entre a facticidade e a validade das ações sociais deve enfrentar quando aplicada a realidades distintas daquela a partir da qual foi elaborada. A primeira se relaciona com a aplicação dessa teoria à atividade regulatória. São explorados, principalmente, os pontos problemáticos da aplicação das conclusões habermasianas sobre o princípio da separação dos Poderes do Estado à estrutura institucional do modelo regulador de Estado. A segunda diz respeito à operacionalização do conceito habermasiano de legitimidade para a construção de um modelo de análise empírica. A terceira está relacionada à aplicação do modelo teórico de Habermas à realidade sócio-política brasileira. Nela, o foco da análise são as dificuldades que a realidade brasileira apresenta à acomodação de um conceito essencial ao modelo habermasiano de legitimação procedimental: o conceito discursivo de esfera pública. Nesse sentido, aponto estudos que têm procurado identificar as peculiaridades da esfera pública na América Latina e, especificamente, no Brasil, sustentando que os mesmos devem ser levados em conta nas pesquisas que visam a investigar a legitimidade do poder administrativo no âmbito das agências reguladoras. Ao final, em sede de conclusão, procuro explicitar a linha condutora do presente trabalho e, em caráter especulativo, formulo algumas impressões sobre os caminhos a serem percorridos por aqueles que pretendem utilizar a teoria de

14 Habermas para compreender os problemas relacionados à realidade sócio-política brasileira.

2 Agências reguladoras no Brasil: os juristas e a legitimidade democrática Neste capítulo inicial, procurarei delimitar o contexto em meio ao qual surgiram os questionamentos sobre a legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras e, posteriormente, a proposta de aplicação da teoria de Habermas como possível solução para este problema. Na primeira seção, (1) será desenhado o cenário no qual se insere o problema de pesquisa. Para tanto, reconstruirei o processo de criação das agências reguladoras no Brasil, que se insere no processo mais amplo de reforma do Estado na década de 1990. Em seguida, (2) destacarei os questionamentos sobre legitimidade democrática das agências reguladoras, que permanecem latentes desde o momento da criação dessas entidades no cenário administrativo brasileiro. Ao final, (3) apontarei, brevemente, as principais correntes jurídico-doutrinárias sobre o tema, procurando demonstrar suas insuficiências. 2.1 O Estado brasileiro contemporâneo e as agências reguladoras A ordem econômica prevista na Constituição de 1988 1 evidencia a influência, no Brasil, de uma certa concepção acerca das funções do Estado e da forma de sua intervenção na economia que ganhou força mundialmente a partir da 1 Como analisa Sérgio Guerra: É de notar-se que os arts. 173, 174, 176 e 177 da Constituição Federal definiram, expressamente, o que compete ao Estado no ordenamento econômico. Por esses dispositivos constitucionais, o desempenho estatal deve se concentrar nas funções de fiscalização, incentivo e planejamento, permitindo-se, contudo, a sua atuação direta mediante a exploração de atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, bem como nos casos de monopólio estatal. Assim, conclui o autor que: Esse novo papel do Estado está subsumido ao princípio da subsidiariedade, pelo qual a iniciativa privada tem primazia sobre a iniciativa estatal. Vale dizer, o Estado deve abster-se de exercer qualquer atividade que compete à livre iniciativa, cabendo a este o fomento, a coordenação e a fiscalização das atividades desenvolvidas pelo particular (GUERRA, Sérgio. Introdução ao Direito das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 6). Note-se, por outro lado, que, embora o título sobre a ordem econômica e financeira da Constituição de 1988, se comparado com o do regime anterior, revele a opção por um Estado dotado de novas funções e de instrumentos diferentes de intervenção na economia, a estrutura da administração pública nela disposta representava, de fato, uma barreira para a implementação desse novo modelo de Estado. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado foi elaborado em 1995 justamente com o objetivo de adequar a estrutura da administração pública brasileira às exigências desse novo modelo de Estado.

16 década de 1980. O modelo de Estado construído a partir dessa concepção tem sido representado entre os juristas brasileiros pela fórmula Estado Regulador. É importante ressaltar que sob o título de Estado Regulador se encontram experiências de Estado que possuem diferenças significativas entre si. Ou seja, embora as funções e forma de intervenção na economia desses Estados sejam semelhantes justamente por isso, são denominados Estados Reguladores o contexto de seu surgimento e, conseqüentemente, os problemas para os quais pretendem oferecer soluções, são bastante distintos. Nesse sentido, pode-se, por exemplo, distinguir o atual Estado Regulador brasileiro do Estado Regulador implementado nos E.U.A. durante o período do New Deal 2 (1933-1940). O Estado Regulador do New Deal surgiu como uma resposta à crise gerada pelo Estado capitalista liberal do laissez-faire, nãointervencionista, que se baseava na auto-regulação das relações econômicas pelo mercado, segundo a lógica do equilíbrio de preços dada pelo mercado concorrencial puro (...), e que funcionaria segundo o pressuposto de que o homem age racionalmente buscando a maximização de seus interesses individuais 3. A concentração do capital gerada por esse sistema, associada à superprodução e à especulação financeira, levou à depressão econômica do início do séc. XX, nos E.U.A., que teve seu apse com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929. Diante desse quadro, defendia-se como necessário um conjunto de mudanças institucionais que permitissem ao Governo federal enfrentar os 2 Embora nos E.U.A. a primeira agência reguladora tenha surgido ainda no séc. XIX, o Estado Regulador tal como o entendemos só surge, de fato, com a implementação do New Deal. Como explica MATTOS: Nos Estados Unidos, a regulação de mercados tem início no final do século XIX, com a criação de órgãos de regulação estaduais. A primeira agência de regulação estadual a ter relevância no cenário econômico norte-americano é a Massachussets Noard of Railroad Commissioners, criada em 1869 para regular o transporte por meio de estradas de ferro na região. Contudo, a regulação por meio de agências independentes começa a se desenvolver efetivamente nos Estados Unidos com a criação da primeira agência de regulação setorial federal, em 1887: a Interstate Commerce Comission. No entanto, nesse momento, além das preocupações relativas a controle de tarifas, segurança e qualidade dos serviços, outras se colocam no horizonte. Em 1890 é editado pelo Congresso o Sherman Antitrust Act, e em 1914 são editados o Clayton Act e o Federal Trade Comission Act, que reforçam o aparato jurídico-institucional para a defesa da concorrência e para a regulação de mercados nos Estados Unidos. Porém, as agências de regulação se tornam importantes como mecanismos jurídico-institucionais de intervenção do Estado sobre a economia (MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia: Contexto e Perspectivas na Compreensão das Agências de Regulação no Brasil, in: FARIA, José Eduardo (org.), Regulação, Direito e Democracia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, pp. 45-46). 3 Cf. MATTOS, Paulo. O Novo Estado Regulador no Brasil: Eficiência e Legitimidade. São Paulo: Editora Singular, 2006, p. 70.

17 inúmeros problemas econômicos e sociais que surgiram no rastro da depressão 4. O Estado assumia, assim, o dever de sair de sua inércia não-intervencionista para atuar no mercado visando, principalmente, a controlar os monopólios e a concorrência destrutiva, e a planejar o desenvolvimento econômico norteamericano através da elaboração de estratégias de crescimento dirigidas ao setor industrial 5. O contexto da construção do Estado Regulador brasileiro na década de 90, porém, é bem diferente e se insere num quadro mais amplo de mudanças na forma de intervenção do Estado na Economia, no qual estão compreendidos, também, os fenômenos da desestatização dos Estados capitalistas europeus e da deregulation nos E.U.A.. Certo é que, até a década de 1980, a intervenção estatal na economia encontrava seu fundamento nas teorias que defendiam um rígido controle do desenvolvimento econômico por parte do Estado, o que se traduziu nas políticas econômicas de nacionalização, na Europa, e regulação, como vimos, nos Estados Unidos 6. Este panorama se alterou, porém, nas últimas décadas do século XX. Nos E.U.A., a idéia de regulação que inspirou o New Deal passou por grandes transformações ao longo dos anos. A mais significativa tem como marco fundamental o movimento regulatório que se convencionou chamar de New Social Regulation (1965-1980), que tinha sua base ideológica na New Left 7 norteamericana. Se o discurso que fundamentava o Estado Regulador do New Deal tinha como objetivo principal corrigir as falhas do mercado econômico, o discurso defensor do Estado pós New Social Regulation buscava proteger os indivíduos não apenas contra os interesses do grande capital, mas contra os interesses de um Estado no qual o poder decisório estaria profundamente centralizado 8. A principal crítica da New Left ao New Deal se dirigia ao insulamento burocrático gerado por suas medidas, que afastavam a participação dos indivíduos na formulação de políticas públicas, delegando o poder de decisão acerca de seu conteúdo a um 4 Cf. SUNSTEIN, Cass. O Constitucionalismo após o The New Deal, in: MATTOS, Paulo Todescan Lessa (coord). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Norte-Americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 132. 5 Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 86. 6 Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 44. 7 (...) a força dessa segunda onda regulatória nos Estados Unidos nasce nos movimentos políticos que serão qualificados depois como a New Left norte-americana. A organização de movimentos de ativistas políticos favoráveis à radicalização da democracia na década de 1960 os civil rights movements permitiu o desenvolvimento das bases teóricas que iriam dar suporte à New Social Regulation (Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., pp. 86-87). 8 Cf. Ibid, p. 87.

18 grupo de especialistas. O movimento do New Social Regulation acrescentou aos objetivos regulatórios do New Deal, portanto, a preocupação em corrigir os problemas de informação imperfeita aos consumidores e a pequenos acionistas, além dos relativos à segurança dos produtos, proteção do meio ambiente, certeza dos resultados da ação regulatória e maior eqüidade distributiva 9. Essas mudanças resultaram numa redução do poder ou do grau de intervenção das agências de regulação sobre os entes privados 10, gerando um movimento de desregulação (deregulation) 11 da economia americana nos anos 1980. No caso europeu, as mudanças na forma de intervenção do Estado na economia ocorridas na década de 1980 têm como pano de fundo um cenário diverso do norte-americano 12. A crise fiscal do Welfare State fez surgir nos Estados capitalistas europeus o discurso sobre a necessidade de reformar sua estrutura jurídico-administrativa, de modo a diminuí-la para reduzir custos. Somese a isso a concretização do projeto da União Européia em sua vertente econômica, que se fundava nos princípios da livre iniciativa e da concorrência, e, desse modo, não poderia admitir monopólios estatais 13. A solução adotada por esses países foi a introdução, em suas ordens jurídicas, de instrumentos de fiscalização e regulação da ordem econômica, que deram condições institucionais para o processo de privatização das empresas estatais e para a quebra de monopólios com a introdução de concorrência em vários setores da economia européia 14. 9 Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 86; Ver também: MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 46. 10 Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 50. 11 Explica Paulo Mattos que: Nos Estados Unidos, a chamada desregulação da economia (deregulation) pode ser compreendida como uma redução do poder ou do grau de intervenção das agências de regulação sobre os entes privados. No entanto, podemos também definir desregulação como redução ou flexibilização das próprias normas existentes (desregulação em sentido amplo). Tais processos de desregulação passam a ganhar força nos Estados Unidos fundamentalmente a partir das seguintes críticas ao controle do desenvolvimento econômico com base em agências de regulação: captura das agências por parte dos interesses dos administrados; restrições ao ingresso de novas empresas no mercado; desincentivo à inovação; instrumentos regulatórios ineficientes com custo de aplicação excessivo; dificuldade de coordenação entre os programas de regulação; dificuldades no controle das agências; criação de distorções na concorrência (Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., pp. 50-51). 12 Para um panorama dos debates relacionados à implantação do Estado Regulador nos países capitalistas europeus nos anos 80, ver: MATTOS, Paulo Todescan Lessa (Coord.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Europeu. São Paulo: Eitora Singular, 2006. 13 Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., pp. 48-49. 14 Cf. Ibid., p. 49.

19 Ou seja, se a crise do mercado foi responsável pelo surgimento do Estado Regulador do New Deal e a defesa de uma maior participação da população com vistas à limitação da atuação desse novo Estado resultou nas reformas da New Social Regulation, serão a crise fiscal do Estado de bem-estar social e a integração econômica proporcionada pela criação da União Européia as principais causas da defesa da construção do modelo regulador de Estado nos países capitalistas europeus nos anos 80. O surgimento do Estado brasileiro contemporâneo insere-se, pois, num contexto mais amplo de reformas regulatórias no qual se inserem, também, os casos norte-americano e europeu e dele recebeu influências claras. Com efeito, em que pese suas especificidades jurídico-institucionais e o contexto macroeconômico de sua implantação, o discurso que acompanhou a criação do Estado Regulador brasileiro se caracterizava, basicamente, pela busca em corrigir a sua crise fiscal, diminuindo o tamanho do aparelho do Estado e criando novos entes administrativos dotados de independência e competência técnica para decidir como ocorreu entre os países capitalistas europeus e pelo aumento da eficiência no controle social dos atos da administração pública tal qual verificado ao longo dos anos 80 nos E.U.A.. A seguir, (a) apresentaremos o processo de implementação desse modelo de Estado no Brasil, para, então, (b) identificarmos as principais diretrizes do projeto governamental que o viabilizou institucionalmente o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE). Ao final, (c) destacaremos a importância do papel atribuído às agências reguladoras pelo PDRAE no processo de reforma do Estado brasileiro. 2.1.1 A construção do Estado Regulador brasileiro No meio jurídico, o denominado Estado Regulador brasileiro é, normalmente, definido como um modelo de Estado que intervém na economia de forma indireta, fixando, através de entidades administrativas dotadas de alto grau de autonomia e tecnicamente especializadas, certos parâmetros para o mercado, com o objetivo de aumentar a competitividade entre os agentes produtivos e

20 assegurar uma coordenação eficiente do ponto de vista do bem-estar social das atividades econômicas. É, precisamente, com relação a estes dois aspectos, ou seja, a concepção acerca das funções que cabem ao Estado desempenhar e, principalmente, a maneira como este deve se relacionar com a economia e com a sociedade, que se diferencia o modelo regulador de Estado dos modelos liberal e socialdesenvolvimentista, que o precederam historicamente no Brasil. O modelo liberal de Estado, previsto pela Constituição de 1891 15, foi construído a partir dos ideais burgueses que inspiraram a formação dos E.U.A. 16 e a Revolução Francesa. Duas seriam suas características principais: A limitação do seu poder e a limitação de suas funções 17. A conjugação dessas duas idéias básicas tem como conseqüência o reconhecimento de uma esfera de liberdade dos indivíduos frente ao poder do Estado, constituída pelos chamados direitos fundamentais 18. E a atividade econômica faz parte dessa esfera de liberdade inviolável ao poder estatal. Assim, sob o ângulo da atividade econômica privada, os principais fundamentos do Estado Liberal, sobre os quais não cabia ao Estado intervir, eram a propriedade e os contratos 19. De fato, defendia-se que um mercado livre, que funcionasse segundo os interesses individualistas dos atores econômicos, traria benefícios para todo o conjunto da sociedade. Competia ao Estado apenas garantir o direito de propriedade e o cumprimento dos contratos. 15 Não ignoramos que o próprio fato de haver existido, realmente, um Estado liberal no Brasil é tema bastante controverso. Como escreveu José Afonso da Silva acerca da Constituição de 1891: Constituíra-se formoso arcabouço formal.(...) Faltara-lhe, porém, vinculação com a realidade do país. Por isso não teve eficácia social, não regeu os fatos que previra, não fora cumprida (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 79). Baseamos nossa análise dos modelos de Estado experimentados no Brasil, portanto, no modelo institucional-legal sobre o qual os mesmo se fundavam. 16 É notória a influência que a Constituição norte-americana e os ideais que a inspiraram exerceram sobre o processo de elaboração da Constituição brasileira de 1891, através de Rui Barbosa, revisor do projeto de Constituição apresentado à Assembléia Constituinte de 1890. Ver a respeito: BARRETO, Vicente (org.). O Liberalismo e a Constituição de 1988. Textos selecionados de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1991. 17 No mesmo sentido, Norberto Bobbio, para quem por liberalismo entende-se uma determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social (BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 7). 18 Ver a respeito: SCHMITT, Carl. Los Principios del Estado de Derecho Liberal, in: Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza, 1992. 19 Cf. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Novo Direito Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 49.