JARDINS RURAIS: a europeização da paisagem cafeeira paulista



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Transcrição:

JARDINS RURAIS: a europeização da paisagem cafeeira paulista BENINCASA, VLADIMIR Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (UNESP). Depto. de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo vladimir@faac.unesp.br RESUMO Trata da análise tipológica e funcional de jardins situados junto aos casarões de fazendas cafeeiras paulistas, surgidos entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, como forma de dar um ar civilizado e europeu a este ambiente de produção rural. Eles surgem como uma das decorrências da difusão do higienismo e do processo civilizador das classes trabalhadoras, surgidos na Europa, principalmente na Inglaterra e França e que chegam ao Brasil no final do século XIX. Aqui, tal movimento adquire um padrão menos democrático e mais elitista, encarregado de transformar inicialmente espaços urbanos privilegiados, destinados ao uso de classes mais abastadas, muitas vezes, até agindo como agente de segregação das camadas sociais. No ambiente rural, os jardins aparecem em decorrência de um processo de embelezamento do núcleo central das fazendas, generalizado num momento em que várias regiões do interior brasileiro se enriqueciam com a cafeicultura brasileira São Paulo em particular e começavam a sofrer a influência europeia e americana, que chegava pelos trilhos das ferrovias e/ou através do contato dessa nascente aristocracia que passava a veranear ou a estudar em terras estrangeiras. O papel de espaço segregador dos jardins, assim como nas cidades brasileiras, não está ausente no âmbito rural, nas fazendas. Aí, quase sempre ele funciona como uma camada envoltória do casarão, separando-o dos espaços destinados ao trabalho, não sendo livre o seu acesso somente pessoas autorizadas poderiam penetrá-lo, atravessá-lo e chegar ao casarão, sendo sempre envolvido por muros, por gradis ou mesmo por cercas de bambu. A metodologia do presente trabalho se vale do levantamento métrico e fotográfico em várias fazendas paulistas, além de coleta de dados históricos através de antigos almanaques, entrevistas, fotos antigas e documentação primária das fazendas para compor um painel desse paisagismo interiorano, e análise da localização, do formato e do desenho de canteiros. Entre as possíveis influências de jardins do Rio de Janeiro ou de São Paulo e dos grandes profissionais paisagistas que aí atuaram, como Jean Binot, Auguste Glaziou, Jules Joly, Ambroise Perret, Paul Villon, ou Frederico Guilherme de Albuquerque, entre outros, que deixaram a marca do paisagismo à francesa no ambiente urbano, também se pôde perceber, pela história oral e pelos levantamentos, traços do paisagismo de influência italiana e espanhola, inseridos provavelmente por profissionais anônimos, vindos em meio à grande massa de trabalhadores rurais atraídos pelo trabalho na cafeicultura. Palavras-chave: Jardins Rurais; Paisagismo do Século XIX; Fazendas Cafeeiras.

A função e as influências de jardins no ambiente rural paulista A inserção de jardins em fazendas cafeeiras em São Paulo ocorre a partir da segunda metade do século XIX, e tem como motivação inicial, antes de um caráter estético, a criação de um espaço envoltório, de circulação e acessos controlados, separando o casarão do local destinado ao trabalho, em que transitavam os trabalhadores. Mesmo fazendo parte do conjunto central de edificações, o casarão e seus habitantes foram isolados sutilmente do mundo da fazenda, utilizando-se de jardins, quintais e pomares cercados para não permitir que estranhos ao convívio familiar tivessem acesso direto a este meio. A simples presença de um jardim à frente da casa-grande já delimitava um espaço diferenciado. Vários fatores motivaram esta separação de espaços: desde culturais, como a tradição ibérica e muçulmana de isolar mulheres e crianças do contato com pessoas desconhecidas, sobretudo as do sexo masculino; e, também sociais, como o medo de um ataque de escravos ou, após a Abolição, de uma revolta de colonos. Floriza Barbosa Ferraz, filha de fazendeiros, escreveu, no início do século XX, rememorando sua infância na fazenda Pitanga, em Rio Claro, sobre o local que seu pai escolheu para a construção do novo casarão da fazenda: Quanto á séde onde fomos criados, meu Pae deu-lhe o nome de Jardim. Para nós éra mais do que isso, éra um paraizo. Meu Pae preferiu ali, afastado do movimento da fazenda, do contacto com os escravos, procurando nos cercar de todas as garantias e de proporcionar uma vida mais tranquilla á família. (MALUF, 1995, P. 57) Nesse relato percebe-se a concepção de uma arquitetura senhorial apartada do local de trabalho e protegida de um contato mais íntimo com os trabalhadores, definindo a ordenação e a separação dos espaços no ambiente rural paulista: senhores de um lado, trabalhadores de outro. Neste relato, as palavras jardim e paraíso são bastante significativas, e nos levam a pensar na concepção bíblica de Paraíso como local apartado do trabalho, onde reina a paz e a tranquilidade, o que também diz muito da tradição portuguesa de outrora: só tem necessidade de trabalhar quem não é fidalgo. Esses conceitos sobre os eventuais perigos da convivência com os trabalhadores começavam a ser passados às crianças desde cedo, como pode ser observado no seguinte trecho, onde a mesma Floriza conta que, quando seus pais ausentavam-se, os menores ficavam sob os cuidados da irmã Tudinha, que entretinha as crianças próximas à casa da fazenda, onde nos proporcionava brinquedos para que não nos afastassemos para longe. Ella sabia que éramos medrosas, que as págens nos contavam histórias de negro fugido, que pegavam crianças e levavam-nas para o mato para comer (MALUF, 1995, p. 23-24).

A mesma concepção aparece nas memórias de Odete Pinto de Souza Pereira Barreto sobre as férias que passava na fazenda Paraíso, de seu pai, em Itirapina, na década de 1920: Havia jardim somente em frente à casa, cercado, onde a gente ficava. Era todo cercado, protegido dos cachorros e galinhas que existiam. (...). Papai não deixava, naquele tempo (...), não deixava a gente sair além da porteira do jardim (BENINCASA, 2003, p.240). Como dito anteriormente, essa separação devia-se, sobretudo, à proteção das mulheres e das crianças da família: criaram-se, assim, territórios em que elas poderiam circular sem maiores preocupações e que, por isso, acabaram por ser confundidos com espaços de domínio quase exclusivamente femininos. Estes espaços eram o jardim frontal, o quintal e o pomar. Os jardins fronteiros e laterais nas casas-grandes foram muito comuns nas fazendas de café paulistas. Geralmente eram cercados de bambu ou por muros de alvenaria: ali as mulheres cultivavam espécies floríferas e folhagens, nativas ou de origem europeia, como roseiras, dálias, cravos, várias espécies de trepadeiras, jasmins, madressilvas, malva cheirosa, damas da noite e árvores ornamentais, como o manacá, a quaresmeira, o ipê e as palmeiras imperiais trazidas do Rio de Janeiro, entre outras. Daí, eram retiradas as flores que iriam enfeitar os altares, os oratórios, as mesas, enfim, toda a casa. O jardim, entre outras coisas, era um espaço lúdico e de lazer onde crianças brincavam protegidas por suas pajens, e os adultos se esqueciam dos negócios diários. Representavam o primeiro estágio de privacidade da família do proprietário e, muitas vezes, demarcando este limite, havia solenes portões de entrada, guarnecidos de grandiosos portais ornados de pinhas ou estátuas. Se nas primeiras fazendas da região este espaço funcionava apenas como limite físico entre o mundo privado e o mundo do trabalho, ao final do século XIX as ideias higienistas iriam valorizá-lo e modificá-lo de maneira profunda. Vão se transformar, assim como a adoção de uma arquitetura positivista e moderna do historicismo eclético, na demonstração da erudição do fazendeiro, que vive num ambiente em que se respira a cultura inovadora e intelectual da época. O jardim torna-se um elo entre a Natureza, de um lado, e o Intelecto, de outro; é também um dos locais onde se misturam ciência e arte. Ali se cultivavam espécies exóticas e aclimatadas ao clima local, em viveiros especializados, trazidas das mais diversas partes do mundo, que se tornou um novo hábito entre a classe mais abastada do país: formavam uma espécie de coleção botânica particular e erudita, de certo modo. Os antigos jardins, onde espécies vegetais proliferavam sem muito cuidado, passaram a ser mais bem planejados, ganharam área maior, com canteiros geométricos, delimitados por

tijolos em espelho, ou a topo, configurando um desenho reto e saliente em relação ao passeio, ou assentados a 45º, inclinados, configurando então um desenho denteado; alguns possuíam pequenos ou grandes tanques com repuxos, que umidificavam o ar. No seguinte trecho, pode-se observar a atuação da Condessa do Pinhal na criação destes espaços na Fazenda Pinhal, em São Carlos. Ao chegar ao seu novo lar, logo após seu casamento com Antonio Carlos de Arruda Botelho, o futuro conde do Pinhal, encontrou uma casa antiga, de taipa, em meio a currais, estábulos e engenho de cana-de-açúcar, enfim, um local de trabalho, sem a graça que havia na fazenda São José, em Rio Claro, onde morava com seus pais, os Viscondes de Rio Claro: Em seguida, quis enfeitar a casa, plantar à sua volta um jardim. Seu marido foi contra a idéia, explicando que a fazenda estava em formação e que não poderia dispensar nenhum escravo da roça para um serviço tão supérfluo. Ela, então mandou um próprio a Rio Claro para pedir ao irmão que lhe trouxesse mudas de plantas e sementes de flores. Ao lado da casa, desenharam e plantaram o canteiro das camaradinhas, escolheram um lugar para os jasmins, as madressilvas, os pés de malva cheirosa, as damas da noite e os manacás. (...). Ele se entusiasmou tanto ao acompanhar o crescimento das plantas que acabou por destacar dois escravos para os serviços do jardim e do pomar. O casal planejou junto as alamedas de jabuticabeiras e mangueiras, as touceiras de bambus e a rede de irrigação, através da qual a água corria à sua vontade. Uma secular figueira que já havia ali passou a ser o ponto de encontro e repouso preferido (GORDINHO, 1985, p.57). A Condessa, moça culta, e talvez conhecedora de ambientes mais refinados da Corte e de cidades maiores como Campinas ou mesmo São Paulo, liderou a criação de um espaço bastante simétrico na lateral da casa, envolto por cerca de tábuas regulares e pilares encimados por pinhas portuguesas, com canteiros concêntricos. À frente do casarão, em nível inferior ao jardim lateral, um grande tanque, com repuxo e grandes canteiros triangulares, centralizados pelo eixo da fachada. Os dois ambientes, cada um com seu caráter particular, funcionam como mirantes para o vale que se descortina à frente, lembrando muito, guardadas as devidas proporções, a concepção de alguns jardins maneiristas italianos, como o da Villa D Este. Essa difusão do cuidado com a paisagem começa a ocorrer ao final do século XVIII, com a inauguração do Passeio Público do Rio de Janeiro e vários Jardins Botânicos pelo país, na intenção de aclimatar espécies exóticas que deveriam ser utilizadas na lavoura (DOURADO, 2008, p.87). A criação de espaços públicos ajardinados, no cenário urbano brasileiro,

aumenta após a chegada da Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, se intensificando ao longo do século XIX, após a independência, com a entrada de uma série de botânicos e profissionais europeus ligados a construção civil e ao paisagismo no Brasil. Eles vinham atraídos pela oportunidade de alavancarem suas carreiras em um país jovem e promissor, principalmente nas zonas cafeeiras, onde praticamente tudo estava para ser feito, ou refeito, e onde a nova classe de aristocratas sonhava em criar um mundo diferente, à europeia, distinto do mundo português colonial. A França era o modelo máximo de cultura, no século XIX, a ser seguido. Assim, dentre esses profissionais que inovam a paisagem brasileira, podemos citar o paisagista e botânico francês Jean Baptiste Binot, responsável pela criação dos jardins do Palácio Imperial de Petrópolis; Auguste F. M. Glaziou que, a convite de Pedro II, realizou várias obras no Rio de Janeiro e Nova Friburgo, dentre eles a remodelação do Passeio Público. Em São Paulo, chama atenção a atuação de Jules Joly, que introduziu e aclimatou várias espécies de flores europeias em sua Chácara das Flores, que existiu no bairro do Brás, em São Paulo; e de Frederico Guilherme de Albuquerque, gaúcho que teve contatos e foi admirador da obra de Glaziou. Ambos, Joly e Albuquerque foram importantes fornecedores de mudas de plantas ornamentais e frutíferas, além de terem deixado vários projetos paisagísticos pela capital e pelo interior paulista. No interior paulista, também Ramos de Azevedo atuou no desenho de várias praças e parques em Campinas, e, provavelmente, na complementação paisagística dos vários projetos para casarões de fazendas, que executou em Campinas, Dourado, Ibaté, São Carlos, etc. Os espaços ajardinados, normalmente eram levados em consideração nas obras do arquiteto Ramos de Azevedo, demonstrando preocupação com as questões paisagísticas e urbanísticas. Ao conceber um edifício, observava a relação deste com seu entorno e com a cidade (LIMA, 2009, p. 151) Todos esses profissionais tinham como fonte de inspiração o paisagismo francês criado nas grandes reformas parisienses à época do Barão de Haussmann, caracterizado por amplos gramados, com moitas de arbustos e árvores dispostos cuidadosamente entre caminhos curvos e assimétricos e lagos. Toda essa ambientação era completada com a disposição de monumentos, esculturas, fontes, repuxos, pontes, mirantes, ou mesmo grandes gaiolas com pássaros ornamentais em pontos estratégicos, de modo a provocar uma variada gama de sensações, muitas vezes contraditórios e surpreendentes, ao longo do percurso. Assim, grandes eixos, tem sua atenção desviada por um monumento intencionalmente colocado logo após uma grande moita de arbustos e árvores, e assim por diante.

O modelo francês, no entanto, não foi o único a se propagar entre as fazendas cafeicultoras. Muitos dos imigrantes europeus que se aventuravam na lavoura cafeeira, tinham trabalhado na construção civil e conheciam o cultivo de espécies vegetais ornamentais europeias. São inúmeros os casos de profissionais que deixaram a lavoura e logo começaram a atuar como pedreiros, jardineiros, horticultores. Os anúncios podem ser vistos em vários jornais publicados em cidades paulistas, onde ofereciam seus serviços e vendas de mudas. Em geral, eram italianos, espanhóis, alemães, franceses e portugueses. Alguns chegaram a ficar bastante famosos, como os irmãos Dierberger, que depois de passarem pelo Rio de Janeiro, se fixaram em Limeira, e planejaram vários jardins no ambiente urbano e também em fazendas, como na Santo Antônio, em Araras. Dessa forma, as influências encontradas no ambiente rural cafeicultor são variadas, indo do jardim maneirista italiano, passando pelo período barroco francês, romântico inglês e, finalmente, no jardim francês do século XIX. Há casos em que a simetria é mantida em todo o projeto, com eixos bem marcados; em outras, criam-se nichos particulares, cada um deles tratados de maneira diferente, com caráter próprio do período maneirista; até chegarmos aos grandes planos gramados, entrecortados por caminhos suavemente curvos, com moitas arbustivas e espelhos d água esteticamente dispostos, com desenho nitidamente oitocentista. Uma das principais características desses jardins é que os passeios entre os canteiros, nem sempre eram calçados: às vezes, recebiam uma camada de areia lavada, retirada de riachos, para não sujar em demasia vestidos e calçados, sendo então cuidadosamente varridos ou rastelados diariamente, retirando folhas mortas e gravetos. Em nossos levantamentos feitos pelo interior paulista, nota-se que, depois dos últimos anos da década de 1880, os jardins começaram a ter um desenho mais elaborado e, às vezes, eram projetados junto com as casas de fazendas. Naquelas construídas anteriormente a esta data não havia um projeto de jardim, mas jardins espontâneos, onde espécies eram plantadas sem muito critério, amontoadas, raras vezes existindo mais que um ou dois exemplares da mesma espécie - o que não deixa de ser uma característica e conformar um certa estética caipira, que nunca deixou de existir. Nem sempre o jardim rural ocupou a parte fronteira da casa; em alguns exemplos, ele situa-se aos fundos da casa-grande, próximo ao pomar. Essa posição talvez esteja relacionada a uma tentativa de maior proteção e reclusão das pessoas, a um maior ganho de privacidade. No caso da Fazenda Paredão (Ibaté), isso fica bastante claro: o jardim ocupa uma área cercada por muro, estando bem acima do nível externo, uma vez que está localizado no aterro executado para a construção da casa-grande, junto às janelas da sala de jantar e à área de serviço. Em outros casos, como na Fazenda Baguassu (Araraquara), houve a execução de

dois jardins: o fronteiro e outro, mais particular, aos fundos, este último cercado de muros e equipado com uma fonte de água corrente, e para o qual se abria o alpendre traseiro, um ambiente extremamente agradável. Ambos os exemplos são do final do século XIX. Em algumas fazendas, como a Palmital (Ibaté) e a Guatapará (no município de mesmo nome, infelizmente destruída no final do século XX), cujos proprietários eram importantes famílias paulistanas (Moreira de Barros e Prado, respectivamente), os casarões foram construídos ao final do século XIX, provavelmente ambos por Ramos de Azevedo, muito distantes do núcleo de trabalho da fazenda. Essa era uma tendência que se tornava comum no meio urbano, privilegiando locais arejados e ensolarados, mais próximos à natureza, longe do barulho e da fumaça das máquinas. No século XIX, havia a metáfora do corpo orgânico, aplicado à sociedade. Este corpo deveria ser protegido, cuidado e assepsiado através de inúmeros métodos e mesmo de cirurgias que extirpassem suas partes doentes. Desta forma, o meio ambiente - o clima, a luz, o sol, o calor, o ar e a água - era o responsável principal pela saúde do corpo e de cada uma de suas partes, de cada indivíduo que compunha este corpo social. De acordo com a teoria dos fluidos, o ar e a água eram veículos mórbidos portadores de emanações fétidas e pútridas: os miasmas, transmissores de doenças. A inalação desses miasmas poderia provocar a ruptura do equilíbrio do organismo, obstruindo as artérias e veias, ocasionando o surgimento de doenças, febre pestilencial, escorbuto e gangrena (RAGO, 1985, p.167). A nova lógica para a locação do casarão, nessas fazendas, foi baseada no higienismo, ou seja, longe das emanações pútridas das fezes dos animais, dos estábulos, dos mangueiros, da fumaça das máquinas de beneficiamento, etc. Aos casarões passou a ser associada a ideia de prazer e fruição da vida no campo, um local onde se podia estabelecer um contato mais íntimo com a paisagem: os alpendres tornaram-se mirantes para a observação da natureza e dos animais - mesmo que estes estivessem dominados, nos graciosos jardins que passaram a envolvê-las. Num almanaque de São Carlos de 1917, encontra-se a seguinte descrição a respeito da fazenda Palmital, situada no então distrito de Ibaté: A residencia do proprietario é um predio elegante, bellissimo, confortavel, que nada inveja aos predios das cidades mais adeantadas do Estado; é circundada por um magnifico jardim, onde se encontram plantas exoticas, repuxos, cascatas e lagos artificiaes, aves raras etc. (CASTRO, 1917, s/p.) O próprio cronista, ao comparar o prédio rural com uma casa das cidades mais adeantadas do Estado - talvez inconscientemente - assinala a influência do modo de morar urbano, onde se difundiam as ideias higienistas, sobre as casas rurais que se construíam na época.

Comentaremos, no item seguinte, as características encontradas em jardins de algumas das zonas cafeicultoras paulistas. Jardins na Zona Central de São Paulo A região Central, onde estão situados municípios como Campinas, Itatiba, Mogi Guaçu, Piracicaba, Itu, etc., havia sido intensamente povoada por pessoas originárias de Minas Gerais desde o final do século XVIII, gente em geral habituada ao convívio com o ambiente urbano, de certo refinamento. Ao contrário de outras regiões paulistas, ela passara pelo ciclo da cana de açúcar que havia provocado um razoável enriquecimento, e mesmo as casas rurais, existentes nos engenhos, já demonstravam certo requinte. De certa maneira, havia uma elite mais afeita ao bem viver na época em que a cafeicultura aportou por aquelas bandas. E o dinheiro da nova lavoura, muito mais abundante do que o proporcionado pelo açúcar, lapidou ainda mais o gosto geral dessa aristocracia. Não à toa, Itu e Campinas eram das cidades paulistas mais adiantadas de toda a província, e portadoras de algumas das melhores e mais ornamentadas igrejas, de alguns dos mais belos casarões, de boas escolas, boas lojas. Havia uma vida cultural diferenciada do corrente nas demais cidades do interior. Assim, não é de se estranhar que muitas das fazendas ostentassem alguns novos beneficiamentos não destinados à produção, mas sim à fruição dos espaços. Foi nessa região que o apreço pelo conforto, junto a um gosto estético, começou a sair de dentro dos casarões, e a se refletir nas suas imediações. As maiores mudanças no final do século XIX, em se tratando do ambiente externo nas proximidades do casarão, talvez seja a introdução de espaços destinados aos jardins circundando o casarão, muitas vezes cercado de um muro que garantia privacidade, ou grandes pomares, em geral dispostos na parte traseira do casarão, cortado por canais de água, cercados por grossos muros de taipa de pilão, cobertos de telhas, com as árvores frutíferas formando aleias. Dignos de menção são os jardins existentes na Fazenda Engenho das Palmeiras (Itapira). Situados à frente do casarão, foram desenhados de maneira a formar caminhos sinuosos, entre os canteiros, contendo ainda um tanque com chafariz, hoje desativado, e um caramanchão com bancos. Como não havia banheiros no interior da residência, quando se construíram os jardins, provavelmente no final do século XIX, foram feitos também quatro pequenos banheiros numa de suas extremidades: dois banheiros voltados para o jardim e outros dois voltados para o pomar. Essa pequena edificação mostra claramente a sua ligação

Jardins do casarão da Fazenda Dona Carolina, Bragança Paulista (SP). Foto do autor. com o gosto eclético da época, inclusive no formato das aberturas, com bandeiras venezianas em formato ogival. Os canteiros e os passeios se dividem em dois ambientes: um cobrindo a extensão da fachada do casarão e outro ao seu lado, sendo ligeiramente maior: ambos, no entanto, atendem a um desenho bastante simétrico, por onde caminhos sinuosos dão-lhes um caráter de unidade. Esses jardins estão situados numa mesma plataforma, elevada por muros de arrimo, e cercados por mureta, sendo a privacidade familiar garantida, inclusive do espaço de trabalho das escravas, ao fundo. Nota-se aqui, uma mescla de influências francesa e italiana: há eixos muito bem marcados, que são dissimulados pela ondulação de alguns caminhos. Os jardins projetados nas imediações do casarão foram frequentes na Região Central, alguns bastante sofisticados, como os das fazendas Pereiras (Itatiba), e Dona Carolina (Bragança Paulista), possivelmente obras do mesmo arquiteto. Segundo informações obtidas na fazenda Pereiras, os jardins ali executados datam de final do século XIX e foram projetados por um arquiteto espanhol cujo nome se perdeu. A semelhança entre os dois exemplares mencionados acima se dá principalmente no desenho dos tanques dos chafarizes, revestidos de uma argamassa sobre a qual foram aplicadas conchas de pequenos moluscos e seixos rolados. Alguns outros elementos comuns podem ser vistos, como o uso de bancos construídos em alvenaria, etc. Ambos são espaços fechados, situados ao lado dos casarões e destinados aos familiares e àqueles que gozavam da intimidade do proprietário, em cenários quase idílicos, bem ao gosto do ecletismo vigente à época. No entanto, na implantação, eles diferem radicalmente. O jardim da Fazenda Dona Carolina encontra-se num plano único, sendo protegido de um lado pelo arrimo que segura o corte no terreno feito para sua implantação e, na sua parte fronteira, por uma mureta baixa encimada por belo gradil ornamental de ferro. Nele, os canteiros e passeios, apesar de seguirem um eixo determinado pela disposição dos dois tanques de água com repuxos, são bastante irregulares, criando uma movimentação bastante interessante, ampliada pela massa regular dos buxos podados que os circundam. Ao fundo, arrematando o ambiente, encontra-se um

caramanchão sob o qual se dispôs um banco. Os passeios são calçados por tijolos, os mesmo que calçavam os terreiros de café, e os canteiros são delimitados por tijolos em espelho. O jardim da Fazenda Pereiras, ao contrário, mais amplo, organiza-se sobre um terreno bastante inclinado, sendo trabalhado em vários planos - seguros por arrimos de pedra - que se comunicam entre si por escadarias. Junto a um desses muros, foi colocado um pequeno tanque com uma fonte metálica com repuxo e prato; ao seu redor, troncos de cimento armado, apoiam um caramanchão, enquanto outros imitam árvores caídas. Os caminhos são sinuosos, porém o arremate dos canteiros é feito por curiosas placas cerâmicas decorativas, cuja borda superior é denteada e a face externa apresenta relevos ornamentais. Assim como no jardim da Fazenda Dona Carolina, um dos tanques possui o formato octogonal. Em ambos os jardins, a herança mourisca é bastante presente, seja no caráter bastante privado, seja no uso dos tanques de água, usados para umidificar o ambiente, ou ainda, no caso da Fazenda Pereiras, no uso de palmeiras variadas como espécies arbóreas preferenciais. Em todos esses casos, os jardins são fruto de reformas paisagísticas posteriores à construção dos casarões, construídos entre a última década do século XIX e a primeira do século XX. Não apresentam características puras, atendem ao ecletismo vigente da época. Jardins nas Zonas da Paulista e da Mogiana Os jardins encontrados nas zonas Paulista e Mogiana, regiões onde afloram as grandes manchas de terras roxas, famosas por serem extremamente férteis, também se encontram junto aos casarões em posições variadas. Aparecem à frente, aos fundos e nas laterais dos casarões, sempre criando o espaço envoltório e isolador do ambiente de trabalho. Por vezes, nos casarões de planta em L, no espaço resultante entre o corpo fronteiro do casarão e o anexo de serviços, formava-se um jardim mais aprimorado, com canteiros e tanques d água com repuxo, viveiros de aves ornamentais e bancos, um local aprazível, sombreado e perfumado pelas plantas e flores, onde as senhoras recebiam as suas visitas nas tardes quentes do interior paulista. Esse espaço era em geral cercado por muros, de modo a separá-lo da área de serviços e protegê-lo dos animais domésticos. O jardim fronteiro, da mesma forma que o posterior, era composto por vários canteiros, tanques com repuxos d água, caminhos tortuosos, adornado por aves como pavões e cisnes, criados soltos, ou por graciosos viveiros de aves coloridas e canoras. Muitos deles possuem as delicadas cercas de tábuas finas, intercaladas de mourões de alvenaria; outros, por gradis metálicos importados. Não é incomum haver grandes portais de entrada, estátuas clássicas de porcelana branca, metálicas ou de cimento armado, além dos equipamentos já citados. Aí, todos os sentidos são convidados a atuar para sentir a qualidade espacial obtida no conjunto

final: o colorido de flores, arbustos e folhagens; a textura de folhas, de pisos distintos; a umidade que garantia um microclima agradável mesmo nos meses mais secos do ano; aromas de ervas e de flores; sons de pássaros e de fontes com seus jorros de água que inundavam o espaço de uma musicalidade extremamente agradável e tranquilizadora; caramanchões com trepadeiras odoríferas... E até o paladar, pois muitos desses espaços possuem, ou possuíram, fruteiras, ou mesmo pequenas mesas metálicas acompanhadas de cadeiras para o café da tarde, ou chá, com quitutes da cozinha do casarão. É preciso registrar aqui que, nessas regiões (Paulista e Mogiana), a cafeicultura toma força ao final da década de 1880, quando a quantidade de colonos europeus, era cada vez mais numerosa, havendo muitas pessoas que, como já dito, sabiam lidar com plantas ornamentais e floríferas. É também o momento em que o ecletismo arquitetônico predominava nas manifestações arquitetônicas e paisagísticas. E finalmente, é a época em que fazendeiros enricados começam a viajar pelo mundo, principalmente Europa e Estados Unidos, adquirindo um refinamento de caráter preponderantemente europeu em seus gostos, gestos, costumes, comportamento. Assim, os jardins ao redor do casarão foram muito comuns e ajudavam a criar o almejado e idílico cenário pitoresco, romântico, de seus proprietários. Em todos, a composição era bastante eclética. Com toda essa importância, os jardins dessa região e época chegaram a ter proporções bastante grandes, pois a fazenda passa a ser também um local de recepção de visitantes ilustres, de grandes comerciantes de café, de jornalistas, de intelectuais: muitos deles estrangeiros. O espaço da fazenda torna-se um cartão de visita, faz parte do marketing comercial e social do produtor rural, já não é apenas local de trabalho e produção. As visitas de estrangeiros rendiam aos proprietários a publicação de artigos em periódicos estrangeiros, a menção em romances, que ajudaram a criar a mística e a fama do café paulista pelo mundo afora e, consequentemente, aumentavam as vendas de café e a fortuna dos fazendeiros. Uma das propriedades que merece destaque por seu paisagismo sofisticado, e que encantou o escritor francês Blaise Cendrars, é a Morro Azul (Iracemápolis), aberta e implantada por Manoel Rodrigues Jordão, no início do século XIX. Porém, foi um descendente seu, Silvério Rodrigues Jordão, quem iniciou a reforma da casa e construção de seus belos jardins e o parque hidroterápico, seguindo o padrão do Ecletismo arquitetônico vigente ao final desse mesmo século. O jardim fronteiro ocupa toda a frente, bastante ampla, do casarão. Ele segue o desnível do terreno, porém foi escalonado em vários níveis, com várias escadarias entre si, formando um desenho simétrico, com canteiros e fontes ornamentais.

Aos fundos do casarão, existe um pátio traseiro circundado nas laterais por uma mureta encimada de gradil metálico; ao centro, junto à porta da sala de jantar, há um grande canteiro oval, guarnecido em seu centro de uma ânfora, seguido de outro circular, ambos no mesmo eixo; aos fundos, tem-se acesso a uma enorme gruta artificial, com estalactites e estalagmites de cimento armado, bem ao gosto de recriação artificial da natureza do período eclético, de onde escorre água corrente para um tanque em semicírculo. É possível percorrer o interior dessa gruta, através de uma passarela. Atrás dessa gruta, num patamar seguro por arrimos de pedra, desenvolve-se o belo bosque com árvores exóticas, guarnecido de várias edificações, à feição dos quiosques e chalés de parques e praças da época, também de gosto eclético: algumas com aberturas ogivais, outras com abertura em arco pleno e duas caixas d água com desenhos diferenciados. Trata-se, na verdade, de um complexo de hidroterapia particular, com duas casas de banho, uma para homens, e outra, para mulheres, que contêm em seu interior, piscinas e banheiras de mármore de Carrara, dotadas de caldeiras, proporcionando, assim, banhos quentes, mornos ou frios. Outra edificação parece ter servido de lavanderia e depósito. O declive acentuado do terreno obrigou a dispô-las em vários níveis, acessados por caminhos sinuosos e escadarias diversas, à maneira do paisagismo implantado pelos franceses pelo país. Esse belo e inusitado parque, e seu conjunto de edificações, estão sendo recuperado, aos poucos, pelos atuais proprietários. Desenho do parque envoltório ao casarão da Fazenda Guatapará, Guatapará (SP). Desenho feito pelo arquiteto João Paulo Papandreu Lemos. Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/lugaresesquec idos/faz_guatapara.htm Outro grande jardim, infelizmente já destruído juntamente com todo o conjunto arquitetônico, era o da Fazenda Guatapará, no município de mesmo nome. Ela pertenceu à família Prado e passou por vários proprietários. Na década de 1970, a fazenda foi adquirida pela Usina São Martinho, tendo então todo seu patrimônio construído posto abaixo para o plantio de cana-de-açúcar. O belo casarão, com esmerada alvenaria de tijolos aparentes, era envolvido por um amplo parque, com pontes, espelhos d água, caminhos sinuosos, numa influência clara dos jardins franceses urbanos. Havia um eixo central fortemente marcado, sequencialmente, pelo lago retangular, pelo palacete, pela piscina e pela edificação dos vestiários. Nas laterais desse eixo, caminhos

sinuosos se prolongavam de forma irregular, entre gramados, arvoredos, moitas de espécies floríferas e arbustivas, cuidadosamente podadas, resultado de hábeis artesãos da topiaria. Sobraram apenas memórias de quem o vivenciou e algumas poucas fotos. Estes grandes espaços ajardinados, à feição de parques, no entanto, são incomuns no ambiente rural paulista. Jardins de proporções menores, mas não menos belos, são os mais encontrados nas velhas sedes cafeeiras dessas regiões paulistas ainda hoje. O jardim da fazenda Santa Maria do Monjolinho envolve a parte fronteira e ambas as laterais do casarão, espaço cercado por mureta e cujo acesso é controlado por um portão Jardins da Fazenda Santa Maria do Monjolinho, São Carlos (SP). Desenho do autor. monumental, a principal entrada para visitantes, e um portão menor, voltado para os lados do terreiro de café. Seu desenho é bastante simétrico, marcado pelo eixo da fachada do casarão, junto ao qual se estabeleceu o tanque d água com seu repuxo (um pequeno anjo, segura uma ânfora por onde escorre a água incessante). A partir desse eixo, desenvolvem-se vários canteiros irregulares envolvidos por caminhos sinuosos, sem calçamento e cobertos de areia, que se expandem para as laterais da casa. Bancos dispostos ao lado do tanque central convidam a uma conversa agradável, a uma leitura, ou simplesmente o fruir da paisagem - estando num ponto alto, voltado para o vale do rio Monjolinho, a vista descortinada dali é por si só um bom motivo para se deixar estar alguns minutos apenas observando. O jardim da fazenda das Palmeiras possui situação e desenho bastante semelhante, exceto pelo fato de se encontrar apenas na parte fronteira do casarão. No entanto, a planta em U desse casarão forma um pátio aos fundos, onde foi projetado outro jardim, para o qual se voltam janelas dos dormitórios e de alguns cômodos da zona de serviços. Infelizmente, a situação geral dessa propriedade é bastante precária, apesar de se tratar de um dos mais belos exemplares de fazendas que encontramos em nossos levantamentos. Os jardins se tornaram muito comuns ao final do século XIX e início do XX, sendo incorporado mesmo junto aos casarões de fazendas médias ou pequenas. O desenho, mais simples, tenta

criar soluções provavelmente copiadas de fazendas maiores ou de casas urbanas. Um exemplo ainda bastante perceptível, embora pertencente a uma sede abandonada há vários anos, é o da fazenda Santana (São Carlos). O desenho dos canteiros, geométrico, se desenvolve sem muito apuro, fruto muito mais da intuição do que seguidor de uma tendência estilística. A simetria é falha, não cria pontos focais específicos, mesmo porque impossibilitados pelas dimensões quase sempre reduzidas. Esse tipo de jardim é bastante encontrado em inúmeras propriedades. Jardins das Zonas Pioneiras Zonas pioneiras era o nome dado às últimas fronteiras agrícolas a serem desbravadas em território paulista, ocupadas entre a última década do século XIX e as primeiras do século XX, na porção oeste do Estado. Em algumas das fazendas mais antigas dessas zonas, o casarão encontra-se ligeiramente afastado do núcleo de beneficiamento do café, seguindo as tendências burguesas da época, de separação do ambiente privado e aristocrático da família do fazendeiro, daquele mundo do trabalho, como ocorre nas fazendas Saltinho e Santa Delphina (ambas em São Manuel), ou Serra Negra (Botucatu). Não por acaso, nesses exemplares, os casarões encontravam-se envoltos por imensos jardins e pomares, cercados por muros e grades. No almanaque de 1928 do município de São Manuel, encontra-se a seguinte descrição da casa e do entorno da fazenda Santa Delphina: Entre as benfeitorias desta fazenda, a que mais desperta as attenções, é a casa de residencia, em que a exma. Sra. D. Delphina Pereira Ribeiro pôz em evidencia grande bom gosto. É um predio lindo, vistoso, estylo bungalow. A apparencia externa produz a melhor impressão, fazendo advinhar o conforto interno. Realmente existem ali as mais requintadas commodiddades. Bem construido, com solidez e elegancia de linhas, o edificio tem divisões feitas com criterio, de modo a satisfazer qualquer exigencia. O mobiliario é bom, de muito apuro, pelo que ao entrar no palacete, sente o visitante agradavel impressão de bem estar. Foi installado serviço completo de luz electrica, telephone, exgottos, etc., sendo habitavel o porão. Á frente está largo passeio e formoso jardim que empresta ao ambiente uma nota alegre, graças ás cores vivas das differentes especies de flores.

Esse predio modernissimo, faz com que a Santa Delphina conserve um aspecto garrulo e interessante, impressionando quantos ali vão (CALDEIRA Netto, 1928, p. 251). No mesmo almanaque, encontramos a descrição do casarão da fazenda Saltinho, então uma das mais importantes do município: A casa de residencia é das melhores do município. De avantajadas proporções, alta, com porão habitavel, causa optima impressão. O interior é magnifico, ali havendo todos os recursos desejados em uma vivenda fidalga, como luz electrica, agua encanada, apparelhamento sanitario, telephone, etc. Do elegante alpendre é possivel descortinar-se bella vista dos arredores. Um cuidado jardim completa os attractivos do soberbo edifício (CALDEIRA Netto, 1928, p.153). O jardim da fazenda Santa Delphina desapareceu, sendo o estado atual do conjunto bastante deplorável. O da fazenda Saltinho, ao contrário, ainda guarda vestígios de seu aspecto original, pois também passou por décadas de abandono. Situado à frente do imponente casarão, em um amplo platô seguro por muro de arrimos de pedra, o jardim é composto de vários canteiros e passeios calçados de tijolos, em desenho simétrico, tudo envolvido por belo gradil metálico. O acesso é feito por uma escadaria de pedra, acessada por um portão metálico encimado por uma pequena estrutura ligeiramente arqueada, também metálica - uma espécie de prolongamento do gradil. A situação lembra o de várias fazendas paulistas: a fachada do casarão e os jardins se abrem para um vale, no caso o do rio Paraíso. Em Botucatu, fica a fazenda Serra Negra, que pertenceu a Manoel Ernesto Conceição, o conde de Serra Negra. Assim como nas fazendas citadas de São Manuel, a sede encontra-se em estado de abandono, restando apenas sinais do antigo fausto. Nela, o casarão encontra-se envolto por restos do que foi um amplo pomar, aos fundos, e um grande jardim, na parte fronteira. Nesse último, hoje apenas indícios dos canteiros, de tanques e repuxos d água, passeios, e os muros, com duas grandes entradas monumentais, uma delas com duas belas estátuas de porcelana da Fábrica Santo Antônio, da cidade portuguesa do Porto, uma representando a África e, outra, a Ásia, sobre robustos pilares. A amplitude do espaço destinado ao jardim permite-nos imaginar o que foi em seu auge. Posteriormente, nas zonas cultivadas nas primeiras décadas do século XX, os jardins tornam-se menos rebuscados. Fruto de uma era em que cafeicultores praticamente já não viviam nas propriedades rurais, habitando preferencialmente o espaço urbano, as casas tornaram-se menores, pois são ocupadas sazonalmente. Seus jardins refletem esse novo modus vivendi do fazendeiro: não desaparecem, porém restringem-se a pequenos espaços

cercados envolvendo a casa, com canteiros dispostos de maneira mais ou menos simétrica, à moda das casas urbanas. Praticamente desaparecem o mobiliário, as esculturas, ou estruturas como caramanchões, bancos e tanques com repuxos. Isso pode ser observado nos almanaques das chamadas zonas pioneiras, como a Araraquarense, Alta Sorocabana, Alta Paulista e Noroeste: os jardins envolvendo as casas são modestos, acanhados. A cafeicultura, em São Paulo, aproximava-se do seu final e com ela, a época das grandes sedes esteticamente planejadas e confortáveis, e dos magníficos jardins rurais à moda europeia. Fazenda Santa Leonor, Penápolis. Fonte: Álbum da Noroeste. São Paulo: Pan-Americana, 1928, p. 452. Conclusão Apesar de serem unidades agroindustriais, as fazendas cafeicultoras paulistas não tiveram seus espaços unicamente voltados ao trabalho e à produção. Sofrendo influências diversas, numa época em que a comunicação entre as diversas partes do mundo se aceleravam, seus proprietários souberam, bem ou mal, criar condições esteticamente bastante aprazíveis, suavizando os rigores do cotidiano e seu trabalho quase contínuo. Entre os grandes cafezais, e o ambiente de trabalho pesado no terreiro e nas casas de máquinas, os jardins foram nichos refrescantes e tranquilizadores que embelezaram a vida na fazenda.

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