FACULDADES INTEGRADAS DE JACAREPAGUÁ FILOSOFIA E ÉTICA 1ª VERSÃO. Maria de Nazaré do Valle Lima

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Transcrição:

FACULDADES INTEGRADAS DE JACAREPAGUÁ FILOSOFIA E ÉTICA 1ª VERSÃO Maria de Nazaré do Valle Lima

Definição e Origem da Filosofia Surgimento da Filosofia Mito e Filosofia Principais Características da Filosofia Nascente A importância da Filosofia Bibliografia CABRAL, João Francisco Pereira. "O Mito e a Filosofia"; Brasil Escola. Disponível em <http://www.brasilescola.com/filosofia/mito-filosofia.htm>. CABRAL, João Francisco Pereira. "As principais características da Filosofia Nascente"; Brasil Escola. Disponível em <http://www.brasilescola.com/filosofia/principais-caracteristicasfilosofia-nascente.htm>. CHAUI, M. Filosofia, Série Novo Ensino Médio, Volume Único, São Paulo, Editora Ática, 2004, pp. 23-5. PETRELLI, Humberto Zanardo. Curso de Filosofia. Disponível em <http://filosofianreloanda.pbworks.com/f/materialhumberto+filosofia> 2

Definição e Origem da Filosofia A palavra Filosofia vem do grego e em sua etimologia, aborda o significado sintético: philos ou philia que quer dizer amor ou amizade; e sophia, que significa sabedoria; ou seja, literalmente significa amor ou amizade pela sabedoria. A palavra, nessa concepção que temos, surgiu com Tales de Mileto (aproximadamente em 595 a.c.), e ganhou especial sentido com Pitágoras (aproximadamente em 463 a.c.). E, sobre esses e outros filósofos, trataremos com mais detalhes ao longo da disciplina. Tales de Mileto Pitágoras A Filosofia é o estudo das inquietações e problemas da existência humana, dos valores morais, estéticos, do conhecimento em suas diversas manifestações e conceitos, visando à verdade; porém, sem se considerar como verdade absoluta, nem tentando achar essa máxima como verdade absoluta. Ela se distingue de outras vertentes de conhecimento como a mitologia 1 grega e a religião, visto que tenta, por meio do pensamento racional, explicar os fenômenos e questões humanas. Mas também não pode ser igualada, em termo de métodos, às ciências que têm a pesquisa empírica e experimentos práticos como fundamentos, uma vez que a Filosofia não se atém (não sendo descartada essa hipótese) a experimentos. Os métodos dos estudos filosóficos estão fundamentados na análise do pensamento, experiências práticas e da mente, na lógica e na análise conceitual. A origem da Filosofia como ciência, ou mesmo como forma de estudo das inquietações humanas, surge no século VI a. C, na Grécia antiga, que é chamada de o berço da Filosofia ocidental. 1 É um conjunto de mitos (histórias, narrativas, rituais e lendas), sobre vários deuses, heróis, titãs, ninfas, e centauros. 3

Surgimento da Filosofia Os primeiros pensadores chamados filósofos foram Tales, Pitágoras, Heráclito e Xenófanes que, na época, concentravam seus esforços para tentar responder racionalmente às questões da realidade humana. Numa época em que praticamente tudo era explicado através da mitologia e da ação dos deuses, esses pensadores buscavam, em pensamentos lógicos e racionais, explicar qual a fundamentação e a utilidade dos valores morais na sociedade da época. Também queriam identificar as características do conhecimento puro, as origens das coisas e dos fatos e outras indagações que surgiam conforme o caminhar intelectual da época. Diversas questões levantadas por esses filósofos ainda hoje são focos e temas de debate e pesquisa da Filosofia contemporânea. Na idade antiga e idade média, a Filosofia teve o seu ápice, abordando praticamente todas as áreas científicas conhecidas, além de indagar e buscar esclarecer questões pertinentes da época. Os filósofos dedicavam seus estudos desde coisas extremamente abstratas como o Ser enquanto ser passando por questões exatas como as reações químicas, queda de corpos, fenômenos naturais, etc. Com o seu eixo primordial em questões variadas no início de seu surgimento, ela foi, com o passar do tempo, se lapidando, chegando à Idade Moderna fundamentada em questões abstratas e gerais, tais como os questionamentos mais frequentes da humanidade, questões estas consideradas importantes para o surgimento, aprimoramento e desenvolvimento das demais ciências e áreas do conhecimento. Tendo em vista o fato de que a maioria das questões gerais e abstratas do ser humano não poderia ser confiável nem convenientemente tratadas de maneira empírica e experimental, como se observa na maioria das ciências, esse tipo de 4

discussão passa a ter um caráter filosófico e foi importantíssimo para que se entendesse o que viria a seguir no tocante à ciência, de um modo geral. ENRIQUECIMENTO Considerados há muito tempo como antagônicos, mito e filosofia protagonizam atualmente uma (re) conciliação. Desde os primórdios, a Filosofia, busca do saber, é entendida como um discurso racional que surgiu para se contrapor ao modelo mítico desenvolvido na Grécia Antiga e que serviu como base de sua Paideia (educação). A palavra mito é grega e significa contar, narrar algo para alguém que reconhece o proferidor do discurso como autoridade sobre aquilo que foi dito. Assim, Homero (Ilíada e Odisseia) 2 e Hesíodo (Teogonia e Dos trabalhos e dos Dias) 3 são considerados os educadores da Hélade (como se chamava a Grécia) por excelência, bem como os rapsodos (uma espécie de ator, cantor, recitador) eram tidos como portadores de uma verdade fundamental sobre a origem do universo, das leis etc., por reproduzirem as narrativas contidas nas obras daqueles autores. Foi somente a partir de determinadas condições (navegações, uso e invenção do calendário e da moeda, a criação da democracia que preconizava o uso da palavra, bem como a publicidade das leis etc.) que o modelo mítico foi sendo questionado e substituído por uma forma de pensar que exigia outros critérios para a confecção de argumentos. Surge a Filosofia como busca de um conhecimento racional, sistemático e com validade universal. De Aristóteles a Descartes, a Filosofia ganhou uma conotação de ciência, de conhecimento seguro, infalível e essa noção perdurou até o século XIX, quando as bases do que chamamos Razão sofreu duras críticas com o desenvolvimento da técnica e do sistema capitalista de produção. A crença no domínio da natureza, da exploração do trabalho, bem como a descoberta do inconsciente como o grande motivador das 2 Documento literário grego 3 Idem 5

ações humanas, evidenciaram o declínio de uma sociedade armamentista, excludente e sugadora desenfreada dos recursos naturais. A tendência racionalista fica, então, abalada e uma nova abordagem do mundo faz-se necessária. O que era tido antes como pré-científico, primitivo, assistemático, ganha especial papel na formação das culturas. As noções de civilização, progresso e desenvolvimento vão sendo substituídas lentamente pela diversidade cultural, já que aquelas não mais se justificam. A releitura de um dos pensadores tidos como fundadores do idealismo racionalista preconiza que já na Grécia o mito não foi meramente substituído nem de forma radical, nem gradual pelo pensamento filosófico. Os textos de Platão, analisados não somente pela ótica conceitual, mas também dramática, nos proporciona compreender que um certo uso do mito é necessário onde o lógos (discurso, razão, palavra) não consegue atingir ainda seu objeto, ou seja, aquilo que era apenas fantasioso, imaginário, ganha destaque por seu valor prático na formação do homem. Dito de outro modo, embora o homem deseje conhecer a fundo o mundo em que vive, ele sempre dependerá do aperfeiçoamento de métodos e técnicas de interpretação. A ciência é realmente um saber, mas que também é histórico e sua validade prática depende de como foi construído argumentativamente. Interessa perceber que Filosofia é amor ao saber, busca do conhecimento e nunca posse, como define Platão. Então, nunca devemos confundi-la com ciência, que é a posse de um saber construído historicamente, isto é, determinado pelas condições do seu tempo. Portanto, Mito, Filosofia e Ciência possuem entre si não uma relação de exclusão ou gradação, mas sim de intercomplementaridade, haja vista que um sempre sucede ao outro de forma cíclica no decorrer do tempo. Por João Francisco P. Cabral 6

Mito e Filosofia Texto de autoria de Humberto Zanardo Petrelli, com adaptações. A filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os antigos mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos? Mas, o que é um mito e quais as diferenças e relações entre mito e filosofia? Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.). A palavra mito vem do grego, e deriva de dois verbos: do verbo ( (contar, narrar, falar alguma coisa para os outros) e do verbo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados. Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito - é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. 7

1 FILOSOFIA E ÉTICA Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe? De três principais maneiras: Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, etc.. A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados. Tomemos um exemplo de narrativa mítica. Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de Cupido), exemplo extraído do Banquete 203a, de Platão: "Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou na porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois o vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e 8

enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá". 2 Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre forças divinas ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens. O poeta Homero, na Ilíada, epopeia que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos - vencer a batalha. A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Páris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos. O mito, narra a origem do mundo e de tudo que existe nele, e a terceira principal maneira de narração mítica é: 3 Encontrando as recompensas ou os castigos que os deuses dão a quem lhes obedece ou a quem lhes desobedece, respectivamente. Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra. Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os homens. Prometeu foi castigado 9

(amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens? Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males do mundo. Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias 4 e theogonias 5. A filosofia, ao nascer, é uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a theogonia? Duas foram as respostas dadas pelos estudiosos. A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente. A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles. 4 Narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas. 5 Narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados 10

Atualmente, consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a filosofia, percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente. Quais as diferenças e relações entre mito e filosofia? Podemos apontar três como as mais importantes: 1 O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A filosofia, ao contrário, preocupa-se em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são. 2 O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais. O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar. 3 O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador. A filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos. 11

Principais Características da Filosofia Nascente A reflexão filosófica surge no século VI a. C., na Grécia, em contraposição à narrativa mítica. Um novo conceito de verdade sobre a realidade substitui, assim, o modelo baseado na tradição oral dos poetas, autoridades portadoras da vontade dos deuses. A Filosofia surge como espanto diante da possibilidade de estranhar o mundo e concebê-lo de forma racional. Esse espanto impulsiona a busca da compreensão do ser enquanto algo natural e capaz de ser apreendido pelo Lógos (razão, discurso, palavra) humano. Após esse primeiro passo, a Filosofia também nos aparece como admiração, isto é, a contemplação da verdade de modo absoluto e universal, válida para todos, independente de raça, nação, cultura, mito, etc. Assim, a Filosofia liberta o homem da insegurança e do temor proporcionados pelo Mito de que o destino dos homens era um joguete dos deuses. Para conhecer essa verdade, os filósofos se esforçaram para conhecer as causas e os princípios (arqué) de toda a realidade, descobrindo na multiplicidade de coisas e opiniões um princípio único. Vejamos quais são as principais características deste processo de compreensão: Tendência racional, em que somente a Razão é o critério de explicação sobre o mundo, segundo seus próprios princípios; Submissão dos problemas à análise, à crítica, à discussão, à demonstração, procurando oferecer respostas seguras e definitivas; 12

O pensamento é a fonte do conhecimento e deve apresentar as regras de seu funcionamento para justificar suas bases lógicas (por exemplo: os princípios de Identidade, da Não Contradição e do Terceiro Excluído); Não aceitar as noções pré-concebidas, as opiniões já pré-estabelecidas, os pré-conceitos imediatos, mas investigar o real com o rigor exigido pelo pensamento e suas leis, não sendo passivo, mas sim ativo no processo do conhecer; Descobrir, a partir da análise das semelhanças e dessemelhanças entre as coisas, o princípio que promove a generalização, isto é, o que permite agrupar os vários casos particulares em uma classe geral de objetos. Por João Francisco P. Cabral 13

A importância da Filosofia Ao ter contato pela primeira vez com a Filosofia muitas pessoas se perguntam: Filosofia para quê? e essa pergunta é realmente fundamental. Afinal, para que estudamos Filosofia? A Filosofia é um dos campos de estudos mais antigos (pois surgiu no século VI a.c.), mas não se resume à discussão das ideias da Antiguidade. Na verdade, a filosofia está mais viva do que nunca: em nenhum tempo houve tantos filósofos produzindo Filosofia inovadora e de qualidade quanto em nossa época. Deve haver uma boa razão para a Filosofia ser praticada ininterruptamente há vinte e cinco séculos. Nenhuma atividade humana permanece por tanto tempo, a não ser que tenha alguma utilidade na vida das pessoas. Mas aparentemente a Filosofia não tem utilidade: com ela, não fazemos casas, barcos ou roupas; não produzimos alimentos nem remédios para o corpo; não criamos poemas, não pintamos quadros para nosso deleite. Então, qual é a utilidade da Filosofia? A Filosofia é útil para os que querem conhecer a si mesmos e entender de onde surgem as ideias que estão em sua mente; para os que têm interesse em questionar os fundamentos das ciências, da política, da arte, da religião ; para os que têm necessidade de encontrar uma resposta às perguntas: qual o sentido da vida?, qual o sentido do universo?, qual o sentido de tudo?. E a Filosofia tem respostas para essas questões? Mais do que fornecer respostas prontas, a Filosofia sugere caminhos possíveis e coerentes: caminhos que podem ser seguidos por qualquer um, desde que se disponha a utilizar a sua razão, e que conduzem a uma análise crítica das atitudes e das práticas adotadas em sua própria vida. 14

Não há momento mais propício para se engajar na prática filosófica do que a juventude. A partir do questionamento e da redefinição do que é realmente importante em sua vida, o jovem pode adquirir maturidade e planejar, com mais clareza, o seu próprio amanhã. Finalmente, a pergunta: para que a Filosofia? tem uma resposta: a Filosofia é o conhecimento mais útil para construir o futuro. A importância da filosofia portanto, reside em sua própria origem, postandose como ciência humana a serviço da razão, ganhando o status de saber perfeito - em alguns círculos e de saber conhecer em outros. Mas tal importância é bem mais restrita aos amigos da sabedoria do que eles gostariam, pois quando ganha as ruas, a filosofia deixa de ser ciência par ser piada. Mario Quintana dizia que "a filosofia é uma coisa com a qual e sem a qual o mundo continua igual", outros dizem que "o trabalho de um filósofo é semelhante ao esforço de um cego trancado em um quarto escuro procurando um gato preto que nunca foi posto lá", e assim seguem as chacotas. Por nossa vez, reafirmamos com Heidegger que "... já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não sabemos nada sobre isso, mesmo que não "façamos filosofia". Não filosofamos apenas uma vez ou outra, mas de modo constante e necessário porque existimos como homens. Existir como homem significa filosofar. O animal não pode filosofar. Deus não precisa filosofar. Um Deus que filosofasse não seria Deus porque a essência da filosofia é ser uma possibilidade finita de um ente finito 15