RENATO DE SOUSA RESENDE NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE SERVIDOR PÚBLICO São Paulo 2010
2 RENATO DE SOUSA RESENDE NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE SERVIDOR PÚBLICO Trabalho apresentado ao curso de Mestrado em Direito das Relações Sociais, Subárea Direito do Trabalho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Orientador: Professor Paulo Sérgio João. São Paulo 2010
3 BANCA EXAMINADORA
4 Dedico esta dissertação a várias pessoas e órgãos. Primeiramente, aos meus pais, que me deram a estrutura para poder iniciar qualquer caminhada na vida, além do alimento espiritual e do carinho. Dedico ao meu irmão, pela sua preocupação e interesse. Agradeço ao Tribunal Regional da Terceira Região que me concedeu, oportunamente, férias e licença para escrever o trabalho. À colega de magistratura em Minas, Cristiane Castro de Toledo, em quem me inspirei, em determinado momento, para iniciar um mestrado. A todos os professores da PUC/SP com quem tive oportunidade de enriquecer meu caminho, em especial a meu orientador, Paulo Sérgio João, mas também a Pedro Paulo Teixeira Manus, Renato Rua de Almeida, Carla Teresa Martins Romar, Luiz Alberto David Araújo, Maria Helena Diniz e Flávia Cristina Piovesan, e também aos alunos, com quem aprendi muito também. Agradeço à biblioteca da faculdade de Direito da UFMG, na pessoa da bibliotecária Maria Elisa Barcelos. Agradecimentos, também, a Duvanier Paiva Ferreira e Maria Gabriela Moya El Bayeh, ambos da Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento do governo federal, a Denise Motta Dau e Patrícia Pelatieri, ambas da CUT, a Márcia Cunha Teixeira Sato. Agradeço, sobretudo, a Deus pela oportunidade de viver, conhecer e aprender.
5 RESUMO O escopo deste trabalho é discorrer sobre a prática da negociação coletiva no serviço público. Encontra-se arraigado, na doutrina e jurisprudência predominantes, o entendimento de que aquele que trabalha para a Administração Pública não tem a faculdade de exercer o direito coletivo à negociação coletiva, muito embora lhe sejam garantidos os direitos à sindicalização e à greve. As argumentações prevalecentes são a de que o princípio da supremacia do interesse público, a observância estrita ao princípio da legalidade e a ausência de menção expressa no texto constitucional afastam o exercício deste direito que possui, sem dúvida, roupagem democrática e compõe o quadro do exercício livre e amplo da liberdade sindical do trabalhador público. Sob este intuito, são rebatidos, um a um, tais argumentos, demonstrando que: (a) a titularidade dos interesses públicos não é, hoje, exclusividade estatal; (b) não mais se justifica recorrer a um mero legalismo, porém é necessária a observância de um princípio da juridicidade, em que ganham corpo a força normativa dos princípios constitucionais e a eficácia horizontal e dimensão objetiva dos direitos fundamentais; (c) o reconhecimento da negociação coletiva do servidor público como direito fundamental e princípio constitucional implícito, cujo dever de implementação compete, também, à Administração. Por último, vale-se das experiências do Direito estrangeiro, das iniciativas nacionais e do tratamento tradicional do tema no Direito do Trabalho para uma tentativa de transposição da negociação coletiva para o Direito Administrativo ou para sua colocação como categoria pertencente à Teoria Geral do Direito.
6 ABSTRACT The goal of this work is to discuss on the practice of the collective negotiation in the public service. It s ingrained, in the doctrine and predominant jurisprudence, the understanding that whoever works for the Public Administration doesn't have the ability to exercise the collective right to the collective negotiation, even though they are guaranteed the rights to the labor organization and the strike. The prevalent arguments are that the principle of the supremacy of the public interest, the strict observance at the principle of the legality and the absence of expressed mention in the constitutional text moves away the exercise of this right that possesses, without a doubt, democratic garments and it composes the picture of the public worker's syndical extensive and freedom exercise. Under this intention, they are rebutted, one by one, such arguments, demonstrating: (a) the titularity of the public interests is not, nowadays, state exclusiveness; (b) it doesn t justifies to appeal to a mere legalism, even so it s necessary an observance of a principle of the juridicity, where the normative force of the constitutional principles and the horizontal effectiveness and dimension objectifies of the fundamental rights get stronger; (c) the recognition of the collective negotiation of the public server as fundamental right and implicit constitutional principle, whose implantation duty competes, also, to the Administration. Last, it s been worth the experiences of the Compared Law, of the national initiatives and of the traditional treatment of the theme in the Labour Law for an attempt of conversion of the collective negotiation for the Administrative Law or for its placement as a category belonging to the General Theory of Law.
7 ÍNDICE PARTE I: SOCIEDADE, ESTADO E SUA FUNDAMENTAÇÃO 1 A dicotomia público-privado e os riscos da flexibilização na relação Estado-agente público, 20 2 Sociedade, Poder Político e Estado, 36 2.1 Sociedade e Estado: breve estudo das teorias de suas formação, 37 2.2 Os elementos componentes das sociedades, 49 3 O poder político e sua fundamentação, 56 4 Teorias informadoras do Estado e da Administração, 71 5 A personificação jurídica do Estado como modo de aquisição de direitos pelo agente público, 84 6 A evolução privatística da Administração Pública, 88 PARTE II: A NEGOCIAÇÃO COLETIVA COMO DIREITO DE RESISTÊNCIA DO TRABALHADOR 7 O primado do postulado individual como modo de aquisição de direitos fundamentais na era moderna e o direito a ter direitos de Hannah Arendt, 97 8 A fundamentação da negociação coletiva do servidor público com base no direito de resistência do trabalhador, 110 9 O Pluralismo Jurídico e a negociação coletiva como desenvolvida no Direito Coletivo do Trabalho, 119 9.1 Autonomia Coletiva dos particulares como fonte no Direito do Trabalho, 119 9.2 Monismo jurídico versus pluralismo jurídico, 120 9.3 Pluralismo na Constituição Federal, 123 9.4 A autonomia privada coletiva no Direito do Trabalho, 125 9.5 Autonomia coletiva dos particulares como fonte do Direito do Trabalho, 127 9.6 Desafios da autonomia privada coletiva no Direito do Trabalho, 131 10 Negociação Coletiva na concepção tradicional do Direito do Trabalho, 135 10.1 Conceito e finalidade, 135 10.2 Princípios da negociação coletiva do trabalho, 156 10.2.1 Princípio da Boa-Fé, 157 10.2.2 Princípio da informação, 159
8 10.2.3 Princípio da Razoabilidade ou da Adequação, 160 10.2.4 Princípio da Compulsoriedade Negocial ou do Dever de Negociar, 161 10.2.5 Outros princípios, 161 10.3 Funções da Negociação Coletiva, 166 10.4 Condições para a negociação coletiva, 168 10.5 Negociação coletiva na legislação do Direito Internacional, notadamente pela Organização Internacional do Trabalho e no Direito pátrio, 172 PARTE III: A NEGOCIAÇÃO COLETIVA DO SERVIDOR PÚBLICO 11 Negociação coletiva no serviço público, 183 11.1 O mito da supremacia do interesse público, 192 11.2 As expressões agente público e servidor público, 208 11.3 As expressões função pública e funcionário público. A crise do modelo tradicional de relação estatutária, 216 11.4 Teorias acerca da natureza jurídica do vínculo agente público-estado, 220 11.5 Crítica à predominância do regime unilateralista estatutário na Constituição Federal de 1988: a aproximação entre os regimes público e privado de trabalho, 231 11.6 Similaridades entre o contrato de trabalho e o regime estatutário da função pública, 243 11.7 O princípio da legalidade como empecilho à negociação coletiva no setor público, 249 11.8 Princípio da legalidade ou princípio da juridicidade?, 264 11.9 Fundamentação constitucional do direito à negociação coletiva no serviço público, 281 11.10 Experiências do Direito estrangeiro, 301 11.11 Considerações a partir do Direito alienígena e modalidades de negociação coletiva de servidor público: negociação consultiva e negociação vinculante, 330 11.12 Experiências do Direito interno, 345 Conclusão, 374 Referências bibliográficas, 402
9 INTRODUÇÃO O artigo 7º, XXVI, da Constituição Federal estabelece como direito dos trabalhadores o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, admitindo que os próprios interlocutores sociais influam na formação do Direito do Trabalho que lhes interessa, em exercício de pluralismo jurídico e autonomia privada coletiva. O inciso, como é cediço, garante aos trabalhadores a negociação coletiva, da qual são produtos, em prática bem-sucedida, as convenções e os acordos coletivos. As condições de trabalho, de melhoria salarial, de saúde e higiene do trabalho e várias outras atinentes ao convívio profissional podem ser objeto de debates e entendimentos com os empregadores, em um relacionamento bilateral que procura, ao menos em tese, aumentar a condição social do empregado, dignificando-o. É uma forma de resguardar a participação democrática da massa trabalhadora nas decisões a serem tomadas na empresa, dividindo com o empresário o poder e a responsabilidade do comando da relação de trabalho, ou seja, com vistas ao ideal de aproximação entre o capital e o trabalho e contatos ideológicos com a participação na gestão da empresa, nos lucros e resultados desta. É inequívoco meio de emancipação do empregado. Não obstante, para aqueles trabalhadores que formam vínculo de trabalho com o Poder Público, pela via estatutária ou empregatícia, verifica-se a não admissão do direito à negociação coletiva. Ora, não existe regime de liberdade sindical ou direito à sindicalização se não estiverem resguardados, em correlação, os direitos à greve e à possibilidade de real e efetivo direito à negociação coletiva. Esses três aspectos são os que
10 tradicionalmente compõem o Direito Coletivo do Trabalho e não devem ser afastados mesmo em relação aos servidores públicos. Para o servidor público civil, entretanto, resta a estranha situação de ser permitido o direito à livre associação sindical (artigo 37, VI, da Constituição) e o direito à greve (inciso VII do mesmo dispositivo, em conjugação com as decisões do STF em Mandados de Injunção), porém não é reconhecido o direito à negociação coletiva e à sua consequência natural, que é a possibilidade de serem firmados instrumentos coletivos. Essa condição anômala do servidor público, em que formalmente não se reconhece o direito à negociação, acaba por ocasionar desgastes intensos e prejuízo ao núcleo mínimo dos outros direitos assegurados na Lei Maior. A Administração, quando não lhe interessa, não atende solicitações, descumpre prazos, desrespeita compromissos assumidos, porque se fia na certeza de que, de qualquer forma, não é resguardado o direito à participação pelos servidores públicos civis. A partir desse axioma, que privilegia somente uma das partes, fica muito fácil manter suas posições, pois está confortavelmente respaldada no entendimento pétreo da impossibilidade de negociação coletiva pelo servidor público. Na prática, o que ocorre é que as negociações acabam acontecendo à medida que as pressões vão se avolumando. No contexto atual, é possível ao servidor público deflagrar a greve, mesmo que não lhe seja garantido o direito à negociação. Isso quer dizer que, na realidade, algum tipo de negociação é praticado, sendo, porém, como já se chegou a chamar, um modelo de não negociação, em que prevalecem unilateralismo e disfuncionalidade, com negociações informais e procedimentos não previstos legalmente, em que compromissos políticos são assumidos, sem força de lei, e se não cumpridos levam a descrédito e aumentam o conflito ao invés de pacificá-lo. Esse modelo de não negociação comumente acaba por gerar o problema da Administração paralela, com generalizado descumprimento da ordem jurídica, em que há tendência a se considerar os fenômenos sociais de contestação da ordem
11 como ilegalidade e se desprestigia o pluralismo, acolhido pela Constituição Federal em vários dispositivos. Verifica-se, em suma, que os argumentos utilizados pelo Poder Público como empecilho à negociação coletiva dos servidores públicos civis são relativos (1) a supremacia do interesse público, (2) a necessidade de observância do princípio da legalidade e (3) a ausência de menção expressa do direito à negociação coletiva para os servidores públicos na Constituição da República, eis que o artigo 39, 3º, não efetua referência ao inciso XXVI do artigo 7º. No entanto, tais argumentos revelam muito mais o apego a conceitos tradicionais e não renovados do Direito Administrativo, sem levar em conta que até mesmo esse ramo jurídico sofreu o processo de constitucionalização, ou seja, curvou-se a supremacia constitucional. A rigidez de certos conceitos consagrados do Direito Administrativo esconde a necessidade de se impor um modo de regulação de questões sociais baseado em autoritarismo e unilateralidade. Quanto à supremacia do interesse público, o que se nota é que, no mais das vezes, o argumento é utilizado para justificar a inobservância de direitos fundamentais, além de se constatar que o interesse público, em realidade, encontrase fragmentado na sociedade, ou seja, não pode mais ser invocado como de exclusiva titularidade do Poder Público. A invocação à supremacia do interesse público passa ao largo da constatação de que há uma relativização entre os espaços público e privado e que ambos se influenciam. Não se pode afirmar que haja exclusividade do Estado no domínio do interesse público, embora lhe caiba a função de coordenador e gestor na atuação finalística da sociedade em direção ao bem-estar geral. Mesmo nos ramos do chamado Direito Privado existem hoje variadas normas de direito público que restringem a autonomia da vontade, porém, mesmo assim, não há prejuízo ao núcleo do direito. Ora, o próprio contrato de trabalho dá conta disso, pois depende da livre vontade das partes para sua formação, no entanto é limitado pelas normas mínimas de proteção, inclusive aquelas resultantes do
12 exercício da autonomia privada coletiva. Da mesma maneira, a Administração Pública hoje cada vez mais contrata em regime de Direito privado, em um fenômeno que se costuma chamar de fuga para o Direito Privado, quando se privilegia a igualdade e a participação. A própria Administração, em variadas situações, assume compromissos de responsabilidade, transparência e prestação de contas à comunidade, denotando que o interesse público não é exclusividade sua, mas pode pertencer também ao meio privado. Também indicam a influência recíproca entre o público e o privado e a fragmentação do interesse público, a presença do terceiro setor, a ocorrência de interesses coletivos e difusos não coincidentes com os da Administração, além da eficácia horizontal e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, competindo a todos na sociedade, Poder Público, cidadãos, empresas e outros, dar concretização imediata aos direitos fundamentais. O interesse público, assim, é meta e não ponto de partida tomado a priori e confunde-se, não raro, com os interesses primários da sociedade que estão apontados na Constituição e que podem até coincidir com interesses privados. Além do mais, outra razão que pode ser utilizada para derrubar qualquer alegação de supremacia do interesse público é que a ordem jurídica constitucional de 1988 apontou no sentido de aproximação entre os servidores públicos, na medida em que indicou a implantação de um regime jurídico único, com abandono da crença de que o regime estatutário e unilateral de funcionário público fosse o mais adequado ao Poder Público. Não há mais motivos, portanto, para compreender que o trabalhador público não seja igual ao trabalhador privado em suas necessidades e interesses e que ao servidor público seja menor a garantia de dignidade de trabalho. A tendência é que institutos como negociação coletiva não sejam peculiaridade das relações empregatícias do setor privado, mas que haja transposição também para a função pública de modo que pertençam, em verdade, não ao Direito do Trabalho, mas à Teoria Geral do Direito.
13 Ademais, como estudado na primeira parte deste trabalho, muitas teorias de formação e sustentação do Estado baseiam-se numa visão orgânica ou utilitária, cuja presença ao longo da história fixou uma perspectiva ex parte principis no relacionamento do Estado tomador de mão de obra e do servidor que lhe presta serviços. A melhor visão, contudo, é a que encontra ressonância na ordem jurídicoconstitucional de 1988 e que se pode denominar personalista, pois respeita e valoriza os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana e incumbe o papel de efetivação e consagração dos direitos fundamentais a todos na sociedade, inclusive aos integrantes dos ramos em que se fragmenta o Estado, no que se vem a chamar de horizontalidade ou objetivação dos direitos humanos. Na primeira parte do trabalho e como preparação para a reflexão sobre as contradições da defesa pura e simples da supremacia do interesse público como titularidade do Estado, pesquisou-se também a respeito da conformação do poder político que integra a concepção do Estado, para concluir que o poder político deve ser relacional, em que há comunicação democrática e participação dos governados. No entanto, o que veio a prevalecer foi a qualificação do poder como uma coisa e um meio de obter o que se quer. Não basta ao poder ser forte. Deve ser legítimo. Sendo assim, só se fundamenta como soberania popular na perspectiva ex parte populi. O poder hoje não está centralizado, mas circula pela sociedade em vários centros de poder legitimados para revelar o Direito, que não é mais produto exclusivo do Estado em um sistema jurídico fechado. É necessário, portanto, superar ou dar feições mais evoluídas a doutrinas construídas ao longo do surgimento do Direito Administrativo, como as teorias do órgão e da impermeabilidade, em que se impossibilitava formarem-se relações jurídicas no âmbito da Administração e onde Estado e agente público eram considerados uma coisa só, na relação orgânico-funcional e de serviço. Primordial
14 também é afastar a influência nefasta do patrimonialismo na gerência da coisa pública. A divisão entre o espaço próprio à relação funcional, na qual o agente é representante do Estado perante a sociedade, e o da relação de serviço, em que são criadas relações jurídicas entre empregador e trabalhador, além da admissão da personalidade jurídica do Estado, foram fundamentais para entender por que também ao servidor público são garantidos direitos em face do Estado e por que é possível o exercício da negociação coletiva na seara do trabalho público. Aliás, no próprio Direito do Trabalho ocorreu controvérsia parecida, com a discussão se a relação de emprego era informada por teorias institucionalistas, pelas quais o empregado incorporava-se ao empreendimento, ou por teorias contratualistas, em que o trabalhador influía na relação de trabalho, muito embora o sempre presente aspecto de adesão e a mitigação das vontades das partes por normas de ordem pública. Como se viu ao longo da marcha histórica da humanidade, somente foi possível a evolução dos direitos quando se reconheceu o primado do postulado individual para a aquisição daqueles. Disso deu conta, dentre outros, a Revolução Francesa, pela qual se declararam vários direitos, como os da liberdade, igualdade e o de resistência. O direito de resistência foi o que propiciou, no Direito do Trabalho, a compreensão da greve e da negociação coletiva como direitos dos trabalhadores. A negociação coletiva, assim, a par de ser considerada um meio de autocomposição, é notadamente expressão da resistência do trabalhador, constituindo modo de aquisição e preservação dos direitos, quando há necessidade de se acrescentar justiça à sociedade ou de fazer-se respeitar os valores supremos existentes. A negociação coletiva para o servidor público correlaciona-se, assim, com o exercício dos direitos à liberdade, à isonomia, à cidadania e à resistência, e não pode ser ignorada, pois visa implementar a justiça social.
15 Quanto ao argumento da observância ao princípio da legalidade, verifica-se que a exigência consentânea com os tempos hodiernos é a da obediência ao princípio da juridicidade, que considera não somente a lei em sentido formal, mas a regência por princípios e valores dignificados constitucionalmente, além de outras formas de manifestação da legalidade. Pelo princípio da juridicidade importa menos a forma e mais o conteúdo, até porque, como ressaltado, a produção legiferante não se restringe ao Poder Legislativo. Sobrelevam-se a normatividade dos princípios e a Constituição como um sistema aberto de princípios e regras, e o legalismo é substituído pelo constitucionalismo, com a onipresença da Carta Maior. Isso quer dizer que, independente de lei específica, a Administração está autorizada a aplicar os valores e princípios albergados pela Constituição da República e pode exercer sua função normativa. Aliás, esta autorização configura um poder-dever quando se trata da negociação coletiva, pois esta é um meio eficaz da prática, junto aos servidores, dos princípios da isonomia, da segurança jurídica e da publicidade administrativa, evitando-se que ocorram os riscos da Administração paralela, do patrimonialismo. Percebe-se, na análise das hipóteses do decreto autônomo, do artigo 84, VI, e do decreto regulamentar, do artigo 84, IV, da Constituição que há espaço para a Administração negociar segundo um modelo vinculante, sem a dependência da instância legislativa. Aliás, a crônica crise do legislativo e da representatividade pelas suas instâncias tradicionais cada vez mais recomenda um modelo de democracia participativa e não somente representativa, em que os diretamente interessados e atingidos por uma norma participem, quando tal for possível, de sua elaboração. Quanto aos argumentos de observância às regras orçamentárias, crê-se que o discurso se assemelha em muito com o que acontece na seara do setor privado em relação à necessidade de se limitarem as questões trabalhistas às leis do mercado. Ora, a partir do momento em que o Poder Público assume compromissos
16 perante seus funcionários, a presunção é de que esteja autorizado a tanto, o que implica afirmar que o representante da Administração é dotado dos meios próprios para concretizar aquilo em que se empenhou. Pensar de modo contrário seria privilegiar a má-fé e a falta de responsabilidade. A partir daí se imagina que deverão as normas orçamentárias adequar-se às normas trabalhistas, e não o contrário, desde que não haja elementos de irregularidade ou ilegalidade. Se for o caso, o Poder Público deverá se resguardar, previamente ao início das tratativas de negociação, da existência de poderes suficientes outorgados pela Câmara Legislativa. Quanto aos efeitos financeiros, tais poderão se dar de imediato, quando possível a abertura de créditos adicionais ou a partir do exercício financeiro seguinte de modo retroativo. No último argumento, relativo à ausência de menção do artigo 39, 3º, ao artigo 7º, XXVI, falece, igualmente, óbice para o apartamento do direito à negociação pelo servidor. O silêncio da Constituição não deve ser interpretado como eloquência do legislador, e nem mesmo se pode coadunar que exista, no corpo constitucional, uma lacuna jurídica. Na verdade, o direito coletivo do servidor público pode ser perfeitamente enquadrável como um direito fundamental e princípio constitucional implícitos, como autoriza o artigo 5º, 2º, da Constituição da República, pelo qual os direitos fundamentais se disseminam pela Constituição formal e se espraiam pela constitucionalidade material. A Constituição da República, em vários momentos, privilegiou a autonomia e a participação, a solução espontânea das controvérsias, o diálogo e o pluralismo. Criou meios de democracia participativa além dos modos tradicionais de representação, valorizou a liberdade sindical e a não interferência, abandonou fórmulas de unilateralismo e autoritarismo. Não seria razoável supor que a relação da Administração com seu servidor ficasse de fora desses influxos. Além do mais, a se pensar que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (e aí se incluem as convenções da OIT) têm o mesmo nível hierárquico que a Constituição, há normas suficientes para a proteção e o exercício
17 do direito à negociação coletiva no serviço público, notadamente se reconhecido que não se separam os direitos à sindicalização e à greve e o direito à negociação coletiva. Como parte final do trabalho, apura-se o tratamento do tema no Direito estrangeiro com estudo breve das experiências francesa, espanhola, alemã, italiana, americana, canadense e portuguesa. Observa-se que, ali, a negociação coletiva bifurca-se nas espécies consultiva e vinculante, com especificidades nacionais. Embora embrionárias, as experiências brasileiras de negociação coletiva têm, também, avançado. Vários Municípios, alguns Estados e o próprio governo federal, desde 2003, com a implantação da Mesa Nacional de Negociação Permanente, procuram dar eficácia ao direito já existente na Constituição republicana. No entanto, os argumentos tradicionais de impossibilidade de negociação encontram-se tão arraigados que as práticas negociadoras encontram vários empecilhos que devem ser afastados. A pretensão desta dissertação, portanto, é a demonstração da plausibilidade do redimensionamento da situação dos servidores públicos, os quais se equiparam em necessidades aos trabalhadores da iniciativa privada, não havendo razão hábil a excluí-los desta proteção específica de direito humano. É premente a inversão da perspectiva do relacionamento estabelecido com o Poder Público para que seja considerado o outro ponto, ex parte civium, com óbvio respeito aos valores eleitos constitucionalmente e fundados em motivos de ordem financeira e de responsabilidade fiscal. Interessante notar, neste contexto, que a evolução dos direitos humanos e fundamentais consistiu justamente na prática da resistência ao poder do Estado, granjeando aos indivíduos, inicialmente, direitos de limitação à ação do poder público, e, em seguida, o reconhecimento de prestações positivas como implementação de efetiva igualdade material, porém, em contraparte, deixou de ocorrer, na mesma medida, essa evolução de postura nas instâncias internas da própria Administração Pública.
18 Há, portanto, um paradoxo: o relacionamento externo do Estado com a generalidade da população incorpora (ou deveria incorporar) perfeitamente os valores humanos de primeira, segunda, terceira ou outras dimensões, mas o relacionamento interna corporis, com aqueles que desenvolvem, em diferentes graus, a função pública, ainda inibe o diálogo, a participação. A negociação coletiva do trabalho, assim, é pertinente ao servidor público, ainda que sofra limitações objetivas e subjetivas de ordem constitucional, o que é razoável admitir, pois não mais se concebem direitos exercidos de modo absoluto. Tais limitações não devem causar receio à concretização eficaz do direito. Também no setor privado o exercício da negociação coletiva sofre restrições. Aliás, os limites à negociação coletiva em âmbito privado são em si mesmos bastante controvertidos e poderiam ser até assunto de uma outra dissertação. Acredita-se que também no serviço público a negociação coletiva deve-se dar com critérios e não ser utilizada como mero modo de precarização de direitos. Com intuito de organizar as informações e encadear melhor o pensamento, procurou-se dividir este estudo em três partes. Uma referente à análise da imbricação de interesses na sociedade, ao exame da estrutura histórica do Estado e das teorias que informaram o poder político e que condicionaram institutos tradicionais do Direito Administrativo. Outra, em direção oposta, com vistas ao indivíduo, demonstrando que a valorização da dignidade humana foi fator responsável pela aquisição de direitos pelo homem moderno. Nesta mesma linha, a argumentação de que o direito de resistência, o pluralismo jurídico e a autonomia privada coletiva foram fundamentos e são características da negociação coletiva do trabalho, a qual, cada vez mais, torna-se categoria da Teoria Geral do Direito. E, por último, o estudo específico da negociação coletiva no serviço público, tema central deste trabalho.
19 PARTE I SOCIEDADE, ESTADO E SUA FUNDAMENTAÇÃO
20 1 A dicotomia público-privado e os riscos da flexibilização na relação Estado-agente público Acredita-se não ser possível discorrer sobre a negociação coletiva no setor público sem refletir sobre a própria conformação do Estado em sua relação com a sociedade, pois o relacionamento entre ambos, apesar de alocados como instâncias estanques, próprias à separação do que é público e privado, acaba por sofrer uma mútua interferência, com diferentes intensidades, dependendo do contexto da época e seus influxos políticos, culturais, econômicos e sociais etc. A exagerada interferência do público sobre o privado suprime a liberdade e é própria dos regimes totalitários, porém a ausência de interferência, de igual modo, provoca uma liberdade meramente formal, que desprestigia a igualdade em sentido material e causa competições e injustiças na medida em que reputa ao livre jogo de mercado a possibilidade de curar mazelas sociais e promover o bem-estar. Na relação com aquele que lhe presta serviços é importante saber quais conceitos e teorias justificam a primazia e a impossibilidade de diálogo com o trabalhador, o qual, antes de apresentar-se como profissional, possui direitos ligados à sua dignidade e personalidade, entre outros ligados à cidadania. O Estado deve estar comprometido com o bem-estar geral e, nessa qualidade, deve interferir, mas também dialogar, sentindo o quanto pode avançar e o quanto recuar, atento à sua finalidade maior, que é a promoção do bem comum, nem sempre equivalente à mera soma numérica dos que integram a vontade geral. Seu comportamento não corresponde, também, a atitudes polarizadas 1. 1 Sem qualquer pretensão de defesa da terceira via ou da social-democracia, embora concorde que o Estado de Direito democrático é, além da posição constitucional adotada pelo Brasil, via eficaz de promoção da igualdade e do avanço social, cita-se o seguinte trecho de Anthony Giddens, pois revela a descompensação de se privilegiar só o privado (mercado) ou só o público (Estado): A esquerda tradicional, assim como muitos outros socialdemocratas, tende a atuar com base em uma concepção não conformada do Estado. Seu objetivo é substituir o máximo possível o mercado pelo poder do Estado a fim de alcançar as metas sociais. Os social-democratas modernizadores argumentariam com base em um ponto de vista diferente. Na esteira da influência retrógrada das filosofias de livre mercado, ressuscitar as instituições públicas é uma tarefa fundamental. Contudo não se deve