PROCESSOS CRIMINAIS E PERCURSOS SINGULARES: REVISITANDO RIVIÈRE E MENOCCHIO

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REDIGINDO O RELATÓRIO DE PESQUISA

Transcrição:

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 1 PROCESSOS CRIMINAIS E PERCURSOS SINGULARES: REVISITANDO RIVIÈRE E MENOCCHIO Valdemir Paiva (PPGHIS-UFPR) Wallas Jefferson de Lima (PPGHIS-UFPR) Resumo: Este texto explora as relações estabelecidas entre os processos criminais e a escrita de histórias de indivíduos. Discute-se, inicialmente, o valor heurístico desses processos e, posteriormente, sua importância para a escrita de estudos de caso. Relacionando algumas reflexões acerca das obras "Eu Pierre Riviere, que degolei minha mãe e matei meu irmão", de Michel Foucault e "O Queijo e os vermes", de Carlo Ginzburg, o objetivo principal é destacar a forma com que cada pensador apresentou as características peculiares dos indivíduos a partir dos seus processos criminais. Dentro desse quadro, é fato que o estudo de confissões de heréticos em processos inquisitoriais e de documentos produzidos pela justiça penal possuem lógicas que lhe são próprias. Todos, porém, colocam em relevo o liame que se estabelece entre processos criminais e ações individuais. O crime, dentro dessa perspectiva, passa a ser a culminação de um fato ou de um acontecimento que, por não estar desconectado da teia social que o compõe, gera implicações mais amplas para a escrita da História. Palavras-Chave: Processo-crime; Trajetórias; Metodologia da História. Financiamento: CAPES. Introdução/justificativa As pesquisas empreendidas com o uso de processos criminais esbarram, quase sempre, em trajetórias de vidas. É verdade que, en passant, estas fontes fazem mais do que traçar perfis de homens e mulheres do passado. Por não se esgotarem inteiramente, elas podem ser usadas para explorar a dinâmica discursiva e judiciária de uma época, a repressão a práticas ou dissidências religiosas e morais, além do perfil social dos criminosos e outras facetas de um contexto passado. Estudá-las, portanto, constitui uma empresa de grande fôlego. Deliberações, sentenças, libelos, confissões, denúncias e pareceres parecem indicar a essência de sua riqueza informativa. Este estado de coisas torna claro alguns aspectos:

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 2 interrogatórios apontam aspectos do imaginário coletivo, perguntas de um juiz indicam ameaças implícitas ao réu, testemunhos demonstram a importância dos rumores públicos, confissões fornecem aspectos individuais e sentenças retratam o poder judiciário e criminal. Estes processos têm de tudo um pouco: panoramas de existência, cenários de crimes, querelas, tagarelices, rancores pessoais, vinganças. São acontecimentos que, eclodidos no clamor dos conflitos, trazem informações valiosas acerca das vidas criminais envolvidas e valores cultivados. Objetivo Embora fonte de intensos debates, as obras O queijo e os vermes de Carlo Ginzburg, e, Eu Pierre Rivière que degolei minha mãe, matei minha irmã e meu irmão de Michel Foucault, constituem o cerne de tais problemáticas. Ambos utilizaram um processo criminal para tratar de fenômenos históricos, ainda que teórica e metodologicamente se situem em níveis de análise verdadeiramente distintos. Deixando o rol de debates conflitantes entre Foucault e Ginzburg no tocante às obras mencionadas, a direção tomada neste estudo é de buscar ressaltar a importância de que se revestiu a documentação criminal na descrição das trajetórias de Rivière e Menocchio 1. Em suma, trata das problemáticas referentes às dimensões analíticas dos referidos processos criminais. Este artigo é, portanto, uma tentativa de responder a uma questão aparentemente simples: como explorar as trajetórias de vida em processos-crime? Esta indagação ofusca distinções importantes no campo da teoria e metodologia da História. No caso de Ginzburg e Foucault, ela representa contrastes em debates intelectuais, mas contém em seu bojo certas aproximações no trato com a fonte. Tais aproximações, que não podem ser negadas, são o foco da análise que se segue. Trazer à luz essas variações constitui uma tentativa de assinalar coincidências e analogias entre os autores no que tange ao uso das fontes ao invés de focar, apenas, em suas diferenças epistemológicas. Resultados É preciso fazer, em primeiro lugar, um levantamento das aproximações estabelecidas entre 1 Importante destacar que Carlo Ginzburg e Michel Foucault possuem, não apenas nos trabalhos aqui evidenciados, mas em outros escritos, um complexo e polêmico debate teórico. Em sua obra História: a arte de inventar o passado, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior busca esclarecer acerca das dimensões conceituais e metodológicas proposta por esses autores. Neste aspecto, o que difere o presente estudo é uma perspectiva que busque contemplar o uso dos processos criminais enquanto fonte histórica evidenciando, desta forma, as dimensões que ambos os autores oferecerem a análise de trajetórias de vida. Cf. ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 3 Foucault e Ginzburg no que diz respeito aos réus. Retenham-se algumas delas: o rompimento de indivíduos com as normas; o fato de os transgressores só possuírem visibilidade na História por terem sido processados pelos poderes estabelecidos; o empenho realizado em apreender, através dos processos, os valores e comportamentos sociais existentes nos contextos históricos, demonstrando profundidade analítica para com as fontes de que dispõem; e, finalmente, o fato de Menocchio e Rivière serem pessoas comuns. Ora, os objetos de que se ocuparam reflete uma tendência historiográfica da época. E, nesse quesito, é preciso lembrar algumas cronologias: a obra de Foucault foi publicada em 1973 e a de Ginzburg, 1978. Para François Dosse, foi exatamente os anos 1970 que viram surgir um forte interesse pela singularidade dos sujeitos 2. Estudioso das histórias de vida, Dosse demonstrou que a biografia foi e ainda é fonte de calorosos e intensos debates, mencionando-a como espécie de gênero híbrido que transita entre a literatura-ficção e a ciência 3. Embora houvesse resistência e certo preconceito em relação a temas biográficos, resquício da supremacia da Escola dos Annales, isto teria sido superado a partir dos anos 1980 4, uma vez que a área de História teve que se deparar com a crise dos pressupostos epistemológicos da modernidade. Não é um fato isolado, portanto, que as Humanidades em geral presenciassem o retorno do sujeito e de suas experiências singulares na teia social. Neste processo de questionamentos, que culminou no estabelecimento de novos paradigmas epistemológicos, as abordagens voltadas ao individual ganharam cada vez mais espaço nas páginas da História 5. Levando em consideração tal contexto, percebe-se que um olhar cuidadoso dessas obras pode indicar como os autores utilizaram um processo-crime para a descrição dos réus. Atente-se, por exemplo, em Foucault. Este filósofo analisou um caso de parricídio encontrado nos Annales d Hygiène Publique et de Médecine Legale de 1836 6. Sua ideia central é 2 DOSSE, Françoise. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 306 3 É preciso mencionar que da Antiguidade e até os séculos XIX, o estilo desta produção era aceito como saber erudito ainda que possíveis informações lacunares fossem preenchidas com fatos advindos da subjetividade e invenção do escritor. Isto ocasionou, entre os séculos XIX e XX, um desprezo obstinado [pelos historiadores (as) e pessoas ligadas a ciências humanas] condenou o gênero biográfico, sem dúvida muito dependente das concessões à emotividade e ao fomento da implicação subjetiva. Ibid., p.16. 4 Aliás, é digno de nota que o boom da micro-história se deu exatamente entre os anos 1970 e 1980. PELTONEN, Matti 2001. Clues, Margins, and Monads: The Micro-Macro Link in Historical Research. In: History and Theory. v. 40, n. 3, p. 347-359. 5 Sobre a crise da história e as inovações em que a ciência história passou a partir de 1960 ver HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 6 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mae, minha irma e meu irmao : Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault. Trad. Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 4 problematizar os discursos de pareceres médicos e psiquiátricos além dos testemunhos da defesa e da acusação. Contemplam-se, desta forma, a multiplicidade discursiva dos que conheceram de perto Rivière. Defendem e acusam ao mesmo tempo e, com isso, deixam transparecer a lógica do saber/poder. O autor parece se preocupar em analisar as relações estabelecidas entre o discurso da justiça penal e da psiquiatria em particular. Mas, Foucault vai além. O uso do processo crime reveste-se de um caráter biográfico. Ainda que a mémoire de Rivière, escrita à próprio punho, é posta logo em evidência nas primeiras páginas do livro, o autor não se propõe em analisá-la; prefere deixá-la ipsis litteris. O que existe é a confissão de Rivière em sua íntegra. O foco proposto por Foucault é o de apresentar uma parte dos documentos que compõem o processo e que relata os discursos produzidos por pessoas ligadas as instituições de controle juristas médicos e psiquiatras; assim, confronta esse documento biográfico com os discursos que se cruzam e se chocam, mas que perpassam procedimentos que rumam à constituição de uma verdade, ou seja, aquela veiculada a sentença. Que disseram eles em torno desse caso? Foucault objetivava encontrar, a partir dessa pergunta, as intencionalidades dos homens que julgaram Rivière, o que não é de se estranhar uma vez que era um filósofo dos micropoderes. Como autor preocupado em situar a verdade como um produto das relações de saber/poder, ele realiza um diagnóstico dos processos, das forças e dos movimentos do caso. Seu foco eram os aparelhos ou instituições que julgavam o parricida. Era, em suma, um cuidadoso analista dos jogos de verdade e, como tal, usara o processo-crime de Rivière para demonstrar como os saberes médico, psiquiátrico e penal produziam verdades. Entre o acontecimento (a morte da mãe e dos irmãos de Rivière) e os discursos em torno do mesmo acontecimento existiam, segundo Foucault, certas diferenças. Nesse contexto, parece que o filósofo francês não se detinha em explicar o comportamento de Rivière. Seu foco mesmo eram os efeitos de poder que os diferentes discursos criavam em torno do caso. Foucault também parece se preocupar, acima de tudo, com a função desses discursos: consistiria em ligar o sujeito Rivière à sua própria verdade? Em caso afirmativo, seria bom se questionar se não estivesse pensando no nexo causal que o cristianismo estabeleceu entre sujeito e verdade. Esse nexo possui relação com o que chamara de hermenêutica do desejo. Rivière, decerto, precisaria fazer um retorno para dentro de si, focando em seus pensamentos e imaginações no intuito de desvendar os mistérios por trás de seu ato irascível. É difícil saber até que ponto o filósofo não estava relacionando nesse livro o discurso de Rivière como uma modalidade especial de prática confessional, tema que irá debater em muitas de suas aulas no Collège de France. Esta é, como se sabe, uma atividade interior que deve ser trazida à luz do dia a fim de revelar a verdade de

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 5 si próprio. Trata-se, em suma, de um voltar-se para si próprio que conduz o sujeito à extração da verdade. Técnica de si, a confissão é uma prática disciplinar que conduz o pecador a descobertas interiores. Estas questões se forem assim problematizadas, parecem indicar que o caso Rivière fazia parte de um projeto mais amplo de Foucault: o processo criminal, neste caso, foi por ele utilizado para evidenciar os jogos de verdade, a percepção médica do louco Rivière (ou a sua recusa em assim considerá-lo) e as proposições jurídicas acerca da noção de crime. Tais questões são fruto de uma biografia infame 7 que evidencia uma relação de poder extremamente violenta: aqueles que se acreditam possuidores da verdade (os médicos e juízes do caso) não tinham em seu ofício um certo cuidado com a neutralidade dificultando o desenhar do perfil do réu. Não é à toa, portanto, que Rivière apareça como um ser não facilmente observável na obra de Foucault. O segredo de sua personalidade permanecia nas sombras. Onde estava Rivière? O verdadeiro Rivière não existia. O que existiu, de fato, são os discursos em torno dele. Tratar-se-ia de um retrato mal pintado e que, por isso, dava azo a mil enganos, pois a substância do personagem permanecia distante do pesquisador. No entanto, o que sobressai na analise são os fundamentos constituídos neste contexto que organizaram e estruturaram os fundamentos enunciados nos discursos analisados. Sabedor de que dificilmente poderá atingir integralmente o perfil de Rivière, Foucault preferiu usar a análise dos discursos para nortear seu trabalho. Este fato põe em relevo o notável caráter eminentemente social do seu estudo. Ainda que preocupado com o indivíduo Rivière, o autor de História da Loucura parece se preocupar com questões relacionadas às instituições de poder. A loucura, se tomada por este ponto de vista, passa a constituir o modelo que compõe e decompõe o real. O acontecimento em si (degolar a mãe e matar os irmãos) torna-se secundário em sua análise já que o que de fato lhe interessa é, efetivamente, o discurso e seus efeitos de poder. Em suma, Foucault mostrou que o processo criminal de Rivière é um documento que revela intenções, experiências e subjetividades diversas. É uma fonte histórica que denuncia o momento de uma vida. Tal registro passa a ser associado a vidas infames que não tendo nenhum feito de glória 8, passam quase despercebidas nas páginas da História. Sujeitos como Rivière, marcados pelo choque com o poder, eram relegados ao silêncio nas páginas da História. Com isso: O insignificante cessa de pertencer ao silêncio, ao rumor que passa ou à confissão fugidia. Todas essas coisas que compõem o comum, o detalhe 7 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber. 2. ed. Tradução de Vera Lúcia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 203-222. 8 Idem. Foucault, p. 210.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 6 sem importância, a obscuridade, os dias sem glória, a vida comum, podem e devem ser ditas, ou transcrição, na própria medida em que foram atravessadas pelos mecanismos de um poder político 9. O que está verdadeiramente em causa são biografemas, termo criado por Roland Barthes para se referir a acontecimentos ou fatos que narram acerca de toda uma existência ou parte dela. São, em suma, uma evocação possível do outro que já não existe 10. Nesta perspectiva, dialogar com processos criminais na perspectiva foucaultiana, desempenhado no caso Rivière, é se debruçar em torno de vidas que proporcionam o nascer de uma arte da linguagem cuja tarefa não é mais contar o improvável, mas fazer aparecer o que não aparece não pode ou não deve aparecer: dizer os últimos graus, e os mais sutis, do real 11 ". São existências registradas, biografadas e historicizadas. Destaque-se, por fim, Ginzburg. Este, diferentemente de Foucault, utilizou a micro-história para tratar do moleiro friulano Domenico Scandela, apelidado de Menocchio 12. Ginzburg fazia parte de um grupo de estudiosos que, à exemplo de Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Carlo Poni, preocupavam-se com às estratégias individuais, à complexidade dos elementos em jogo e o caráter imbricado das representações coletivas 13. Era, em suma, um historiador fascinado pela cultura popular tendo como mote uma análise que focava no indivíduo embora, verdade seja dita, não relegasse o aspecto macro em sua escrita. Aliás, é comum observar que Ginzburg sempre pinta Menocchio dentro de um quadro mais amplo. Pincela sua narrativa, aqui e acolá, com perspectivas que fazem o leitor lembrar que ninguém vive isolado do seu meio. Sua abordagem, baseada numa análise profunda do texto e em uma leitura lenta, se apoia em fontes pouco comuns. Não é à toa que tenha escolhido um perseguido pela Inquisição para tratar de grupos praticamente invisíveis. Dentro dessa perspectiva, o autor descreve as ideias e visões do moleiro, tomando-o como exemplo microscópico de toda uma cultura. Nesse sentido, chega a conclusões gerais a partir do estudo do indivíduo em questão. Além disso, destaca as grades mentais que permitiram a Menocchio ler certos livros e interpretá-los de forma heterodoxa, além de seu cotidiano e sias ideias traçando, dessa forma, uma reflexão acerca da cultura popular e 9 Idem. Foucault, p. 216. 10 Idem. Dosse, p. 306. 11 Idem. Foucault, p. 220. 12GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 13 Idem. Dosse, p.254.

erudita 14. XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 7 Mas o objetivo de Ginzburg vai além. O seu interesse no trato com o processo-crime de Menocchio é observar possíveis incoerências entre os sistemas sociais e culturais e a liberdade individual, ainda que relativa, que este sujeito tinha frente às estruturas de poder. Sabina Loriga soma tal análise ao definir que: Só assim, por meio de diferentes movimentos individuais, é que se pode romper as homogeneidades aparentes (por exemplo, a instituição, a comunidade ou o grupo social) e revelar os conflitos que presidiram à formação e à edificação das práticas culturais: penso nas inércias e na ineficácia normativas, mas também nas incoerências que existem entre as diferentes normas, e na maneira pela qual os indivíduos, façam eles ou não a história, moldam e modificam as relações de poder 15. A escolha metodológica de Ginzburg, em oposição à outras abordagens, parece indicar que uma leitura atenta aos detalhes e sutilezas da fonte inquisitorial podem revelar fenômenos tais quais eles são, e não como aparecem 16. Menocchio aparece ao longo do texto de maneira bastante heterogênea. A reconstituição que Ginzburg realiza traz para o centro do debate o ponto de vista do protagonista e não o da Inquisição. Com isso, o autor consegue não somente reconstituir a experiência vivida do réu, mas também destacar o que ela revela acerca do geral. Outra característica importante na escrita de Ginzburg é o seu apego aos traços e indícios. Ela representa, dentro deste modelo alternativo de escrita histórica, um esforço em expor a noção de perícia histórica. O historiador é, então, transformado em espécie de detetive que segue pistas aparentemente insignificantes no intuito de revelar realidades escondidas. Metodologicamente, Ginzburg chega muito perto de uma análise que focaliza em elementos implícitos que demonstrariam a maneira singular com que Menocchio observava o mundo a sua volta. Como afirma Ilana Löwi, as pesquisas de Ginzburg: (...) ilustram a importância da reflexividade, da imaginação, do risco e da paixão. Elas evidenciam a compatibilidade e a complementaridade entre a distância intelectual e a emoção partidária. E elas tornam tangível o prazer vertiginoso da confrontação com o inesperado, o que foi também um dos principais motores do desenvolvimento dos estudos feministas, gênero ou queer, estudos que permitiram frequentemente um olhar 14 BURKE, Peter. História e teoria social. 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 158. 15 LORIGA, S. A biografia como problema. In: REVEL, J. (org.). Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998, p. 248-249. 16 LÖWY, Ilana. Carlo Ginzburg: o gênero escondido da micro-história. In: CHABAUD-RYCHTER, Daniele [et al.] (Org.). O gênero nas Ciências Sociais. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2014, p. 206.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 8 surpreendente dos eventos e fenômenos familiares 17. Il formaggio e i vermi, é verdade, conquistou espaço não apenas entre os historiadores. Os especialistas ligados a temas culturais passaram a se interessar pela obra que, investigando a cosmologia singular de Menocchio, trazia para o campo do historiador um modelo de escrita que evidenciava as estruturas de pensamento, os saberes e os conhecimentos das culturas subalternas. A dinâmica cultural é compreendida como espécie de relação de troca. Na verdade, para Ginzburg, a divisão existente entre cultura de massas e cultura de elites é uma ideia bastante recente na história. O interesse do historiador italiano no que tange o uso do processo criminal inquisitorial foi, portanto, exortar os historiadores para o cuidado à liberdade de investigação uma vez que ela poderia ofuscar questões certamente relevantes como a clássica divisão entre cultura popular e erudita. Se Menocchio viveu em um período em que a separação entre saber permitido e saber proibido eram transponíveis, fundamental era demonstrar que a fronteira que os separava era demasiado tênue. Crenças, pensamentos e costumes das classes populares eram assim tão distantes dos da elite? Essa era a sua grande questão. A partir de uma perspectiva vista de baixo, Ginzburg mostrou a importância do pesquisador temperar suas ideias com senso de medida no intuito de evitar uma história baseada em uma hierarquia dos saberes. Sua preocupação girava em torno de um modelo interpretativo que tomava como centro do debate o cruzamento de ideias entre uma cultura e outra. Seu apelo por uma história complexa e aprofundada, portanto, não observa as falas de Menocchio como puro folclore e crenças primitivas. Caso tal discussão fosse omitida, seria fácil cair em ideias pré-concebidas como a crença da aculturação empreendida pelas classes dominantes. Onde Ginzburg vê isso? Principalmente na análise que realiza das leituras que Menocchio fazia e da forma particular do moleiro friulano interpretar o mundo. Paralelamente a esse processo, Ginzburg destaca as pressões físicas e psicológicas pelo qual Menocchio foi submetido e reconstrói os mecanismos que possibilitaram a perseguição aos heréticos na Itália Moderna. Considerações finais Tanto Ginzburg quanto Foucault refletem acerca de casos particulares e, utilizam para tanto, processos criminais a partir de uma análise das circunstâncias, dos cotidianos, dos discursos e das ideias que permearam os documentos. Vidas comuns, mas singulares. Tratam, 17 Ibid, p. 211.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 9 além disso, de indivíduos que poderiam passar facilmente despercebidos pelos historiadores. Uma das colunas da história e do ofício de quem a faz é não deixar esquecer feitos e considerações humanas, ainda que estranhos. Não importa como foram vistos pelos poderes estabelecidos, as ações de Menocchio e Rivière fazem parte da realidade histórica, ainda que idealizadas por meio dos julgamentos que, quase sempre, enfatizam as estranhezas e anormalidades do réu. Se a biografia é ficção lógica como lembra Philippe Sollers 18, os processos criminais podem ser considerados, dentro de sua dinâmica, como documentos de vidas que foram esquadrinhadas, investigadas, marcadas e registradas pelas instituições de poder. Todavia, deve-se ponderar acerca da efetiva aproximação entre a história e a biografia. A biografia foi considerada como mais uma forma de escrever história, mas ela possui especificidades próprias. Se o interesse de escrever biografias é característica da contemporaneidade, fica fácil entender que ela não está relacionada apenas à escrita histórica. Ainda assim, é evidente que os historiadores também produzem análises acerca dos homens do passado a partir das necessidades do presente. Seguem fielmente um método de trabalho com suas fontes e arcabouços teóricos que lhes conferem plausibilidade nas suas ideias. Embora muitos (as) historiadores (as) se dediquem também a escrever biografias para o grande público, a produção da escrita histórica não exclui a utilização do gênero biográfico. Refletindo no trabalho do historiador, especialmente com o aumento do número de produções ligadas ao universo biográfico, percebe-se que estudar o processo crime em seus múltiplos aspectos é mergulhar no contexto e universo próprio que o moldou. Essa relação possibilita uma aproximação com o cotidiano descrito nos autos ao relatar cada crime, assinala as descrições e os panoramas das realidades vivenciadas e, acima de tudo, apresenta uma história que valoriza o lugar do sujeito na trama. A partir dessas perspectivas, seja individualmente ou coletivamente, o historiador tem mais condições de retratar as relações familiares, amorosas, sociais, culturais de uma dada realidade. Com esta exposição, talvez seja possível considerar que tais processos possibilitam múltiplas releituras ao assinalar a existências de outros enfoques em relação aos estudos das ações institucionais do judiciário e dos costumes, das relações de poder e da própria violência. Chalhoub, nesse quesito, assim se expressa: Os processos revelam de forma notória a preocupação dos agentes policiais e jurídicos em esquadrinhar, conhecer e dissecar mesmo, os aspectos mais recônditos da vida cotidiana. Percebe-se, então, a intenção de controlar, de vigiar, de impor padrões e regras preestabelecidos a todas as esferas da vida. Mas a intenção de enquadrar, de silenciar, acaba revelando também a resistência, a não-conformidade, a luta 19. 18 Sollers, Philippe. Logiques. Paris: Le Seuil, 1968, p.31.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 10 Chalhoub parece indicar que é possível refletir acerca da natureza do processo-crime: a fonte expressa intencionalidades, condições de produção e pluralidade social. Mais que um documento processual, tais fontes estão investidas com uma riqueza de vestígios que o faro do historiador busca captar, seja esmiuçando os mínimos detalhes como fazia Ginzburg, seja chamando a atenção para o peso das instituições como o fez Foucault. Em linhas gerais, tais leituras ressaltam que não é possível mensurar a qualidade de uma maçã sem pensar na árvore e no solo que a produziu. Nesse sentido, as biografias são espécies de frutos produzidos no seu tempo e a partir de determinados interesses. É uma forma bastante específica de apresentar a história e como ela se constitui. Isto posto, para finalizar esta exposição acerca da riqueza dos processos criminais, retenham-se algumas ideias. Primeiro, tanto Foucault quanto Ginzburg compartilham da inquietação que procura compreender as razões pelas quais a vida de indivíduos comuns, que romperam com as normas estabelecidas, se projetam nos processos criminais. Segundo, enquanto pensadores, ambos os autores conferem uma importância especial as falas institucionais, embora Ginzburg tenha, até certo ponto, concebido o perfil individual como eixo problematizador do seu trabalho. Ainda assim, finalmente, no conjunto tanto Ginzburg quanto Foucault possuem posturas críticas em relação ao que vinha sendo produzido até então em relação a sujeitos marginalizados. Mais do que seu significado ideológico, o que prevalece são escritas que rompem com ideias pré-estabelecidas e que, acima de tudo, buscam trazer para o centro da narrativa personagens omitidos das páginas da História. Referências ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007. BURKE, Peter. História e teoria social. 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª ed. Campinas: Unicamp, 2001. CORRÊA, Marisa. Morte em família. Representações jurídicas em papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edição Graal, 1983. DOSSE, Françoise. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 19 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2. ed. Campinas: Unicamp, 2001, p.53.

XVI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA Tempos de transição - 11 ESCOBAR, Mario. Canções de ninar de Auschwitz. 1. ed. Rio de Janeiro, Harper Collins Brasil, 2016. FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber. 2. ed. Tradução de Vera Lúcia Avelar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: Ditos & Escritos V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.. Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irm ã e meu irmão: Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault. Trad. Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 1977. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LORIGA, S. A biografia como problema. In: REVEL, J. (Org.). Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998. LÖWY, Ilana. Carlo Ginzburg: o gênero escondido da micro-história. In: CHABAUD- RYCHTER, Daniele [et al.] (Org.). O gênero nas Ciências Sociais. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2014. PELTONEN, Matti 2001. Clues, Margins, and Monads: The Micro-Macro Link in Historical Research. In: History and Theory. v. 40, n. 3, p. 347-359. SOLLERS, Philippe. Logiques. Paris: Le Seuil. 1968.