Arte e famílias: o uso de recursos artísticos na violência familiar 1 Maíra Bonafé Sei 2 Isabel Cristina Gomes 3 Os processos de percepção se interligam com os próprios processos de criação. O ser humano é por natureza um ser criativo. No ato de perceber, ele tenta interpretar e, nesse interpretar, já começa a criar. (Ostrower, 1988, p. 167) Criatividade e saúde A criatividade, a capacidade de criar, é vista por alguns autores como se constituindo como algo inerente à natureza humana, lembrando que a compreensão do termo criatividade pode se diferenciar conforme cada autor (Lowenfeld e Brittain, 1970; Ostrower, 1988; Winnicott, 1975). De acordo com Lowenfeld e Brittain (1970), a criatividade poderia ser entendida como um comportamento produtivo, construtivo, que se manifesta em ações ou realizações (p. 62), não sendo necessário que este comportamento se constituísse como algo ímpar, mas sim como uma contribuição da pessoa a seu meio. A criatividade e o viver saudável são considerados com aspectos relacionados entre si. A saúde e o sentido da vida encontram-se atrelados à capacidade do indivíduo de criar, assim, nossa teoria inclui a crença de que viver criativamente constitui um estado saudável, e de que a submissão é uma base doentia para a vida (Winnicott, 1975, p. 95). A importância especificamente da arte, encontra-se, para Luz (1998), mais em seu processo de fazer do que nos resultados deste processo, isto é, a obra. Segundo tal autor, a criação artística reúne, num movimento paradoxal, invenção e realidade, atividade e passividade, concepção e êxtase. E o que se produz através dela é um processo de subjetivação (p. 217). 1 Pesquisa de doutorado financiada pela FAPESP. 2 Psicóloga, arteterapeuta (AATESP 062/0506), mestre e doutoranda em Psicologia Clínica IP-USP, bolsista FAPESP. 3 Psicóloga, Livre-Docente, Profa. Associada junto ao Departamento de Psicologia Clínica IP-USP.
Assim, a arte, como expressão de um viver autêntico e criativo, tem grande importância para os processos de subjetivação do ser humano, para a constituição de um self integrado e saudável. Segundo Winnicott (1975), descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que a vida merece ser vivida ou, então, que não podem viver criativamente e têm dúvidas sobre o valor do viver. Essa variável nos seres humanos está diretamente relacionada à qualidade e à quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases primitivas da experiência de vida de cada bebê (p. 102-3). Dessa forma, observa-se a importância que o meio têm para o desenvolvimento desta capacidade criadora do homem, para a saúde e para o sentido da vida. Contudo, nem sempre as provisões ambientais recebidas são aquelas consideradas como ideais ou como necessárias ao desenvolvimento. O ambiente não precisa ser perfeito, contudo deve ser suficientemente bom, sem apresentar falhas além da capacidade do outro suportá-las (Winnicott, 1963). A violência familiar Há famílias que além de não ofertarem um ambiente suficientemente bom, ainda promovem ações que trazem danos para o processo de crescimento de seus membros. Pensa-se que a violência familiar se encontra dentre estas possíveis ações que podem ser perpetuadas por famílias, trazendo seqüelas diversas, nos diferentes âmbitos, isto é físico, cognitivo, emocional e social, para seus integrantes. Além disso, pode se manifestar, em geral, através das seguintes modalidades: abuso físico, abuso sexual, abuso psicológico e negligência (Sei, 2004). Há vários modelos explicativos para o fenômeno da violência familiar, além de uma vasta literatura acerca das conseqüências a curto, médio e longo prazo, listadas para cada forma de violência vivenciada. Contudo, a literatura apresenta um número inferior de pesquisas que explanam sobre possíveis intervenções junto à esta população.
Há várias instituições no país que surgiram após os movimentos feministas e passaram a oferecer atendimento a mulheres e famílias que vivenciaram situações de violência familiar (Braghini, 2000). Apesar da importância de intervenções para se minorar o sofrimento da população atingida, um pequeno número dessas instituições apresenta uma sistemática de divulgação das atividades desenvolvidas ou uma cultura atrelada à pesquisa acadêmica, dificultando o conhecimento dos modelos interventivos, de seus sucessos e suas dificuldades. Uma destas instituições é o SOS Ação Mulher e Família, organização nãogovernamental fundada em 1980, no município de Campinas. No local eram feitos atendimentos para mulheres que sofreram violência familiar, contudo, com o passar dos anos ampliaram a missão, acolhendo também os demais integrantes da família. Há hoje programas diversos que atendem desde a mulher em grupos, até projetos de terapia individual e grupal para crianças, adolescentes, para o casal e para a família como um todo (Sei e Corbett, 2003), atendimento a ser descrito neste trabalho. Família e arteterapia O atendimento psicológico na área de violência familiar mostra-se muito atrelado às questões de ordem invidual, que podem ser trabalhadas tanto em um setting individual quanto em grupos. Nem sempre há um olhar para os aspectos do relacionamento familiar, com o grupo familiar como um todo sendo trabalhado. No SOS Ação Mulher e Família, especificamente, tem-se o projeto Recriando, que atende crianças em grupos, com a temática do brincar, abrindo um espaço lúdico para a criança, que pode ser terapeuticamente utilizado pela mesma para elaboração das vivências ligadas à violência. Concomitantemente são realizados grupos com os pais das crianças atendidas e participação dos pais no grupo de crianças com objetivo de integração deles com as crianças, de forma que possam resgatar o brincar com seus filhos e construir uma forma diferente de relação na família (Oliveira, Penteado, Auko, 2006). Pensa-se que tal modalidade de atendimento já mostra um início de mudança de olhar para o fenômeno da violência familiar e para maneiras de resolução do mesmo.
Uma outra modalidade de atendimento existente no SOS Ação Mulher e Família é a arteterapia familiar. Neste atendimento busca-se oferecer um espaço para a família como um todo se expressar, incluindo membros que são considerados como os agressores, caso eles ainda estejam convivendo com a família e se interessem em participar do atendimento, que é feito através do uso dos recursos da arteterapia. Metodologia A inserção dos atendimentos familiares através do uso dos recursos arteterapêuticos se deu através de um projeto de pesquisa que tem como objetivo verificar a aplicabilidade de tal proposta no contexto institucional de atendimento à violência familiar, observando limites e alcances da intervenção proposta, no que concerne a diminuição do sofrimento dos integrantes da família, de seus sintomas e disfunções. Caracteriza-se, de forma geral, como uma pesquisa qualitativa, baseada em um paradigma de ciência que aceita múltiplas realidades, com o predomínio da lógica da descoberta, mais do que uma lógica de verificação. Assim, tem-se uma produção de conhecimento que leva em conta as relações intersubjetivas, como para o aprofundamento de aspectos do mundo real que necessitam de um mergulho intensivo, mais que um olhar extensivo (Eizirik, 2003, p. 29). Percurso trilhado Foram propostos, para a realização da parte prática da pesquisa, atendimentos semanais de aproximadamente uma hora de duração, com famílias encaminhadas pelos profissionais da instituição, em que fossem percebidas questões onde o atendimento familiar se mostrasse como uma pertinente proposta de atendimento. Na dinâmica institucional percebia-se o encaminhamento de cada um dos integrantes da família para um atendimento diferente, oferecido pelo local, abrindo espaço para se questionar se não seria interessante que a família recebesse um olhar como um todo e não para suas partes, como acontecia através dos múltiplos encaminhamentos.
No ano de 2006 foi realizado um projeto Acolher, de esclarecimento da demanda dos usuários da insitutição, onde buscava-se observar qual era a real demanda da família, otimizando os encaminhamentos realizados aos projetos institucionais (Sei e Corbett, 2006), algo que gerou encaminhamentos pertinentes para a arteterapia familiar. Contudo, foram encontradas dificuldades diversas para a realização dos atendimentos propostos, tanto em relação aos encaminhamentos, com o fim do projeto Acolher, por questões de ordem institucional (Sei, 2006), além de questões práticas e psíquicas das famílias, que não tinham condições de estarem semanalmente no local (Sei e Gomes, 2007a). Tais questões foram contornadas através de uma adaptação da proposta, que incluía a diminuição do número de encontros, realizados conforme a disponibilidade da família. Pensa-se que um atendimento mais freqüente pode trazer maiores benefícios para a família como um todo, que passa a se envolver de forma mais intensa com o atendimento, com a instituição, contudo, optou-se por manejar as dificuldades desta maneira, ofertando, mesmo que com menor freqüência, o atendimento àqueles que se mostravam interessados. Em relação aos atendimentos, percebeu-se que os recursos arteterapêuticos mostravam-se como ferramentas importantes para a expressão dos integrantes da família, oferecendo uma diferente linguagem para comunicação. A literatura aponta que os recursos artísticos têm a vantagem de fazer com que qualquer contribuição tenha um importante valor na sessão, com um rabisco tendo tanta importância quanto um elaborado trabalho figurativo (Liebmann, 2000). No caso das famílias com crianças, tem-se uma oferta às mesmas de linguagens mais familiares a elas, que ainda não dispõem da mesma fluência verbal que um adulto possui, mas que podem se comunicar bem com o uso da arte (Manicom e Boronska, 2003). Tais aspectos foram observados na prática com as famílias, onde a criança trazia informações sobre fantasias de solução dos conflitos familiares, através do material produzido com os recursos artísticos (Sei e Gomes, 2007b). Além disso, dificuldades outras também puderam ser observadas através da arte, ressaltando a importância da arte como um instrumento de conhecimento e intervenção com as famílias.
Considerações finais As intervenções psicoterapêuticas no campo da violência familiar se mostram usualmente como uma prática difícil de ser empreendida nas instituições. Sabe-se da importância do trabalho com aspectos psíquicos, contudo, nem sempre se percebe uma disponibilidade nos indivíduos para tal tipo de trabalho. As dificuldades devem ser contornadas e o presente trabalho discorreu um pouco sobre uma proposta de atendimento e suas adaptações para o atendimento psicológico no contexto da violência familiar. Atender as famílias, apesar de ser uma excelente proposta, nem sempre é uma tarefa facilmente empreendida pelos profissionais. Pensa-se que a arte acaba por oferecer outros recursos para expressão e comunicação dos integrantes da família, facilitando a compreensão da dinâmica familiar por parte do terapeuta. Conteúdos que não seriam conhecidos de outra maneira se tornam passíveis de serem observados e, assim, trabalhados. Dessa maneira, apesar das dificuldades inerentes ao atendimento no contexto da violência familiar em geral, defende-se que a estratégia de trabalho utilizada nesta pesquisa se configura como uma alternativa de contato com esta população, de forma que conteúdos e vivências relacionados à violência possam ser trabalhados, elaborados, auxiliando na interrupção do ciclo da violência repetidos ao longo de gerações. Referências Bibliográficas BRAGHINI, L. Cenas repetitivas de violência doméstica. Campinas: Editora Unicamp, 2000. EIZIRIK, M. F. Por que fazer pesquisa qualitativa? Revista brasileira de psicoterapia, v. 5, n. 1, 2003. LIEBMANN, M. Exercícios de arte para grupos. São Paulo: Summus, 2000. LOWENFELD, V. e BRITTAIN, W. L. O desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
LUZ, R. Sujeito, arte e criação. Em: LINS, M. I. A. e LUZ, R. D. W. Winnicott: experiência clínica & experiência estética. Rio de Janeiro: Revinter, 1998. MANICOM, H. e BORONSKA, T Co-creating change within a child protect system: integrating art therapy with family therapy practice. Journal of Family Therapy, v. 25, 2003. OLIVEIRA, B. B. C., PENTEADO, M. I. G. e AUKO, T. R. Recriando na brinquedoteca narrativas sobre violência familiar. Em: OLIVEIRA, S. M. e GONÇALVES, T. E. Famílias e instituições: enlaces possíveis. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2006. OSTROWER, F. A construção do olhar. Em: NOVAES, A. (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1988. SEI, M. B. Desenvolvimento emocional e os maus-tratos infantis: uma perspectiva winnicottiana. Dissertação (mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. SEI, M. B. Violência familiar e saúde mental: algumas reflexões sobre o trabalho institucional. Encontro: Revista de Psicologia, v. 11, 2006. SEI, M. B. e CORBETT, E. SOS Ação Mulher e Família: relato de uma experiência de atendimento a mulheres e famílias no contexto da violência doméstica. Perfil & Vertentes, Volume Temático, 2003. SEI, M. B. e CORBETT, E. A importância do esclarecimento da demanda em instituições: a experiência na violência familiar. Programas e Resumos - 14o. Encontro de Serviços-Escola de Psicologia de São Paulo - Saberes e fazeres: os caminhos da integração. São Paulo : Editora Vetor, 2006. SEI, M. B. e GOMES, I. C. A difícil arte do atendimento com famílias no contexto da violência familiar. Resumo dos Temas Livres - 1o. Congresso Internacional de Psiquiatria da Infância e Adolescência, São Paulo, 2007a. SEI, M. B. e GOMES, I. C. O papel da criança na arteterapia com famílias: reflexões iniciais. Anais do V Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, Maceió, 2007b. WINNICOTT, D. W. (1963) Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. Em: WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação:
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