Deus e os Deuses. O uso da mitologia cristã e pagã n Os Lusíadas de Luís Camões

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Transcrição:

Deus e os Deuses O uso da mitologia cristã e pagã n Os Lusíadas de Luís Camões Robert Sarwark POBS 2600A: Medieval and Renaissance Portuguese Literature Professora Leonor Simas Almeida Brown University 21 de Dezembro de 2012

Introdução Como é o caso de qualquer obra literária do mundo, é da maior importância tomarmos sempre em conta todos os elementos que contribuíam ao contexto em que era escrita. Portanto, o Shakespeare escrevia durante uma época bastante turbulenta da história política e religiosa da Inglaterra, e também no limiar dos grandes conquistas ultramarinas da mesma nação. Claro que, paralelamente, o Camões é tão célebre ainda hoje, não por ser apenas bom poeta, mas também pelo facto que os descobrimentos e conquistas dos portugueses durante os séculos XV e XVI realmente mudaram a trajectória do mundo. O Camões representa esta época porque captou o zeitgeist da era, a era em que surgiu não só o colonialismo mercantil português, mas também um estilo literário inovador e renascentista. É neste meio que Camões conseguiu soldar as tradições cristãs às da antiguidade mas também com um novo elemento: o do emergente luso ufanismo. Como salienta Armando Castro (1980), Interessa nos a sua expressão insuperável de sentimentos, aspirações, frustrações e contradições, do amor e do ódio, da capacidade de sacrifício e do egoísmo dos homens a que assistiu, das condições sociais em que viveu e se vivia na sua época... (14). É com este interesse que vou tentar debruçar a complexidade que também os papeis da mitologia ora cristã, ora pagã, ora luso ufanista jogam n Os Lusíadas, e as implicações do momento histórico que tais referências apresentam. 1

Uma breve sinopse da obra épica camoniana como exemplo da nova tradição renascentista I. A época dos grandes descobrimentos orientais dos portugueses começou com a chegada de Vasco da Gama na Índia em 1498. E é a partir deste ano que vê se também a confluência de factores que contribuíam ao estilo e a estrutura d Os Lusíadas, publicado 74 anos depois desse ano. Castro (1980) oferece uma ampla perspectiva do contexto histórico: Efectivamente não se pode subestimar o significado fundamental que a obra de arte apresenta como tipo particular de conhecimento humano da realidade. Sob este ponto de vista também a poesia de Luís de Camões é o produto complexamente elaborado duma riquíssima experiência vivida tanto em Portugal como ao contacto da realidade extra europeia que conheceu primeiro em Ceuta e depois no seu longo viajar de Lisboa até à Índia e ao Extremo Oriente, passando pela África, onde se sabe que se deteve algum tempo pelo menos na viagem de regresso, visto ter estado em Moçambique. (27) Portanto, dadas todas as aventuras e viagens longas, desafiantes e até violentas do Camões, é claro que na sua própria pessoa podemos ver uma vasta gama de experiências que lhe permitiam a perspectiva para escrever tal obra como Os Lusíadas. Efectivamente, ele seguiu o caminho do herói dele e de Portugal em geral, Vasco da Gama, a personagem principal do seu Poema. Ainda mais importante, estas aventuras deram ao Camões a própria licença de entender a natureza e a política do império português ultramarino enquanto o mesmo ainda se formava e lutava pelo domínio de não são as 2

terras já conquistadas, mas também as futuras conquistas, particularmente no Extremo Oriente. Como a chegada do Vasco da Gama na Índia representa o arranque da globalização e o multi culturalismo que existe até os nossos tempos, a história encapsulada na poesia épica d Os Lusíadas não é apenas a história do Vasco da Gama e seus tripulantes durante sua viagem para a Índia, mas também a dos portugueses à sua entrada no mundo como inovadores marítimos, mercantis e colonialistas. Aliás, este evento célebre o descobrimento da rota marítima e a abertura mercantil da Índia ao Ocidente representa também a grande derrota dos desafios e constrangimentos da Europa ocidental cristão em geral, com estes problemas manifestados anteriormente na forma dos turcos otomanos, que impediam a rota terrestre à Índia, a terra que abrangia uma enorme fonte da especiaria e outros produtos não europeus tão desejados daquela época. Vale a pena neste ponto fazer também uma pequena análise das influências literárias no jovem Camões. Ramos (em Camões, 1980), explica a formação do futuro poeta assim: Cedo, certamente, porém, teria ido para Coimbra, onde, com maior ou menor influência de leituras de outros grandes poetas Petrarca e petrarquistas em lugar de revelo... (23). A influência da obra do Petrarca (1304 1374), humanista italiano, apresenta se principalmente na obra do Camões na medida em que foram integrados nos textos dos dois poetas a mitologia e o humanismo da tradição greco latina. Mas também as estruturas poéticas dos dois seguem um formato estabelecido pelos poetas mais célebres dessa mesma tradição, os romanos Cícero e Virgílio. Portanto, Camões é visto 3

como bom representante do Renascimento tardio. Esta transição do feudalismo da época medieval para o capitalismo da época moderna, em que ainda nos encontramos, representa se tão fortemente na pessoa de Camões particularmente porque ele pessoalmente viveu essa transição, como temos visto, tanto em Portugal como no ultramar. E assim Camões conseguiu fundir as influências clássicas com as nacionalistas para construir o Épico d Os Lusíadas como obra particularmente inovadora da Renascença. O meio ambiente contemporâneo do Camões era bastante significativo para a formação e o desenvolvimento do mesmo, particularmente nas pessoas de Damião de Góis e Gil Vicente (da geração anterior) (Castro: 39). Mas em geral, como humanista, classicista e principalmente renascentista, foram os grandes escritores romanos acima mencionados que influenciaram mais o jovem Camões, como se vê nesta estrofe do Canto I d Os Lusíadas : 33 Sustentava contra ele Vénus bela, Afeiçoada à gente Lusitana, Por quantas qualidades via nela Da antiga, tão amada sua, Romana; Nos fortes corações, na grande estrela, Que mostraram na terra Tingitana, E na língua, na qual, quando imagina Com pouca corrupção crê que é a Latina. (79) Portanto, como vamos ver mais em destaque neste ensaio, Os Lusíadas são uma visão do Camões em que o povo português representou a continuação da glória da Roma, cumprindo os objectivos e desejos da mesma, mas também ultrapassando barreiras terrestres e marítimas nunca imaginadas possíveis na antiguidade. É com este reconhecimento da ligação forte entre Portugal renascentista e a antiguidade que se 4

provoca a nossa leitura da obra épica camoniana como uma representação mítico histórica dos feitos do Vasco da Gama e seus companheiros dos anos finais do século XV. II. A linguagem d Os Lusíadas Destaca se muitíssimo a linguagem utilizada na obra camoniana em geral, mas particularmente n Os Lusíadas pelo facto que o conteúdo representa matéria intrinsecamente referencial à antiguidade e, aliás, as línguas latinas e gregas. Mesmo assim, a escolha de integrar o vulgar (a língua portuguesa de então) com um leque de invenções linguísticas fortalece nosso entendimento deste épico como perfeita fusão entre o passado e o presente. Saraiva explica, Há numerosas palavras que eram raras ou nem sequer existiam. As palavras novas são directamente decalcadas do latim... (29). Este método, então, é representado numa tendência a fugir à vulgaridade (30), e o poeta também procura evitar a sequência rígida das línguas românicas, imitando a liberdade da colocação que os diferentes casos...permitiam em latim (31). Esta fuga da modernidade sempre presente nas obras literárias da época renascentista, mas com respeito a eventos quase contemporâneos da altura, como os feitos do Gama no caso d Os Lusíadas, é boa amostra da duplicidade presente na obra camoniana; é um formato antigo utilizado para fornecer mais eloquência e assim se constrói uma epopeia renascentista, mas também um épico cristão e conquistador. 5

A própria estrutura das estrofes é, duma maneira, bem constante e segue o padrão ABABABAB. O Canto X (o canto final) é o mais longo de todos, com 156 estrofes, sendo o mais curto o Canto VII, com apenas 87 estrofes. É dentro deste estrutura simples e bastante rígida que vemos particularmente a influência da obra poética greco latina. Seja como for, diz Saraiva, Um velho preconceito tornou Os Lusíadas apanágio dos eruditos e das escolas; mas há no Poema uma oralidade viva, um sabor da palavra gostosa que é própria dos bardos, dos aedos, dos jograis, dos Antónios Aleixos que nos restam. É um livro para ser entoado por recitadores, e não analisado por gramáticos (36). Aqui temos um bom exemplo desta liberdade constrangida e altiva: Canto VIII, 29 Olha: por seu conselho e ousadia, De Deus guiada só e de santa estrela, Só, pode o que impossibil parecia: Vencer o povo ingente de Castela. Vês, por indústria, esforço e valentia, Outro estrago e vitória, clara e bela, Na gente, assi feroz como infinita, Que entre o Tarteso e Guadiana habita? (274) O tom é bastante oral, como Saraiva nota, e de facto faz parte duma conversa que o Camões pretende fazer com o leitor, quem é presumivelmente também português. Assim, o Poema é uma afirmação dos sucessos do Gama através de linguagem culta mas também acessível à classe popular. A religião e a mitologia: Deus e os deuses III. 6

Desde nossa perspectiva moderna, fica às vezes muito difícil de distinguir entre a religião, a mitologia e a espiritualidade, particularmente numa obra como Os Lusíadas, em que estão sempre presentes exemplos dos três conceitos. Digamos neste ponto que o Poema é uma obra cristã, com elementos pagãos e um espírito luso ufanista e, então, serve duma auto justificação das conquistas dos portugueses. Saraiva explica bem como os primeiros dois sistemas o cristão e o pagão interagem: A nossa interpretação tem também um pressuposto: é o que os verdadeiros deuses objectivos, n Os Lusíadas, são os deuses da fábula e que Deus (cristão) é um deus subjectivo, ilusório dentro da máquina do Poema, um deus relativo ao Autor, nos seus apartes, e aos actantes cristãos, mas não deus para dentro do Poema e da sua acção. Camões, autor personagem, é cristão. Vasco da Gama e os Portugueses são cristãos, mas o Poema é construído como se os deuses fossem objectivos, independentes da subjectividade do Poeta e dos heróis. (41) Assim temos a chave da nossa resposta à pergunta Eram meio pagãos o Camões e os portugueses da altura? Mesmo que a resposta simples seja não, precisamos ainda de qualificá la com uma ampla menção da interacção entre a religião dogmática cristã e a tradição politeísta greco romana (pagã). Saraiva continua a explicar: Só nos cantos III, IV, V e VII há referências relativamente frequentes a Deus, porque nesses cantos quem fala é Vasco da Gama, contando as história de Portugal e a sua própria viagem... (43). Portanto, como agora temos um exemplo dum claro nexo entre o cristianismo e o luso ufanismo, vamos discutir mais em destaque esses quatro cantos, começando por uma estrofe do III: 69 Mas o alto Deus, que pera longe guarda O castigo daquele que o merece, Ou pera que se emende, às vezes tarda, Ou por segredos que homem não conhece, Se até qui sempre o forte Rei resguarda 7

Dos perigos a que ele se oferece, Agora lhe não deixa ter defesa Da maldição da mãe que estava presa, (146) IV 88 A gente da cidade, aquele dia, (Uns por amigos, outros por parentes, Outros por ver somente) concorria, Saudosos na vista e descontentes. E nós, co a virtuosa comanhia De mil religiosos diligentes, Em procissão solene, a Deus orando, Pera os batéis viemos caminhando. (187) VII 3 Vós, Portugueses, poucos quanto fortes, Que fraco poder vosso não pesais; Vós, que, à custa de vossas várias mortes, A Lei da vida eterna dilatais: Assi do Céu deitadas são as sortes Que vós, por muito poucos que sejais, Muito façais na santa Cristandade, Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! (245) Vemos no primeiro exemplo a pressão do dogma cristão, sob e perante a qual ambos Camões e Gama se encontram no âmbito da aventura para a Índia. É, ao mesmo tempo, uma expectativa e uma lembrete, tanto para os leitores como para todas as personagens d Os Lusíadas ; em outras palavras, como se Camões dissesse, Nunca esqueçam que estes feitos tem o patrocínio da Igreja Católica e, portanto, se fossem justos nas suas acções os Portugueses, contam então com a bênção de Deus também. Na segunda estrofe, do Canto IV, este nacionalismo luso católico apresenta se ainda mais em destaque. No último exemplo, temos o que pode ser efectivamente interpretado como o modus operandi do Camões: uma celebração do facto que mesmo que fossem poucos, os Portugueses conseguiram fazer o impossível, e talvez conseguiram exactamente porque 8

fossem tão poucos, porque faziam muito...na santa Cristandade. O descobrimento da Índia, portanto, é o último prémio de Deus pela piedade do povo português. Precisamos, porém, de discutir ainda mais a presença dos deuses pagãos n Os Lusíadas. Esta duplicidade apresenta, como já temos visto, um sentido meio esquizofrénico para o leitor não iniciado no Culto do Camões. Mas estes dois fenómenos realmente coexistem e convivem em paz relativa. Quem ou o que são os deuses, deusas e ninfas pré cristãos para o Camões? Para Soares (2007), Quando por toda a Europa Ocidental se alastrava o culto da Antiguidade Clássica, os Portugueses abriam a questão dos antigos e dos modernos, defendendo a superioridade destes últimos, pela certeza do saber experimental (80). E ela continua, Na verdade, considerava se que a heroicidade dos nossos descobridores superava a dos romanos e gregos (81). Portanto, temos aqui várias atitudes que contribuem para a obra camoniana, inclusive a mistura do Antigo com o Moderno, a pagão com o cristão, o humanismo com o capitalismo. Mas são sempre os segundos de todos os pares que valem mais. O mais interessante é a maneira em que Camões consegue mostrar respeito pelo passado enquanto recusa se de ser preso por ele. Os deuses Júpiter, Vénus, Neptuno, etc. são os elementos e aspectos efémeros do planeta, que sempre existiam desde a criação do mesmo. E por isso que eram reconhecidos pelos antigos gregos e romanos (os avós e pais culturais dos portugueses) como tal. Em outras palavras, se Camões quisesse reconhecer a sabedoria da antiguidade, teria que reconhecer também seus deuses, suas crenças mais viscerais. Mesmo assim, a proeminência de Deus (cristão), Cristo (a figura histórica e ideológica) e a Cristandade 9

em geral são sempre reconhecidos como o subjectivo, nas palavras de Saraiva. O sujeito mesmo que seja na pessoa de Camões ou Vasco da Gama reconhece o poder supremo de Deus sobre qualquer objecto, mesmo que seja isso um deus, deusa ou ninfa. Conclusão Em suma, temos aqui abordado umas questões imperativas à nossa leitura d Os Lusíadas, assim contextualizando esta obra como representação da época em que foi escrita. As influências do Autor são muitas, obviamente, e não podemos deixar para fora todas as experiências vividas por ele, dado que incluídos nelas são momentos realmente dramáticos também, e não só ideias abstractas. Este Camões Aventureiro faz grande parte da figura que apontamos como o Grande Bardo Português, mas o Camões Erudito faz parte igual. Como acrescenta a Soares, A epopeia é levada a cabo por Camões, após múltiplos incitamentos e tentativas de realização infrutíferas por parte de alguns literatos. Subjaz ao apelo de realização da epopeia engrandecedora dos Descobrimentos a consciência da importância de Portugal como nação imperial. Na verdade, considerava se que a heroicidade dos nossos descobridores superava a dos romanos e dos gregos. (81). Eu incluo a frase em negrito mais uma vez neste ensaio não por acidente: Precisamos de sempre manter em conta o facto que no contexto d Os Lusíadas estamos a falar não só duma celebração da criação dum novo império, mas um império que pretende ultrapassar o império reconhecido como o mais poderoso do mundo até então. Com a nova tecnologia marítima, o mercantilismo capitalismo, a ideologia do colonialismo como maneira de espalhar a civilização ocidental, o zelo cristão, a erudição do Renascimento e 10

o ufanismo do pequena mais convencida nação de Portugal, Vasco da Gama mudou o mundo. Cabia apenas o Camões reconhecer este homem com suas palavras na forma de dez cantos, para todo o mundo e toda a história reconhecerem também a glória desta realização histórica. Bibliografia Camões, Luís de., Leonard Bacon (Ed., Trans.) (1980 [1950]). The Lusiads of Luiz de Camões. New York: The Hispanic Society of America. Camões, Luís de (1980). Lírica completa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa de Moeda. Camões, Luís de (1983). Os Lusíadas. Porto, Coimbra e Lisboa: Porto Editora, Liv. Arnado e E.L. Fluminense. Castro, Armando (1980). Camões e a sociedade do seu tempo. Lisboa: Editorial Caminho. Macedo, Hélder (1980). Camões e a viagem iniciática. Lisboa: Moraes Editores. Saraiva, António José (1995). Estudos sobre a arte d Os Lusíadas. Lisboa: Gradiva. Soares, Maria Luísa de Castro (2007). Profetismo e espiritualidade de Camões a Pascoaes. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 11