A CARTOGRAFIA NO ESTUDO DA HISTÓRIA URBANA

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1 A CARTOGRAFIA NO ESTUDO DA HISTÓRIA URBANA MANUEL C. TEIXEIRA Centro de Estudos de Urbanismo e de Arquitectura ISCTE Av. Forças Armadas Lisboa A cartografia constitui uma fonte documental privilegiada para o estudo da história urbana. Através da análise de cartografia das cidades de origem portuguesa construídas em várias partes do mundo ao longo dos séculos XVI a XVIII é possível observar as múltiplas ligações que tornam a história urbana portuguesa indissociável da história urbana de outras culturas. O Centro de Estudos de Urbanismo e de Arquitectura, do ISCTE, vem desenvolvendo um Arquivo Virtual de Cartografia Urbana Portuguesa. Este Arquivo Virtual de Cartografia Urbana Portuguesa consiste numa base de dados informatizada, composta por texto e imagem, de cartografia histórica de cidades de origem portuguesa, existente em arquivos e bibliotecas de Portugal e do estrangeiro, e disponível através da Internet. Através de algumas cartas seleccionadas, existentes nas bibliotecas e nos arquivos portugueses e brasileiros que participam no projecto de arquivo virtual, apresentam-se diferentes tipos de cartografia, que nos podem dar contributos distintos para a compreensão da história urbana. A cartografia constitui uma fonte documental privilegiada para a compreensão do nosso passado urbano e para o estudo da história urbana. Através da análise de cartografia das cidades de origem portuguesa construídas em várias partes do mundo ao longo dos séculos XVI a XVIII é possível observar as múltiplas

2 ligações que tornam a história urbana portuguesa indissociável da história urbana de outras culturas. Por um lado, é na tradição urbana portuguesa, de natureza vernácula e erudita, que se vão radicar os traçados urbanos coloniais dos séculos XVI a XVIII. Por outro lado, muito dos desenvolvimentos urbanísticos portugueses neste período, nos campos da prática e da teoria urbanística, encontraram nas colónias um campo privilegiado de experiência e de desenvolvimento, vindo a reflectir-se posteriormente em Portugal. Como uma onda percorrendo os séculos, modelos urbanísticos de origem portuguesa reelaboram-se e espraiam-se nos territórios ultramarinos, refluindo novamente para Portugal. O Centro de Estudos de Urbanismo e de Arquitectura, do ISCTE, vem desenvolvendo um projecto de investigação sobre o tema das Morfologias Urbanas das Cidades de Origem Portuguesa, no qual se insere a criação de um Arquivo Virtual de Cartografia Urbana Portuguesa. Este Arquivo Virtual de Cartografia Urbana Portuguesa consiste numa base de dados informatizada, composta por texto e imagem, de cartografia histórica de cidades de origem portuguesa, existente em arquivos e bibliotecas de Portugal e do estrangeiro, e disponível através da Internet. Entende-se por cartografia urbana portuguesa aquela que se refere a núcleos urbanos de origem portuguesa, ou em que os portugueses tiveram uma intervenção determinante na sua construção ao longo da história, construídos em diversas partes do mundo. A cartografia histórica de cidades de origem portuguesa é uma fonte documental fundamental para o estudo da história urbana portuguesa, encontrando-se esta cartografia dispersa por um grande números de arquivos e bibliotecas, públicos e

3 privados, nacionais e estrangeiros. Este Arquivo Virtual tem por objectivos reunir sob a forma virtual esta documentação dispersa, tornando-a acessível aos investigadores e ao público em geral. Procura preencher-se assim uma importante lacuna infraestrutural, documental e de pesquisa no campo da história urbana portuguesa, constituindo ao mesmo tempo um importante instrumento para o conhecimento, a divulgação e o estudo do património urbano português. São objectivos desta Arquivo Virtual de Cartografia Urbana Portuguesa: 1. A Identificação e a Catalogação de cartografia histórica de cidades de origem portuguesa. 2. A Selecção, a Reprodução e a Digitalização da cartografia mais relevante. 3. A Estruturação de uma Base de Dados, articulando os registos de cartografia e as respectivas imagens digitalizadas. 4. A Disponibilização e a Divulgação desta informação através de recursos electrónicos, nomeadamente a Internet. Numa primeira fase do projecto, foram pesquisados os principais arquivos e bibliotecas portuguesas, sendo feita a referenciação e a catalogação da cartografia urbana neles existente, estando actualmente a realizar-se a pesquisa de arquivos no Brasil e na Europa, com os mesmos objectivos de referenciar e de catalogar a principal cartografia urbana de que são detentores. Através do estabelecimento de protocolos com os arquivos e bibliotecas, nacionais e estrangeiros, interessados em participar no projecto, o material recolhido irá sendo sucessivamente

4 integrado neste Arquivo Virtual de Cartografia Urbana Portuguesa. Através de algumas cartas seleccionadas, existentes nas bibliotecas e nos arquivos portugueses e brasileiros que participam no projecto de arquivo virtual, apresentam-se diferentes tipos de cartografia, que nos podem dar contributos distintos para a compreensão da história urbana: Cartografia urbana. Mapas, cartas e plantas que nos mostram os traçados urbanos de cidades ou de partes de cidades (entendendo-se aqui por cidade qualquer núcleo urbano independentemente do seu tamanho). Através destas cartas podemos observar o traçado das cidades, a natureza dos seus espaços urbanos, a estrutura de quarteirão e a estrutura de loteamento, a localização de edifícios e de funções, bem como observar as características físicas do sítio e as suas relações com o território. Fig. 1. Iconografia de cidades. A iconografia dá-nos uma importante visão tridimensional das cidades, que complementa a sua leitura em planta. Muitas vezes, relativamente a alguns núcleos urbanos e a algumas épocas, é o único material gráfico que existe. Fig.2. Fortes e obras de fortificação. Em muitos casos existe uma estreita articulação entre estas obras de natureza militar e os traçados urbanos que se incluem dentro dos seus limites. Mesmo obras exclusivamente militares podem ser importantes, ou para entender a sua estrutura edificada, que muitas vezes reflecte uma lógica urbana, ou a sua localização relativamente aos núcleos urbanos. Fig. 3.

5 Portulanos e cartas geográficas de continentes, de países ou de regiões são, por vezes, importantes pelo que eles nos revelam sobre a estrutura da rede urbana e a lógica de localização de determinados núcleos urbanos. Fig. 4. Projectos de arquitectura. A arquitectura está por vezes intimamente articulada com os traçados urbanos, pelo que se justifica o seu estudo para a compreensão do urbanismo. Um dos exemplos mais claros da ligação da arquitectura com os traçados urbanos é o plano para a reconstrução de Lisboa após o terramoto de Figs. 5 e 6. Em termos temporais, foi seleccionada cartografia urbana até finais do século XVIII, já que se considera que a cidade industrial oitocentista representa uma rotura na tradição urbanística, relativamente às estruturas urbanas da cidade préindustrial. Contudo, foi no século XIX que pela primeira vez alguns núcleos urbanos foram cartografados, pelo que, nalguns casos, foram também seleccionadas cartas desse período. Fig. 7. A cartografia urbana pode ser lida de várias formas, contendo vários níveis de leitura e de significado. A cartografia dá-nos informação sobre a localização geográfica e as razões da escolha do sítio para a implantação dos núcleos urbanos, permite-nos entender as características fundamentais dos traçados urbanos em sucessivos períodos históricos, os conceitos teóricos subjacentes a esses traçados, a sua génese e os seus principais períodos de desenvolvimento, as sucessivas experiências urbanísticas realizadas em diferentes locais e a transmutação de

6 influências. Uma outra leitura da mesma cartografia dá-nos a localização dos edifícios na cidade, as suas diferentes funções e importância institucional, representadas pela sua escala e cor, e as estruturas de poder na sociedade que assim explicitamente se representam. Figs. 8 e 9. Através do estudo da cartografia podemos também apercebermo-nos do nível de conhecimentos e do processo de aprendizagem dos agentes que a produziram, muitas vezes engenheiros militares, registados nas plantas por eles produzidas na sua errância pelo mundo. Os métodos de representação gráfica utilizados dão-nos igualmente informação sobre os desenvolvimentos técnicos e artísticos verificados em épocas sucessivas. Uma carta expressa sempre os conceitos de cidade e os modelos culturais e científicos que lhes estão subjacentes, correspondentes à época da sua elaboração. Figs. 10 e 11. Os portugueses tiveram uma contribuição importante para a evolução da cartografia a partir da época dos Descobrimentos. Inicialmente ligado ao desenvolvimentos de cartas náuticas e geográficas, este conhecimento veio a reflectir-se em breve na cartografia urbana. A representação da cidade aparece-nos de uma forma mais sistemática a partir do século XVI, expressando a crescente importância da cidade como centro de poder, quer na Europa quer nas novas terras conquistadas fora da Europa. A cidade assume-se crescentemente como estrutura de ocupação efectiva e de controle político e administrativo do território e como ponto estratégico essencial para do desenvolvimento de actividades económicas, de natureza comercial, agrícola, mineira ou outras. Fig. 12.

7 A partir do século XVII a cartografia sofre um impulso importante, correspondendo ao desenvolvimento da engenharia militar. São estes técnicos que a partir de então vão elaborar uma grande quantidade de levantamentos de cidades e realizar projectos de traçados urbanos. No século XVIII, o reconhecimento, o levantamento e a representação cartográfica de territórios foi importante como instrumento político para a delimitação de fronteiras entre Estados e para o estabelecimento de tratados. Ao mesmo tempo, é a própria cartografia, através dos seus métodos de representação e dos desenhos alegóricos que a acompanham, que simbolizam e afirmam o domínio e o poder do Estado sobre esses mesmos territórios. Fig 13. Uma grande riqueza de dados de natureza geográfica e de natureza histórica e cultural está igualmente registada na cartografia urbana. As ilustrações que enquadram a cartografia dão-nos informações sobre as práticas culturais, a arquitectura, o armamento, os navios, o vestuário, os usos e dos costumes das regiões nela representadas. As ideologias e os simbolismos religiosos estão também nela representados. As legendas, são fontes de informações preciosas não apenas sobre a situação urbana ali representada, mas também sobre os seus promotores e os seus autores, e os objectivos que levaram à produção do documento. Fig. 14. Como qualquer outro registo ou documento, a cartografia é produzida para um objectivo específico. Isto verifica-se quer no caso da cartografia produzida enquanto representação da realidade, isto é, quando se trata do levantamento de uma situação existente, quer no caso da cartografia produzida enquanto

8 representação de uma realidade não construída, isto é, quando se trata da representação de um projecto ou de uma intenção. Estes objectivos podem ser políticos, económicos, religiosos ou de outra natureza. Qualquer que seja o caso, a cartografia é sempre parcial. É sempre a representação de uma leitura deliberadamente parcial da realidade, ou de uma parte da realidade. Apesar da sua aparente objectividade, a leitura e a interpretação cartográfica devem ser portanto objecto dos mesmos cuidados e reservas com que se encara qualquer outro documento, e informação que nos oferece deve ser sempre verificada e cotejada com outras fontes. Figs. 15 e 16. A cartografia oferece-nos assim uma multiplicidade de níveis de leituras, uns mais explícitos e objectivos, outros a necessitar de uma descodificação mais elaborada. Cada carta é o retrato da época e da cultura que a produziu e, como qualquer obra, aquilo que ela nos transmite vai muito para além daquilo que o seu autor conscientemente nos procurou transmitir. Também como qualquer obra herdada do passado o seu significado não está contido nela própria, mas antes na interacção que se estabelece entre a obra e a nossa própria cultura e o nosso horizonte temporal. Isto quer dizer que o significado de uma obra muda com o tempo, e que em diferentes momentos históricos a mesma carta pode ter, e tem, leituras, significados e interpretações diversas. Figs. 17 e 18.